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“DA NOSSA HISTÓRIA QUEM SABE SOMOS NÓS”: MEMÓRIA, SABERES E PRÁXIS DE R-EXISTÊNCIA ENTRE OS TENETEHAR-TEMBÉ
Benedito Emílio da Silva Ribeiro
Benedito Emílio da Silva Ribeiro
“DA NOSSA HISTÓRIA QUEM SABE SOMOS NÓS”: MEMÓRIA, SABERES E PRÁXIS DE R-EXISTÊNCIA ENTRE OS TENETEHAR-TEMBÉ
“SOMOS NOSOTROS LOS QUE SABEMOS DE NUESTRA HISTORIA”: MEMORIA, SABER Y PRAXIS DE R-EXISTENCIA ENTRE LOS TENETEHAR-TEMBÉ
“WE ARE THE ONES WHO KNOW ABOUT OUR HISTORY”: MEMORY, KNOWLEDGE AND PRAXIS OF R-EXISTENCE AMONG THE TENETEHAR-TEMBÉ
Caminhos da História, vol. 29, núm. 2, pp. 22-45, 2024
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

“DA NOSSA HISTÓRIA QUEM SABE SOMOS NÓS”: MEMÓRIA, SABERES E PRÁXIS DE R-EXISTÊNCIA ENTRE OS TENETEHAR-TEMBÉ

“SOMOS NOSOTROS LOS QUE SABEMOS DE NUESTRA HISTORIA”: MEMORIA, SABER Y PRAXIS DE R-EXISTENCIA ENTRE LOS TENETEHAR-TEMBÉ

“WE ARE THE ONES WHO KNOW ABOUT OUR HISTORY”: MEMORY, KNOWLEDGE AND PRAXIS OF R-EXISTENCE AMONG THE TENETEHAR-TEMBÉ

 Benedito Emílio da Silva Ribeiro 1 emilioribeiro@ufpa.br
Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 29, núm. 2, 2024

Recepção: 29 Maio 2024

Aprovação: 28 Junho 2024


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: Este artigo busca analisar elementos da história e cotidiano do povo Tenetehar-Tembé, da Terra Indígena Alto Rio Guamá (nordeste paraense), a partir de suas próprias memórias e narrativas, que elucidam experiências de vida diante de situações de tutela e violência na região. Nesse ponto, a memória dos mais velhos é importante para entender os pormenores do passado indígena recontado pelos Tembé, cujas vivências extrapolam as dimensões objetivas registradas pela documentação oficial. Através da etnografia e da história oral, enquanto metodologias necessárias ao trabalho com os povos indígenas, foi possível acessar uma realidade outra, narrada a partir do ponto de vista Tembé, que denuncia as arbitrariedades chanceladas, em certo grau, pela FUNAI e centraliza o papel dos Tenetehar-Tembé nesses processos históricos. Entre os povos indígenas, a oralidade é um elo importante de transmissão intergeracional e aprendizados sobre a história, os saberes tradicionais e as práticas culturais que demarcam sua indianidade, e constroem a memória coletiva ancestral. Desse modo, o protagonismo indígena é reiterado e inserido num conjunto de ações construído pelos Tembé para defender seu território, afirmar sua identidade étnica e garantir assim a sua existência enquanto povo.

Palavras-chave: Amazônia, povos indígenas, tradições orais, território, história Tembé.

Resumen: Este artículo busca analizar elementos de la historia y la vida cotidiana del pueblo Tenetehar-Tembé, de la Tierra Indígena Alto Río Guamá (noreste de Pará), a partir de sus propias memorias y narrativas, que dilucidan experiencias de vida frente a situaciones de tutela y violencia en la región. En este punto, la memoria de los mayores es importante para comprender los detalles del pasado indígena narrado por los Tembé, cuyas vivencias van más allá de las dimensiones objetivas registradas por la documentación oficial. A través de la etnografía y la historia oral, como metodologías necesarias para el trabajo con los pueblos indígenas, fue posible acceder a una realidad distinta, narrada desde la mirada Tembé, que denuncia las arbitrariedades avaladas, en cierta medida, por la FUNAI y centraliza el papel de los Tenetehar-Tembé en estos procesos históricos. Entre los pueblos indígenas, la oralidad es un vínculo importante en la transmisión intergeneracional y el aprendizaje sobre la historia, los conocimientos tradicionales y las prácticas culturales que demarcan su indianidad y construyen una memoria colectiva ancestral. De esta manera, el protagonismo indígena se reitera e inserta en un conjunto de acciones construidas por los Tembé para defender su territorio, afirmar su identidad étnica y así garantizar su existencia como pueblo.

Palabras clave: Amazonia, pueblos indígenas, tradiciones orales, territorio, historia Tembé.

Abstract: This article seeks to analyze elements of the history and daily life of the Tenetehar-Tembé people, from the Alto Rio Guamá Indigenous Land (northeast of Pará), based on their own memories and narratives, which elucidate life experiences faced with situations of guardianship and violence in the region. At this point, the memory of the elders is important to understand the details of the indigenous past recounted by the Tembé, whose experiences go beyond the objective dimensions recorded by official documentation. Through ethnography and oral history, as necessary methodologies for working with indigenous peoples, it was possible to access a different reality, narrated from the Tembé point of view, which denounces the arbitrariness endorsed, to a certain degree, by FUNAI and centralizes the role of the Tenetehar-Tembé in these historical processes. Among indigenous peoples, orality is an important link in intergenerational transmission and learning about history, traditional knowledge and cultural practices that demarcate their indianity, and build ancestral collective memory. In this way, the indigenous protagonism is reiterated through their inclusion in a set of actions constructed by the Tembé to defend their territory, affirm their ethnic identity and thus guarantee their existence as a people.

Keywords: Amazon, indigenous people, oral traditions, territory, Tembé story.

Introdução

As histórias dos povos originários se configuram como um emaranhado de tempos territorializados. São temporalidades distintas que se afastam e se sobrepõem, coexistindo num certo grau de harmonia sociocósmica. E elas são atualizadas/renovadas conforme as relações interespecíficas são estabelecidas entre humanos e não humanos, bem como nos momentos em que passado e presente entram em interseção, sobretudo durante rituais e festas tradicionais. Isso fabrica uma dinâmica única, e territorializada, para se entender a história de cada povo, a qual se revela através da memória e da tradição oral e, ao mesmo tempo, tensiona os enquadramentos hegemônicos da História (e historiografia) ocidental e sua estrutura linear e objetiva de explicação de dada realidade.

Por exemplo, a versão das histórias – que o léxico antropológico denominou de mitos – sobre a origem e o funcionamento do mundo para os Desana (Kêhíri; Pãrõkumu, 1995) ou para os Yanomami (Kopenawa; Albert, 205), ou para qualquer outro povo, pode ser lida na chave da representação e alegoria cosmogônica indígena, que pouco impactaria a análise histórica séria e tradicional. Mas se pensarmos que tais elementos “mitológicos” influenciam e ajudam a informar sobre as ações indígenas ao longo do tempo, diante do sistema colonial e pós-colonial (nacional) no Brasil, e nas Américas, então a escrita sobre os passados indígenas ganha outros contornos e profundidades analíticas.

Nesse sentido, a cosmologia enquanto história, memória ancestral, reivindica lugar proeminente na reflexão historiográfica, de modo a nos fazer entender os vários aspectos socioculturais que orientam as vivências historicamente agenciadas por tais comunidades. Conforme nos provoca Sanjay Seth (2013), é necessário rever o sentido singular (e homogeneizante) da Razão propagada desde o Ocidente e relativizar suas implicações na compreensão e análise da História, de modo a pluralizar essas interpretações sobre o passado dos diversos povos ao redor do mundo, que possuem outras formas de raciocínio que explicam sua cultura histórica. Deste modo, a cosmologia e demais tradições de raciocínio, transmitidas pela oralidade, perfazem para esses povos “outras maneiras de construir o próprio passado e a própria relação atual com o passado” (Seth, 2013, p. 186).

No caso dos indígenas, os saberes cosmológicos e as outras narrativas ancestrais interligam seus modos de vida, territórios-territorialidades e resistências ao longo do tempo, tornando-se indicadores de um conjunto de relações e vivências que foi obliterado nos registros oficiais produzidos por agentes da governança estatal/colonial, os quais são enviesados por um olhar técnico e objetivo. Isso influencia uma metanarrativa do arquivo e, por conseguinte, a escrita da História pela ótica ocidental (Stoler, 2018). Mas sua inscrição ou não na documentação não representa a inexistência de múltiplas experiências de tais sujeitos históricos. Entender que existem outras lógicas de explicação da realidade e distintos modos de acessar o passado, em outro suporte de memória, é sair da armadilha de produzir conhecimentos históricos através da lente colonial/imperial (Smith, 2018) e se lançar a fazer outro tipo de pesquisa alinhada às concepções e reivindicações indígenas.

Nesse ponto, a oralidade é uma chave de acesso a tais saberes e narrativas históricas outras, permitindo atravessar a objetividade dos registros oficiais com o universo indígena de referências socioculturais e conjecturar os modos de vida e ação que foram costurados estrategicamente por esses sujeitos. Captar tais dimensões e pontuar seus sentidos sinaliza a necessidade (e a emergência) de trazer a cosmologia, os saberes, as narrativas ancestrais, as atitudes políticas etc. para a reflexão e escrita de uma História Indígena plural na contemporaneidade. E assumir outra postura de pesquisa, que não esteja seduzida pelo modus operandi do karai (homem branco) sobre os conhecimentos históricos indígenas:

É comum que os brancos, como os jornalistas, autoridades federais e estaduais, julguem que as memórias dos indígenas são menos exatas e importantes do que aquelas formuladas pelos karai apoiadores. Essa avaliação é completamente equivocada. Ela resulta de uma apreciação etnocêntrica de que as narrativas feitas pelos indígenas são menos verdadeiras e confiáveis porque algumas vezes confundem datas e números e trocam ou misturam os personagens dos brancos. Mas não é isso que importa nestes relatos, que foram produzidos exclusivamente por indígenas e para indígenas e resultam de memórias orais. As informações numéricas ou o nome preciso de alguns karai não são fatos tão significativos do ponto de vista dos indígenas, o que para eles é fundamental é definir situações e atitudes, bem como transmitir e justificar estratégias e decisões. São estas narrativas que mobilizam os indígenas em suas ações. Portanto descrevendo a história apenas com o relato dos apoiadores Karai não teríamos compreendidas algumas das importantes motivações dos indígenas (Benites, 2014, p. 180).

Logo, as historicidades indígenas se constituem nessa encruzilhada de referências que marca sua existência, identidade e pertencimento, perfazendo experiências históricas territorializadas e(m) suas distintas temporalidades. É diante deste panorama, que situa meu campo de reflexão e atuação, que escrevo este artigo ancorado na história oral como caminho potencial na análise historiográfica para visualizar e compreender as realidades indígenas no Brasil, e especificamente na Amazônia. Para tanto, centralizo as vivências e relações tecidas pelo povo Tenetehar-Tembé, das aldeias do alto rio Guamá, no nordeste do estado do Pará, diante da tutelagem estatal vivenciada em seu território no século XX.

Meu objetivo é analisar a história Tembé e seus meandros no nordeste paraense, através das memórias e narrativas orais, e esquadrinhar os elementos sociais, políticos e culturais narrados pelos Tembé que ajudam a elucidar sobre sua trajetória, formas de r-existência e possibilidades de autonomia em face das situações de tutela e violência na região. E por meio disso tecer uma reflexão geral que centralize como essas narrativas reforçam a denúncia aos abusos e arbitrariedades cometidos, ontem e hoje, ao mesmo tempo que enfatizam as agências indígenas numa chave de justiça e reparação históricas.

Observa-se aqui uma diversidade de situações desencadeadas pela maior atuação do Estado no alto rio Guamá, primeiramente através do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e depois com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), bem como por novas levas de migração para a região. Isso proporcionou a inserção de outros atores que passaram a disputar territórios com os Tembé, ampliando o cenário local de conflitos fundiários entre as décadas de 1960 e 1980 (Sales, 1999; Ponte, 2014). Um contexto que foi atravessado também por processos de (re)organização social dos Tembé, visando estabelecer melhor os mecanismos internos de incidência etnopolítica e (re)afirmação da indianidade para lutar pela integridade do seu território, segundo analisa Sara Alonso (1996). E aqui, nesse processo, os aspectos socioculturais adormecidos no alto rio Guamá foram retomados e redimensionados no cotidiano das aldeias, para reverter os efeitos danosos da tutela.

Ou seja, apesar das violências e arbitrariedades, cujas marcas representam trauma e dor no ordinário da vida (Das, 2020), as memórias e narrativas do povo Tembé trataram (e tratam) de refazer seu sentido cruento para rearranjar a experiência do passado, dando ênfase devida à violência, numa tônica de denúncia, e igualmente à complexidade de suas agências na região, revelando suas formas de tensionar a tutela estatal e interpretar sua autonomia. Dimensões de r-existência que se sustentam nos diversos relatos de mulheres e homens, de diferentes gerações, que residem nas aldeias da Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), mostrando as ligações afetivas com o seu território e as marcações de seu modus vivendi na região, mantido de forma subterrânea diante da presença tutelar.

Logo, neste artigo, enfatizo a situação dos Tenetehar-Tembé do Guamá a partir de suas próprias narrativas, efetuando uma elaboração textual dialógica pautada na oralidade Tembé. No cerne da discussão estão as memórias individuais e coletivas sobre o contexto tutelar, cujas vivências narradas retomam outro tempo e suas relações. E é no cruzamento entre as continuidades e descontinuidades históricas no alto rio Guamá que as trajetórias Tembé são dimensionadas, tendo as narrativas orais um canal para visibilizar e apreender sobre o protagonismo desses sujeitos na região. Assim, a história oral, junto da etnografia, é um importante eixo metodológico que ajuda a criar pontos de diálogo intercultural que possibilitam uma interpretação da História com os povos indígenas (Freitas, 2004).

A oralidade é o principal meio para a preservação, difusão e acesso aos saberes ancestrais entre os indígenas, sendo transmitidos de forma intergeracional nas aldeias e territórios indígenas. Dentro dessas sociedades de oralidade, como conceitualiza Tania Clemente de Souza (2016), a transmissão desses conhecimentos tradicionais extrapola a comunicação oral, estando presente na própria materialidade cotidiana de cada povo, que é igualmente atravessada pela oralidade. Um conjunto amplo que marca a oralidade indígena e aciona, portanto, epistemologias e representações sobre a história ancestral.

Nesse quesito, minha análise debruça-se sobre entrevistas, depoimentos e conversas informais realizados entre 2015 e 2024 nas aldeias do Guamá, sobretudo na aldeia Sede e Ytwuaçu, envolvendo uma diversidade de sujeitos Tembé: de velhos a jovens; homens e mulheres; conhecedores culturais (pajés, erveiras, parteiras, cantores etc.), caciques ou “leigos”. Aqui, leva-se em consideração que tais entrevistas apresentam um dialogismo na sua produção, tendo em vista a natureza da relação entre o entrevistador (pesquisador) e seus entrevistados – neste caso, os Tembé (Portelli, 2016). E que essa memória narrada nas entrevistas possui uma construção discursiva específica, sendo marcada por unidades enunciativas e elementos ideológicos que se articulam a mecanismos performativos da linguagem e ao conjunto de saberes e memórias daquele grupo (Ferreira, 2005).

Além disso, os relatos dos sujeitos entrevistados também foram analisados a partir de minhas vivências na aldeia, levando em consideração a etnografia enquanto forma de teorização em colaboração sobre dada realidade sociocultural experienciada em campo (Rappaport, 2007; Peirano, 2014). As experiências acumuladas ao longo dos anos com os Tembé, nas aldeias, me ajudam a me aproximar de suas formas de compreensão sobre a realidade histórica e, assim, tecer uma reflexão comprometida com suas demandas e lutas. Afinal, as narrativas orais que acionam uma memória entre os Tembé sobre o seu passado produzem uma teia de significados acerca daquela realidade narrada/lembrada, a qual se conecta com um contexto mais amplo de interdiscursividades nativas no alto rio Guamá.

Logo, muito mais do que prender-se apenas a documentação oficial e dimensionar a história dos Tembé através das fontes da tutela, opto por sustentar a análise do artigo desde a memória indígena narrada em seus próprios relatos, que nos fazem enxergar seu passado e suas experiências de vida e luta no alto rio Guamá. Ou seja, essas narrativas oferecem uma leitura da práxis de r-existência[2] construída e acionada pelos Tenetehar-Tembé, pois exprimem características profundas de sua autonomia histórica inserida no horizonte de suas tradições orais de conhecimento. Tais relatos, portanto, enquadram-se como categorias nativas de narração de histórias e de entendimentos sobre o passado, e o presente – a historicidade Tembé –, com suas próprias especificidades.

Subvertendo a tutelagem no Guamá: agências, saberes e r-existências através das narrativas Tembé

Visualizar a história Tembé requer uma lente de análise ampliada, para entender os vários meandros que compõem a trajetória histórica desse povo tupi-guarani da Amazônia oriental. O primeiro passo é colocar em suspensão a história da tutelagem entre os Tembé, como se fosse o único caminho crível de dimensionamento de sua trajetória no passado, e no presente. Como pontua Célia Xakriabá (2018, p. 65): “por muito tempo a tutelagem foi (e será) uma estratégia do Estado, uma estrutura política de controle de nossos corpos-territórios”. Essas formas de opressão colonial e suas expressões, que se alargam até a contemporaneidade, estão no cerne da relação histórica entre Estado e povos originários. Todavia, elas não podem escamotear e/ou reduzir as experiências indígenas a seus signos hegemônicos. Ou seja, o que se propõem não é escantear o poder tutelar e seus efeitos ao longo do tempo, mas enquadrá-lo a partir das próprias histórias, saberes e práticas nativos, os quais subvertiam de distintos modos a tutelagem do Estado.

Eles podem até mexer nos nossos galhos, nas nossas folhas, mas nas nossas raízes, não! O importante na nossa história é que continuamos a ser um povo, o povo Tembé. A cultura pode mudar, dependendo da realidade, do momento, do impacto que ela vem sofrendo, ela pode mudar, mas a essência, não. É preciso trabalhar a questão da cultura do povo, porque a gente pensa que a cultura é só a soma de símbolos representativos, o cocar, o canto, a linguagem, mas são os símbolos representativos e os conhecimentos, conhecimento sobre a natureza, sobre a saúde, sobre tudo (Piná Tembé, entrevista, 21 set. 2015).

Nas palavras do cacique Piná Tembé, é necessário observar a história Tembé a partir da manutenção da sua existência enquanto povo ao longo do tempo. Ou seja, suas lógicas de r-existência diante de enquadramentos reducionistas que não compreendiam o modo Tembé de continuar existindo como povo/coletivo. São as raízes dessa majestosa planta que é o “ser” Tenetehar-Tembé, que se nutre do seu território afetivo – e de direito – e de sua cultura viva e pulsante, possuidora de uma memória coletiva ancestral que baliza essa identidade Tembé e seus sentidos de pertencimento. De modo geral, isso ajuda a tensionar e subverter a ideia clássica de mistura enquanto perda e apagamento da indianidade entre os Tembé do alto rio Guamá. Enxergar os meandros da história Tembé pela lente de sua r-existência é, portanto, fazer uma outra leitura sobre o passado que, igualmente, impacta o tempo presente e as perspectivas de futuro coletivo para este povo.

Assim, ao narrar algumas das histórias que remontam ao tempo do SPI e da FUNAI, os Tembé enfatizam seu cotidiano na aldeia junto dos desdobramentos provocados pela (in)ação do órgão indigenista na região. O SPI se estabelece no alto rio Guamá no início da década de 1940 e efetua, no dia 21 de março de 1945, a criação de uma reserva para acondicionar os Tembé e outros grupos indígenas dessa região de fronteira entre o Pará e o Maranhão (Ponte, 2014; Ribeiro; Meira, 2021). A criação dessa reserva, via decreto do governo do Pará, sem uma orientação política de garantia do direito indígena ao território naquela época, inaugurou um conjunto de novas relações na região, especialmente no que tange observar o cenário de conflitos e violências em torno da posse da terra:

Apenas decretou. Não homologou, não demarcou. Então teve, porque a Terra Indígena Alto Rio Guamá passa por três processos, né. Decretar, depois vem a demarcação, depois vem a homologação, que é o último caso. Que no nosso caso foi, foi em 2003... em 2003 não, em [19]93 que foi homologada. O último passo que nós demos. Então, isso se acarretou vários problemas aqui. Sempre a FUNAI dizia... veio o SPI, depois veio a FUNAI e sempre foi com o mesmo papel, é “não, podem deixarem que a gente vamos resolver”, tem “que não é vocês que vão se meter”... E meu avô brigou muito sobre isso. E ele, quando a partir dali as coisas foram montando cada vez mais (Naldo Tembé, entrevista, 08 abr. 2018).

Conforme analisa João Pacheco de Oliveira (1998), a identificação e a demarcação desses territórios indígenas foram muito circunstanciais até a década de 1990, pois até a Constituição de 1988 esses processos técnicos eram instrumentalizados para atender as frentes de expansão e ocupação dos “sertões” do que as próprias demandas e necessidades das comunidades indígenas. A reserva foi um estopim de conflitos para os Tembé, que os colocou de forma dramática na rota das violências em torno da terra por conta dessa fragilidade institucional do indigenismo da época. E isso reverberava no próprio cotidiano Tembé, impondo novas articulações para lutar por sua existência e por seu território, cujo direito sobre a reserva seguia interditado devido às constantes invasões.

Isso está no cerne de outros conflitos e arbitrariedades que se desdobraram na região a partir dos anos 1970, durante o contexto da Ditadura Civil-Militar e de maior atuação da FUNAI. “Os atuais moradores de Capitão Poço, bem como os Tembé do Guamá, têm clara percepção de que foi intensificada, nesse período, a chegada de ‘fazendeiros’ para toda essa região” (Sales, 1999, p. 52). E com esses novos atores, um cenário mais denso de invasões e conflitos socioambientais desenrolou-se em torno do território Tembé, até certo ponto com a chancela do órgão indigenista:

Entrou um polonês, que se chama Mejer, e foi lá em Brasília e negociou com eles. Então, o polonês, ele ficou na extrema da área indígena e pediu pra, a autorização da FUNAI pra abrir uma estrada que interligava com uma... que atravessava a área indígena, né, do Livramento até lá o Cristal, que era pra dar acesso à fazenda dele. Porque naquela época tudo era área devoluta, área que não tinha essa colonização aí, era livre. Aí naquela época ele fez esse acordo. Segundo os acordos que, depois a gente tamo verificando tudo, ele foi é, a FUNAI pediu pra que ele fizesse a estrada, mas que fizesse uma estrada também interligar a aldeia, que essa estrada pra dar certo a fiscalização e o Mejer, que é o fazendeiro, fazer duas guaritas, uma na entrada e outra na saída, que era pra dificultar o acesso de pessoas estranhas, né. E fornecer a gente de cimento, área mecanizada, tudo, né, que a gente precisava. E ele não cumpriu nada disso. É o que li dos acordos que foi feito, né. E a partir dali começou a invasão (Naldo Tembé, entrevista, 08 abr. 2018).

A figura do fazendeiro Mejer Kabacznik é tomada como antagonista central aos Tembé, ao se apropriar de parte da área indígena (11 hectares) e construir uma estrada que cortava as terras da TIARG, de um extremo ao outro, articulando assim novos focos de invasão e ampliando as tensões entre os Tembé e os “colonos” ou “invasores” (Sales, 1999; Ponte, 2014). Neste contexto, menciona Sara Alonso (1996), a ação de agentes da FUNAI foi bastante controversa, fazendo aumentar a desconfiança dos indígenas com o órgão. Nisso, a FUNAI é colocada como uma adversária dos Tembé, ao proporcionar que Mejer se estabelecesse arbitrariamente nas proximidades da então reserva, entre outros fatores internamente vivenciados pelos Tembé.

Olha, ninguém entendia um ponto desse, não sabia quem era nossos parceiros e nossos adversários... o órgão oficial do governo que veio, já veio cometendo invasões, não é. Vou fazer um mapa rapidinho aqui no chão. Vou riscar aqui no chão pra vocês entenderem um pouco. Aqui é o Tauari, né. E aqui, a linha seca. É o Gurupi. Bem aqui é o Coraci-Paraná. Aqui o Piriá. Aqui, bem aqui, era o Mejer. É o Mejer. A FUNAI fez esse acordo, né. E bem aqui tinha o CIDAPAR. [...]. Liberando isso aqui pros posseiros ficarem e criar duas colônias: colônia indígena Tembé do Gurupi e colônia indígena Tembé do Guamá. A FUNAI que era pra defender dizia pros índios: “não, tem que se acomodar”, assim contavam os mais velhos... tem que se acomodar porque esse é o papel da União, tirar os posseiros daí de dentro (Piná Tembé, depoimento, mar. 2017 – retirado do documentário Os Tembé: cidadãos brasileiros da floresta).

Para além das recomendações da FUNAI, de que eles não deveriam interferir e aguardar os encaminhamentos do órgão, em articulação com as outras esferas da União, os Tembé agiram e enfrentaram os invasores de seu território. A mobilização indígena na luta contra essas arbitrariedades e seus abusos inscreve outra relação histórica marcada pelo profundo agenciamento dessas comunidades, e(m) seus territórios, que contrariam e colocam em suspensão – até certo ponto – as velhas táticas de tutelagem do Estado-nação (Correa Xakriabá, 2018; Fernandes, 2022). Entre os Tembé do alto rio Guamá, a luta pelo território nos tempos da FUNAI é colocada enquanto um momento de muita violência e conflitos generalizados na região, gerando certa inflexão em sua história. Mas a memória Tembé revela a força de sua r-existência ao lidar com esses episódios de invasão e abusos que se desdobraram em seu território naquele contexto:

E nessa que nós entramos. Nós tivemos que dar o retorno por Capitão Poço, por Garrafão é... no Livramento, nós entramos e fomos fazer a fiscalização. Então, nós entramos cortando a madeira e o que queimou, queimou, o que não queimou nós cortamos tudo. E na nossa volta nós fomos surpreendidos. Então, nós era 77 indígenas, e todos armados. E tinha 3 funcionários da FUNAI. Aí quando o pessoal cercaram a gente e foi aí que nós tava preso, pra negociar. E nós armados, né. E naquela época eu era bastante jovem ainda e disse pro pessoal que nós não entregava as armas, e o pessoal da FUNAI: “vamos entregar, vamos negociar”. A partir dali que nós entregamos as armas aí nós fomos sendo coagidos, né. Fomos sendo espancados, fomos sendo humilhados. Nós passamos três dias presos, né, num lugar que tinha pouco espaço, fomos... por exemplo, chovia pela quentura de uma brasilite dessa aqui, tinha muita gente, tudo fechado, a, como é, a temperatura batia, suava a brasilite e voltava, como se tivesse pingando, como se tivesse chovendo direto, né, e nessas alturas foi muita humilhação. E nós ficamos três dias. A partir dos três dias nós tivemos a nossa liberdade. E a partir dali não prestou mais. Aonde a gente se encontrava era muito tiroteio. E nós passamos por vários problemas e isso fez com que todos nós se mobilizar (Naldo Tembé, entrevista, 08 abr. 2018).

Tais episódios em que os abusos, a brutalidade e as humilhações são evidenciados desde a memória, e verbalizados através da narrativa/discurso, revelam as injustiças e as feridas ainda presentes na realidade Tembé, que atravessam de distintas formas o seu cotidiano ao se rememorar as lutas pela garantia e integridade de seu território e, portanto, pela vida da comunidade. “Nomear a violência não reflete apenas as lutas semânticas – reflete o ponto em que o corpo da linguagem se torna indistinguível do mundo; o ato de nomear constitui uma enunciação performativa” (Das, 2020, p. 274). Assim, as fraturas causadas pela violência, e seus aspectos sociais e psicológicos, se inserem como fatores para reparação histórica, simbolicamente acionados e integrados a realidade, ao denunciar os abusos, as arbitrariedades, as dores e os traumas originados por essas situações-limite.

A complexidade desse processo, e de outros, espelha-se a partir da memória e das narrativas Tembé, em que as violências impostas pela ação tutelar são (re)dimensionadas também pelas próprias estratégias indígenas de enfrentamento a tais abusos, acionando o passado e reinserindo suas práticas culturais, sociabilidades e formas de organização e incidência política no cotidiano das aldeias, para além das inscrições da tutelagem. Nisso, tais experiências de mobilização e confronto com os “invasores”, na luta por seu território, apresentam-se como elementos para entender o processo de “despertar” (Amado, 2020) dos Tembé para a defesa de seus direitos, sobretudo territoriais. Destarte, o território é fio condutor das experiências históricas dos Tembé. Ele demarca historicamente os múltiplos percursos e relações deste povo, em meio a suas negociações e r-existências na região.

Conforme analisa Juliana Fernandes (2022) entre os Xakriabá, os agenciamentos da luta indígena ao longo do tempo se configuram de forma multidimensional no território pois incorporaram os aspectos políticos da resistência aos projetos tutelares do Estado, ao passo que atrelam esta esfera aos seus repertórios socioculturais e à própria cosmovisão. Logo, a dimensão múltipla desses agenciamentos na história dos povos indígenas ganha outro significado ao se visualizar (e visibilizar) os elementos de sua cosmopolítica, que atravessam a realidade histórica desses povos, ontem e hoje.

Nisso, entre os Tembé, a relação potencial com as antigas aldeias, do outro lado do rio Guamá, entrelaça horizontes de sua territorialidade e formas de autonomia, agenciados historicamente para dimensionar a própria experiência tutelar na antiga reserva. E coloca-se em perspectiva os modos Tembé de compreender sua história através das marcações no seu território, acionadas por meio da memória ancestral dos mais velhos, que fazem emergir novamente os tempos antigos e as outras relações construídas pelos Tembé, antes e depois do SPI e da FUNAI. Referências múltiplas que se cruzam para demarcar novas ações políticas, sociais e simbólicas em seu cotidiano.

Vou pesquisar com meus mais velhos, meu pai, minha mãe, meus tios, meus avós, e aí eu vou tendo aquele conhecimento e tenho o conhecimento de morar na aldeia também. Eu quero falar assim, em 1945 é que foi fundada essa, a aldeia Sede onde vocês tavam né, porque antigamente não era, não era aqui que nós morava. Era numa, era ali do outro lado do rio, do lado de lá, bem ali em cima ali, um lugar chamado São José (Tarril Tembé, entrevista, 17 nov. 2017).

Retomar a memória sobre a aldeia São José é pontuar a importância histórica desse antigo espaço de vida dos Tembé do Guamá, localizado do outro lado do rio, e agenciar o passado e as experiências indígenas para além da presença do SPI e da FUNAI, e das marcações históricas da tutelagem na região. É também redimensionar o antigo território Tembé, em seu sentido estendido por toda essa região do alto rio Guamá, e tensionar os processos de mutilação do mesmo, diante das frentes de expansão que foram expulsando os Tembé desses seus espaços tradicionais. Nesse sentido, como sustenta Daniela Alarcon (2020), a retomada e a mobilização social da memória indígena tem lugar proeminente como estratégia para efetuar a recuperação e reocupação territorial, conforme analisado entre os Tupinambá da serra do Padeiro (BA).

No caso dos Tembé, a memória sobre a aldeia São José e seu antigo território, do outro lado do rio, reinscreve as relações vivenciadas e sua territorialidade na região, dando novos sentidos às dinâmicas estabelecidas com os brancos e as famílias Tembé residentes na cidade, sobretudo Capitão Poço, e provocando certa indianização (ou reindianização) desses espaços. Trazer isso à tona é fazer um outro percurso de história, tomando o seu território ampliado e os processos de territorialização dos Tenetehar-Tembé na região do alto rio Guamá, no passado e no presente.

Eu quero fazer uma rápida lembrança de quando eu acompanhava o meu avô. O meu avô desde a época de 1945, que foi fundada a aldeia aqui, porque a aldeia era do outro lado do rio, não sei se vocês foram a oportunidade de ir na beira do rio, né. E, naquela época, a gente morava pra lá, meus avôs, meus pais... foi criado tudo, na parte de Capitão Poço, né. Que aquela cidade onde tá Capitão Poço, tudo era área indígena (Naldo Tembé, entrevista, 08 abr. 2018).

Os relatos de Tarril e Naldo revelam a articulação narrativa sobre o passado Tembé apreendido através da memória dos mais velhos, por meio da transmissão intergeracional de conhecimentos históricos, e seus saberes, que se acoplam a memória ancestral dos mais jovens. “Todo processo de contar, ler ou ouvir narrativas possibilita as gerações mais jovens [...] a compreensão de um tempo ancestral e trazem para si como realidade, fazendo viver na imaginação aquilo que lhes foi narrado (Silva, 2012, p. 151). E assim se constroem novas formas de reterritorialização que tomam a memória enquanto um elo de referência com esse passado. Logo, a retomada dessas memórias e narrativas subterrâneas e, muitas das vezes, adormecidas representa uma ação política de afirmação da identidade Tembé e reivindicação de seus direitos, sobretudo territoriais, através de um “resgate” da sua história, da cultura e da tradição. Um processo de visibilização da indianidade, do ser Tenetehar-Tembé, que se acopla com seu passado e território ancestrais.

Como destaca José Tarisson Nawa (2023), esses elementos promovem a condução de um regime de memória – e historicidade – indígena que é acionado para tensionar as representações coloniais e tutelares sobre modos de vida, comportamentos e experiências indígenas. “As memórias conduzidas pelo território garantem a unidade do meu povo, o vínculo étnico, a partilha e o modo de vida” (Silva Nawa, 2023, p. 48). Entre os Tembé, a memória pulsante sobre a aldeia São José se liga a outros sentidos de sua história, que evidenciam as agências e autonomias indígenas no passado e igualmente reivindicam seu amplo território tradicional na região. E que apesar da mudança dos Tembé para a reserva, atual TIARG, as relações com suas antigas aldeias e espaços de reprodução sociocultural foram mantidas através da memória ancestral, fazendo com que a compreensão histórica acerca do seu território-territorialidade fosse constantemente dinamizada nas aldeias.

Nós, olha... eu não lembro quando nós viemos de lá, mas meu pai contava que nós viemos do outro lado.

Vocês moravam do outro lado do rio?

Era. Daí da beira do rio até Capitão Poço era nossa aldeia.

Qual era o nome dessa aldeia?

São José. Aí ele disse que foi o Barata, tempo do, era governador na época do Barata e tirou esse pedaço pra lá e deixou nós só nesse...

Nessa parte daqui?

É, nessa parte daqui.

A senhora acha, assim, por que ele tirou?

Eu não sei. Acho... não sei. Acho que ele acho com certeza muito grande a terra, né, pra gente, e muita gente que queriam morar, porque eu ainda conheci ali um pouquinho de gente de Capitão Poço. Não sei por quê. Sei que até o cemitério é lá! É do outro lado.

O cemitério de vocês ficava pra lá?

É, ficava pra lá.

Nessa aldeia São José?

Uhum, aldeia São José.

Mas era só essa aldeia que tinha do outro lado?

Era. Era uma aldeia, era tudo só uma aldeia, grande.

Uma aldeia grande!

É, a aldeia São José. Aí de lá que botaram nós pra cá. Quando eu me entendi aqui não tinha posto não.

Não?

Não! Não tinha posto. Era só nós mesmo, a Deus dará. Aí depois que fizeram essa casa grande, nem lembro muito bem. Aí começaram a já, já botar chefe de posto aí. Mas quando nós passamos pra cá não tinha não (Maria Paulina Tembé, entrevista, 27 maio 2018).

Desta forma, percebe-se que a aldeia São José carrega, a partir da memória, toda a ancestralidade territorial dos Tembé do Guamá e ajuda a dimensionar sua autonomia antes da chegada do SPI e FUNAI na região. Ela também possui uma importância cosmológica para os Tembé, pois ali próximo se localiza o cemitério antigo, onde habitam alguns dos espíritos, sendo assim um lugar de interseção sociocósmica entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos (Saraiva, 2012). É, portanto, um espaço sagrado e de interdição, pois ele pode atrair as karuwaras[3] que agem sobre o corpo e a subjetividade das pessoas da aldeia. Isso revela também como o universo espiritual indígena mantinha-se presente em seu cotidiano, conjuntamente a saberes e práticas, regulando também as relações tecidas pelos Tembé no território da antiga reserva, apesar das muitas interferências da FUNAI.

Nesse sentido, a presença e a atuação de conhecedores culturais, como parteiras e pajés, que sabem lidar com tais entes não humanos, é ponto de articulação sobre o passado nas aldeias. Traz outro significado à história Tembé e suas r-existências diante das formas de tutelagem em seu território. Como destaca Márcia Maciel (2016), a oralidade indígena faz (re)conhecer o universo de saberes, práticas e vivências culturais que se manifestam, e se dinamizam, nas comunidades através de diferentes portadores das tradições. Colocar em evidência esses conhecedores e seus ofícios nas aldeias é reinscrever a existência de outras relações potenciais na história dos povos indígenas, em seus territórios, para além do discurso (e memória) oficial que reitera uma série de apagamentos historiográficos.

Sim, tinha assim, [remédio] do mato a gente fazia, né. Sempre teve os nossos pajézinhos que fazia remédio. Mas as vezes não era médico... não era pra pajé. Tinha que sair pra fora! Mas eles tinham. Tinha... aqui tinha parteira, aqui tem uns pajé. Agora que tá mais acabando, porque agora já faz parto só na cidade, só no... Mas minha irmã ainda teve criança. A minha mãe era parteira. Pegou muita criança e sabia dizer o que era, só ela que... aí depois até que eu me casei, até que eu ajudava ela, né, quando ela saia assim eu ia com ela (Maria Paulina Tembé, entrevista, 27 maio 2018).

É a memória que revela a existência desses sujeitos e sua atuação na comunidade, e que nos possibilita dimensionar melhor alguns desses indivíduos que são mencionados, às vezes, nos documentos oficiais, sem nos deixar entender o seu papel dentro da aldeia. Trazer à tona esses conhecedores da cultura Tembé e seus saberes permite entender outra forma de construção da ação indígena no passado, cuja r-existência Tembé nas aldeias se articulou também em torno desses personagens, de seus repertórios e do universo cultural e espiritual deste povo indígena. Importa destacar ainda que tais sujeitos são apresentados nas narrativas a partir dos laços familiares e afetivos, os quais oferecem outras camadas para mensurar essa trajetória nas aldeias e seus efeitos no cotidiano Tembé:

Assim, né, tá com 26 anos que ela faleceu, então... eu era bem pequena, né, quando ela contava essas histórias. Aqui mesmo, ela era uma das melhores parteira que tinha, né. Pra pegar, pra rezar, pra puxar, puxadeira... pra tudo era ela, né! Tinha a mãe do Piná também, dona Luiza, também que fazia, né. Mas, pra parto aqui ela era... boa. A médica mesmo era ela aqui, né! Inté que essas outras aldeias, antigamente sempre a aldeia Sede foi o foco, entendeu. Ela era a raiz! Agora que já saiu... Que foram se espalhando. Então, quando vinham lá da São Pedro, lá da Frasqueira, né, essas coisas... era na nossa casa que era a farmácia, que era o hospital das mulheres grávidas! Era, muito mesmo. Ela fez muito parto. Nossa casa era bem ali assim... Era uma casa grande que a gente tinha lá, que eu morava com ela e meu avô, né. Então todos que vinham, que as mulheres vinham grávidas, com dor ou quando tava no mês de ganhar neném... Casa da tia Diquinha. Casa da minha madrinha, entendeu. Então ela, entendeu (Maria Lindalva Tembé, entrevista, 26 maio 2018).

Falar sobre esses sujeitos, parteiras e pajés, e entender suas formas de atuação na aldeia é trazer para a História, e a historiografia, os saberes e práticas culturais do povo Tembé que se mantiveram vivos dentro da comunidade, ainda que adormecidos e inscritos de forma subterrânea em seu cotidiano no passado. É fazer emergir trajetórias silenciadas no cânone historiográfico e epistemologias plurais que se fundamentam em experiências concretas nos territórios indígenas, as quais explicam a história através de outras relações potenciais e seus entendimentos cosmológicos acerca da realidade vivenciada. História e cosmologia estão entrelaçadas no horizonte de explicação dos povos indígenas.

Antigamente, os pajés eles se pintavam... eles não se pintavam, eles se tatuavam, faziam tatuagem assim... marca de animal no corpo. Ele era considerado pajé. Já os outros que tavam, assim, cantando, acompanhando, eles se pintavam assim igual ele. [...]. Desenhavam borboleta, desenhava tudo mesmo, assim... pássaros, né. Por que se desenhava assim? Porque ele tem o domínio dos seres encantados. É, por exemplo, assim, ele que chama o espírito da borboleta, chama o espírito do japim, da mãe d’água... dependendo do horário, da cantoria, por exemplo (Bewãri Tembé, entrevista, 14 abr. 2024).

Essa relação com os espíritos e outros seres existentes, operada sobretudo através dos pajés, reinscreve no cotidiano uma dimensão histórica com o passado ancestral e com esses outros tempos-espaços, que igualmente conferem outra dinâmica à territorialidade Tembé. Como dito por Bewãri Tembé: “Porque antigamente os animais eram igual nós. Só que assim com... cada um com suas características” (entrevista, 14 abr. 2024). Aqui, Bewãri remete ao tempo ancestral que explica a origem dos Tembé, e que revela os traços do perspectivismo (Lima, 2005), em que esses seres também têm agência e podem afetar o mundo social indígena. E é preciso saber lidar com tais sujeitos, observando restrições e demais costumes que ajudam a regular essas relações e suas agencialidades potenciais. Ou seja, é experienciar no cotidiano saberes e práticas que garantem a manutenção social, cultural e (cosmo)política do grupo. Isso estabelece outra lógica às experiências históricas nas aldeias Tembé, e para a própria compreensão sobre o território e a natureza.

É por isso que eu digo, a natureza, tudo da natureza existe e aquilo ali não é uma coisa percebida, que nem a natureza. Porque é uma coisa... tudo que eu vejo, aquilo ali, pra mim, eu sei que aquilo pra mim tem um dono ali. Então por que que a gente vai mexer? Eu não mexo com nada (Nielson Tembé, entrevista, 05 ago. 2017).

Essas dinâmicas coletivamente articuladas tomam o território como agente social, desde as perspectivas indígenas acerca da relação natureza-cultura, segundo pontuam Antônia Tuxá e Felipe Tuxá (2020). Isso mobiliza e produz diversos sentidos históricos e seus (des)compassos na relação entre as paisagens, suas territorialidades e múltiplas experiências sociais, humanas e não humanas. Conforme enfatiza Félix Tembé: “Pra nós Tembé a mata fala, o rio fala...” (depoimento, 29 maio 2024). Esse universo plural de vozes e agências outras impacta na inscrição e na compreensão sociocultural da realidade histórica do povo Tenetehar-Tembé, moldando seu cotidiano de relações no território e esquadrinhando outros sentidos para/desde suas histórias de vida, que circulam na aldeia.

Eu tinha o meu costume de toda vez que eu entrava no mato eu: “oh dono dessa mata, dono da mata... oh dono dessa ilha de mata, me dá licença pra... mas era difícil eu não fazer isso. Me esquecia assim. Porque antes... agora não, porque agora ninguém não tem mais mata por causa desse... mas toda mata tem seus donos, toda mata tem. Uma vez nos fomos lá em Bragança e teve um rapaz lá que me perguntou se era verdade isso ou se ainda existia. É verdade e ainda existe! Não é todo canto. Falando a verdade mesmo, não é todo canto que existe mais, mas que existi existe. E antigamente todo canto tinha, todo canto. Eu digo isso porque eu cansei de escutar... vê eu nunca vi nada não, porque ele não se mostra mesmo pra gente, né. Mas escutar assoviar, gritar, bater em pau, aconteceu muitas e muitas vezes comigo. Escutei foi muitas vezes. Tanto que é um mistério, né. Pode ser um mistério (Pedro Tembé, entrevista, 14 abr. 2024).

São múltiplas memórias e saberes que se cruzam e fundamentam os sentidos dessa profunda história Tembé. E cujos signos da sua r-existência estão fortemente ligados ao seu território-territorialidade no Guamá, às suas práticas culturais dinamizadas nas aldeias e a presença e agência dos espíritos (karuwaras), que também impactam na condução das ações Tembé. Focalizar isso é dar outra dimensão ao passado, em que as vivências e relações socioculturais deste povo não foram subsumidas pelos desígnios da tutelagem, mas redimensionadas enquanto estratégia para manutenção de sua existência na região. Nesse sentido, experiências e territorialidades dissidentes foram gestadas para contornar o poder tutelar e recriar seu modus vivendi, tomando a memória, os saberes e narrativas Tembé como elementos dinamizadores desse processo de reencantamento do cotidiano – e da sua história.

Oralidades indígenas e escrita da História: reflexões sobre justiça histórica e direito à memória

A trajetória do povo Tembé, narrada por si, ajuda a captar a diversidade histórica do Brasil e aprofundar esses registros da oralidade ancestral, e suas próprias categorias de compreensão do passado, que refazem o sentido hegemônico da História a partir dessas epistemologias plurais. Histórias indígenas que contemplam diferentes temporalidades, ritmos e dinâmicas socioculturais intimamente ligados a seus territórios de existência. Configuram regimes de historicidade próprios, que emaranham o tempo linear (e único, de base ocidental) com seus próprios episódios cíclicos, de fundo cosmológico, e outras teias temporais narradas (e atualizadas) através da memória transmitida dentro das aldeias por anciãs e anciãos, pelos pajés, parteiras, cantores e outros conhecedores culturais.

Nesse lastro, o trabalho de Márcia Maciel (2016) mostra o movimento coletivo de aprendizados e trocas ancestrais que possibilitou processos de reconexão e retomada do seu povo. Ao esquadrinhar as experiências de vida narradas por diversos interlocutores, a autora centraliza as tradições orais dos Mura como elos de (re)afirmação da identidade e pertencimento, acessadas por meio dessas memórias que fazem circular saberes e modos de viver e ocupar/manejar o território. “Minha consciência indígena nasce de toda a minha vivência familiar e social, mas se reconstrói a partir da História Oral que possibilitou tecer junto com as comunidades que faço parte as nossas tradições” (Maciel, 2016, p. 23). Ou seja, a retomada da memória faz reavivar sentidos sobre a história e identidade indígenas.

Entre os Tembé, como vimos anteriormente, a consciência sobre seu passado e suas r-existências no alto rio Guamá se fundamenta na memória social (individual e coletiva) transmitida nas aldeias, que se liga tanto com as histórias ancestrais quanto com diversas trajetórias dos grupos de família extensa que organizam social, política e territorialmente os Tenetehar-Tembé. Portanto, escrever a história deste povo é saber identificar que suas narrativas versam geralmente sobre uma dada aldeia, suas relações familiares e processos específicos (internos) de territorialização, enfatizando assim um recorte do passado que contempla um grupo familiar e suas múltiplas dinâmicas no território.

A gente é só uma família. Então, e assim em todas as aldeias. A gente só não tem, assim, esse vínculo mais próximo já Tawari, né, já é mais... mas as outras todas são bem próximas, né. Aqui, a tia Raimunda, filha da irmã do papai. Aqui, aldeia Sede, era o papai e o irmão dele, tio Padeirinho, entendeu. Aqui, é a Francisca e a Maria. A Maria é sobrinha, a Francisca é filha, né. No Tawa, no... no Pirá, a velha lá que é mãe, que é avó de todos e bisavó de todo aquele pessoal lá é sobrinha do meu pai, filha da outra irmã do papai. Pinawá é, lá todo mundo é neto do papai. Então, essas aldeias todas aqui é nossa família, não tem, entendeu. Na última reunião eu tava colocando isso pra todo mundo, né, falando na Reunião dos Velhos também colocando essa situação. É porque não tem ninguém que não seja família, né. E o meu pai foi uma pessoa, a família do meu pai foi uma pessoa muito importante aqui do povo Tembé (Piná Tembé, entrevista, 27 maio 2018).

Neste horizonte, as vivências coletivas/familiares e as memórias ancestrais ajudam a dimensionar a identidade indígena (neste caso, a Tembé) que se expressa através dessa relação entre parentes, lugares e os outros – grupos inimigos, brancos, animais, plantas e demais seres não humanos. E a visibilizar sua história, inscrita no seu território através dessas dinâmicas e suas vivências. Ou seja, existe uma historicidade indígena fractal que se cruza e coexiste com outras trajetórias, territorialidades e relações potenciais, que são igualmente atravessadas por suas próprias dimensões históricas, as quais ajudam a dar sentidos ao passado, ao presente e às projeções de futuro para cada povo, como entre os Tembé. Para bem mensurar isso, propõe Marshall Sahlins (2011), é preciso afastar-se do conceito ocidental de História e historicização para poder enxergar e tentar entender a diversidade de estruturas simbólicas (culturais) que explica as relações sociais desde suas historicidades territorializadas. Multiplica-se assim a ideia de história desde a perspectiva indígena, de seus vários mundos e das formas de narrar/transmitir o passado-presente.

Entender a história Tembé a partir de suas memórias e narrativas e tecer uma análise historiográfica sobre ela é focalizar episódios diversos, envolvendo os abusos e violências e suas formas de r-existência e autonomia, que emaranham tempos e situações no seu território. E essa escrita da história coloca em evidência sujeitos outros, como parteiras e pajés, relações familiares e parte do universo cultural e simbólico dos Tenetehar-Tembé, que seguia (e segue) vivo e pulsante nas aldeias. Ao dimensionar sua cultura na história, importa destacar sua ligação com o passado ancestral. “Veio de lá, do mundo das onças” (Bewãri Tembé, depoimento, 08 nov. 2023). As origens da cultura e da tradição do povo Tembé estão ligadas com outro tempo, espaço e relações potenciais, que fazem conectar suas vivências históricas – e r-existências – com o passado ancestral e sua cosmologia. Portanto, uma escrita da história Tembé precisa dar conta dessa outra racionalidade que explica o passado indígena (histórico e cosmológico) e suas dinâmicas no tempo presente.

Essa apreensão das narrativas cosmológicas e de seus sentidos nativos é um passo importante na reflexão etnográfica, ao mesmo tempo que permite captar nuances culturais da forma de organização social, política e territorial dos indígenas, como enfatizam Tânia Lima (2005) e Oscar Sáez (2006) ao tratar respectivamente dos Yudjá e dos Yaminawa. Um exercício que precisa ser melhor explorado na compreensão e análise historiográficas, no intuito de aproximar-se do pensamento indígena e de suas formas de explicação sobre a história. Na perspectiva dos autores, para compreender essas sociedades é necessário olhar para a sua cosmologia, lida enquanto história, cujos significados estão presentes nas distintas esferas do cotidiano nas aldeias e atravessam a memória dos mais velhos, que através de suas narrativas permitem acessar os tempos antigos e dão a conhecer múltiplos saberes ancestrais e suas tradições, passados de geração em geração nessas comunidades.

Porém, tais relações e dinâmicas foram alvejadas pela matriz colonial de poder e de pensamento em Abya Yala, ao longo dos séculos, que buscou a todo o custo subscrever outra realidade civilizacional (ocidental) para a diversidade de povos no continente, com suas respectivas línguas, culturas, territórios e modos de vida. Pela ótica colonial, essas sociedades eram atrasadas, inferiores e menos desenvolvidas em contraste com a Europa, um fato (forjado) que justificava a dominação desses povos – através da subalternização, escravização e servidão compulsória – e a exploração predatória de seus territórios. Como sustenta Aníbal Quijano (2005), essas novas relações de poder, balizadas por processos de racialização e desterritorialização, ligam-se a uma redefinição do passado que escamoteia as experiências históricas dos povos indígenas nas Américas, produzindo um esvaziamento de referências que impacta – e tensiona – sua própria existência no presente.

Esse legado colonial foi absorvido pelas nações independentes no continente, a partir do século XIX, espelhado nas explicações históricas (e totalizantes) que buscavam legitimar os processos de formação do Estado, da sociedade e da identidade nacionais. Ao fazer desarticular, e até certo ponto descontinuar, os modos tradicionais de vida, a língua, a cultura e o acesso à terra para os povos indígenas, o Estado propulsionou uma desagregação generalizada para, assim, integrar essas comunidades diferenciadas à nação, como observável no caso do Tenetehar-Tembé do alto rio Guamá. Um plano cujos efeitos ainda são presentes e sentidos nas Américas, de diferentes formas, apesar dos novos marcos legais que garantem a legitimidade de direitos e a autonomia política dos povos indígenas (Rivera Cusicanqui, 2010). Estruturas de poder e de pensamento que precisam ser rompidas e esfaceladas para bem mensurar uma outra História dos povos indígenas.

Na Amazônia, as marcas da colonialidade tentaram constantemente desestruturar essas relações e fazer apagar os legados indígenas, principalmente ao se apropriar de seus territórios de vida. Nesses circuitos, Priscila Faulhaber (1998) avalia como o processo de construção e fruição das fronteiras, sobretudo étnicas, produziu diversas descontinuidades históricas e, ao mesmo tempo, novos saberes sobre a fronteira e o território e formas de agir dos indígenas diante das contingências impostas pela situação colonial (e nacional) sobre suas realidades. Aqui, espaços e seres encantados são novamente centralizados na cartografia indígena, os quais ajudam a demarcar um conjunto de relações que regulam o seu território (em retomada) e a própria identidade desses povos. Em linhas gerais, como vimos entre os Tembé, é um processo de reencantamento do cotidiano tutelar, em que os conhecimentos e práticas ancestrais são reinseridos no dia a dia, de forma subterrânea, e passam a reorientar as relações e vivências indígenas, apesar das restrições e interdições impostas pelo branco, como assinala João Pacheco de Oliveira (1988) entre os Tikuna.

Logo, as memórias indígenas são reveladoras desses processos ambivalentes, entre a violência tutelar e as vivências nativas, que produzem sentidos amplos sobre o passado, fugindo de qualquer tipo de reducionismo. São histórias que contestam o enquadramento totalizante e objetificante da História ocidental e sustentam as modalidades de justiça e reparação históricas que estão na agenda de luta dos movimentos indígenas mundo afora (Smith, 2018). E para tecer uma história plural do Brasil, centrada nessas populações, é necessário reconhecer a multiplicidade de histórias-memórias e suas formas de narrar o passado-presente, tocando em dimensões específicas que dever ser analisadas com muita atenção, respeito e sensibilidade, de modo a não espetacularizar as violências e esvaziar suas narrativas e epistemologias, colocando-a sob a lente da “objetividade científica”.

Assim podemos falar de ações de justiça histórica no campo da historiografia atual, que possa devolver a dignidade às comunidades indígenas e criar mecanismos políticos que auxiliem nas suas reivindicações, especialmente acerca de seus territórios, desde uma chave reparatória. Afinal, a História é balizada por relações de poder que inscrevem e legitimam modalidades de saber (Trouillot, 2016), estando na base de constituição da História Única e suas interpretações equivocadas sobre diferentes experiências históricas no mundo (Adichie, 2019), cuja tradução estereotipada e homogeneizante é propagada ainda pelo Ocidente, mesmo que sob uma nova roupagem.

Essa estratégia reificada busca sustentar as relações assimétricas de poder/saber, de modo a assegurar e reforçar as condições de exclusão do Outro, tomado como subalterno. Logo, essa História é legitimadora da dominação colonial imposta desde o Ocidente, pois se apropria das experiências sociais, políticas e culturais não-ocidentais e transforma suas diferenças em marcadores radicais de desigualdade, retirando desses povos sua dignidade e humanidade (Trouillot, 2016; Adichie, 2019). É preciso fugir desse sistema explicativo. Problematizar tais assertivas, naturalizadas pela matriz ocidental de conhecimento, traz à tona princípios da justiça histórica e da reparação que devem ser destacados na produção historiográfica atual. E fazer reconhecer a pluralidade das histórias e a importância dessas narrativas sobre o passado, e o presente, como um caminho de reflexão histórica “para empoderar e humanizar” e “reparar essa dignidade despedaçada” (Adichie, 2019, p. 14).

Para além desses enquadramentos coloniais, e de suas artimanhas de destruição dos mundos indígenas em Abya Yala, os povos seguiram lutando e articulando estratégias de manutenção da existência, de suas epistemologias e territorialidades, o que nos evidencia o potencial da r-existência indígena diante da lógica de domínio colonial e pós-colonial (contextos nacionais). O caso dos Tembé, analisado aqui, elucida um pouco sobre essas dimensões através da sua oralidade, fazendo considerar suas agências no passado – e no presente – ligadas com a cultura e a tradição para reparar trechos de sua própria história que foram enviesados e simplificados pela visão dos karaí. Deste modo, pontuar os protagonismos indígenas no tempo, a partir de suas perspectivas políticas e cosmologias, é assumir uma crítica radical da versão oficial da História, contada pelos vencedores, e um novo modo de escrita da história, em colaboração, tomando as memórias e oralidades indígenas enquanto fontes imprescindíveis de informação para tais releituras do passado e promovendo mecanismos de restituição de seus legados.

Considerações finais

Diante do exposto no artigo, é possível compreender o papel central da memória e da oralidade indígenas, enquanto discurso e expressão nativa acerca do passado-presente, nos (des)caminhos de discussão sobre justiça histórica e reparação na atualidade. E como tais processos estão presentes, de uma forma ou outra, nas narrativas Tembé que recontam sua história e apresentam seu cotidiano nas aldeias, subvertendo os signos da tutelagem e da violência e agenciando sua existência em face de tais situações, recriando assim seu passado ancestral. São episódios que a memória Tembé traz à tona, através da oralidade, evidenciando como a interpretação nativa destaca outras dimensões dos fatos, espraiadas no cotidiano, nas relações internas (familiares) e no próprio território. E isso nos ajuda a compreender esses meandros históricos pela ótica do povo Tenetehar-Tembé do Guamá.

Assim, essas múltiplas histórias estão carregadas de ancestralidade, afetividades, conflitos, violências, formas de autonomia e agenciamentos (de humanos e não humanos) que demarcam relações distintas – e específicas – com territórios em diferentes planos de existência, cujos exercícios de alteridade no universo indígena produzem e agenciam suas identidades e territorialidades. São experiências outras que possuem seu próprio sentido histórico, num espiralar de momentos que vão e que voltam, sendo ritmados por saberes e práticas culturais territorializados e mediados pela cosmopolítica indígena (Kopenawa; Albert, 2015). Temos, então, uma dinâmica histórica múltipla, com vários pontos de vista (perspectivas), que não é comportada pela inteligibilidade ocidental e seu modus operandi de mensurar/explicar o mundo através de uma perspectiva linear, racional e objetiva.

Ao dimensionar uma parte das histórias Tembé, acessada por meio da oralidade, foi possível desvelar um passado mais complexo e autônomo, em que suas estratégias de r-existência ditaram a ordem dos acontecimentos, dentro de seus próprios termos. Histórias que não sustentam apenas, como fazem os documentos oficiais e uma historiografia mais tradicional, aspectos produzidos sobre esse povo a partir da ótica não-indígena, como a ideia de mistura e de uma perda de identidade étnica, por exemplo. Muito pelo contrário. Suas narrativas e modo de vida na aldeia, interpretados desde a memória ancestral, revelam como tais concepções engessantes, e reducionistas, foram criadas para legitimar o esbulho territorial, ao colocar em suspeição a etnicidade Tembé.

Em contestação a isso, os Tembé afirmam e reafirmam sua identidade e indianidade, lutando pelo direito ao seu território. É através dessas profundas camadas de história e de memória que é possível (e necessário) produzir novos sentidos históricos, em conjunto com os mais velhos e conhecedores culturais, que tensionem as táticas de esquecimento, silenciamento e apagamento dessas múltiplas relações impostas sobre a realidade Tembé em suas aldeias, e em seu território. Meandros de vida e de existência, inclusive na relação com outros seres (não humanos) e seus tempos-espaços específicos, que somente podem ser acessadas através da oralidade indígena e seus próprios modos de contar e interpretar o passado-presente, que igualmente inscreve perspectivas ancestrais para o seu futuro.

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Notas

[1] Mestre em Diversidade Sociocultural pelo Museu Paraense Emílio Goeldi. Professor Auxiliar da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário de Bragança. Pesquisador do GEIPAM – Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão. Integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros. Coordenador Setorial Norte do GT Emancipações e Pós-Abolição – GTEP-ANPUH (2023-2025). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1721-5791. E-mail: emilioribeiro@ufpa.br.
[2] A partir dos conceitos de Célia Xakriabá (2018) e de Carlos Walter Porto-Gonçalves (2006), lanço uso da ideia de práxis de r-existência para os Tembé como forma de dimensionar as estratégias de contra-tutelagem criadas por eles no século XX, e atualizadas no tempo presente, as quais são reveladoras de seus modos de agir e resistir à matriz colonial de poder/saber a partir de suas próprias existências. Ou seja, a existência é tomada como mote de resistência (r-existência) e colocada como forma reflexiva sobre a realidade (práxis).
[3] Categoria nativa relacionada aos espíritos ancestrais (do passado cosmogônico), dos animais, das plantas e de outros entes que habitam os diferentes espaços na cosmografia Tembé e agem sobre a realidade social, tanto em momentos de festa/ritual quanto no cotidiano de forma geral, como explicado por Bewãri Tembé (entrevista, 06 abr. 2018).

Autor notes

1 Mestre em Diversidade Sociocultural pelo Museu Paraense Emílio Goeldi. Professor Auxiliar da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário de Bragança. Pesquisador do GEIPAM – Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão. Integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros. Coordenador Setorial Norte do GT Emancipações e Pós-Abolição – GTEP-ANPUH (2023-2025). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1721-5791. E-mail: emilioribeiro@ufpa.br.

Ligação alternative

Caminhos da História

Institución: Universidade Estadual de Montes Claros

Volumen: 29

Número: 2

Publicado: 2024

Recibido: 29 de mayo, 2024

Aceptado: 28 de junio, 2024

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