Resenha
FONTES JORNALÍSTICAS E ABOLIÇÃO: RESENHA DA OBRA “EM NOME DA ORDEM” DE ROGER ANÍBAL LAMBERT DA SILVA (2021)
Julio Cesar Aquino Teles Ferreira i julio.teles@unifesp.br
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil
Recepção: 30 Março 2024
Aprovação: 29 Abril 2024
SILVA Roger Aníbal Lambert da. Em nome da Ordem: o jornal do commercio e as batalhas políticas da abolição. 2021. Niteroi. Eduff. 214pp. |
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A obra “Em nome da Ordem”, de Roger Aníbal Lambert da Silva, aborda com profundidade e perspicácia a historiografia relacionada às fontes jornalísticas do século XIX. O autor propõe uma análise inovadora sobre o papel desempenhado pelo “Jornal do Commercio” no contexto da abolição da escravatura, utilizando-se não apenas da fonte como suporte, mas ancorando-se nas aberturas historiográficas[1] para explorar como o periódico influenciou a ordem da sociedade oitocentista.
Silva destaca a relevância da imprensa na esfera pública ao longo do século XIX, conforme evidenciado por historiadores como Marco Morel e Angela Alonso. A obra ressalta que a imprensa foi um espaço crucial para o debate sobre a República e a Abolição, situando o “Jornal do Commercio” como um dos veículos que buscavam articular a opinião pública nesse cenário de disputa de ideias políticas desde a Independência.
O autor contextualiza a formação do “Jornal do Commercio”, fundado por Pierre Plancher na década de 1820, destacando sua retórica de neutralidade. Plancher, exilado político francês crítico ao regime restauracionista de Carlos X, moldou o jornal de maneira moderada e atrelada à neutralidade e questões comerciais. A análise histórica revela que, antes de fundar o periódico em 1827, Plancher esteve envolvido em outro jornal, o “Spectador Brasil”, que foi desfeito após polêmicas.
A classificação da imprensa como “imprensa abolicionista” e “imprensa republicana” em jornais como “O Paiz” e “Gazeta Nacional”, contrastando com jornais defensores da ordem como “Brazil” e “Novidades”, destaca as complexidades do panorama jornalístico da época (SILVA, 2021, p. 40-41). O “Jornal do Commercio” adotou a retórica da neutralidade, apesar de ser financiado por conservadores e de ter sido impresso por um editor com permissão do imperador D. Pedro I.
Silva revela, mesmo diante da pretensa neutralidade, como o “Jornal do Commercio” e seus proprietários, frequentemente distantes e se comunicando por cartas, mantinham uma retórica alinhada aos interesses de leitores e patrocinadores. Se destaca, ainda, personagens esquecidos pela historiografia, como Gusmão Lobo, redator abolicionista conservador do “Jornal”. A análise relacional entre contexto histórico, historiografia e personagens históricos, incluindo jornais da época, é habilmente construída, conferindo riqueza à narrativa. A seção “Publicações a pedido” emerge como ponto crucial para desvendar a retórica da neutralidade, evidenciando que, mesmo considerada um apêndice, permanecia como espaço para afastar-se de polêmicas sob a influência dos interesses conservadores. O autor cita um articulista do próprio jornal que destaca como o neutro na década de 1880 era percebido no debate dentro da imprensa, sendo aquele que não ia contra o governo, na realidade, o periódico visava constituir uma opinião favorável aos grupos políticos e interesses que representavam (SILVA, 2021, p. 69).
No segundo capítulo, “A retórica da prudência contra o imobilismo escravista”, o autor apresenta como ocorreu a influência das opiniões publicadas no jornal com as disputas e divergências políticas do período. O mais interessante dessa parte é que ele mostra uma mudança de posicionamento do próprio “Jornal do Commercio” a partir da década de 1880, quando o debate sobre o fim da escravidão ganhou outras dinâmicas naquela sociedade, mesmo sob um viés econômico. Neste capítulo, o autor destaca como o jogo político é refletido nos periódicos, de acordo com os interesses destes.
A discussão parlamentar aparece na seção “Publicações a pedido”, dentre os quais se encontram escritos do próprio Joaquim Nabuco, considerado um dos “filantrópicos ingleses do Sr. Dantas” (SILVA, 2021, p. 73). A própria denominação “filantrópicos…” expressa um grupo que estava a serviço do presidente do conselho. Contudo, já no início do ministério Dantas, Gusmão Lobo afirmou que não tinha uma posição de apoio ao governo, mas sim de combate aos adversários. Gusmão Lobo, em muitos de seus artigos, faz referência à Lei de 1831, lei que inclusive foi bastante utilizada por advogados abolicionistas como Luís Gama. O próprio Joaquim Nabuco apoiou o ministério Dantas por aquilo que ele entendia como “força do direito” (SILVA, 2021, p. 77). Segundo o historiador:
Enquanto os ‘filantrópicos ingleses’ atacavam a ‘legalidade caduca do cativeiro’, respaldando o projeto Dantas, o periódico Brazil atacava a propaganda abolicionista do governo, defendendo, por sua vez, a legalidade da resistência escravista (SILVA, 2021, p. 80).
Assim, como analisado por Silva, ocorreu uma oposição à retórica do direito mobilizada para a questão da “legalidade caduca do cativeiro” e os opositores do projeto Dantas que mobilizaram a “retórica da ameaça”. Essa disputa pautou o binômio legalidade-ilegalidade (SILVA, 2021, p. 82).
Esta disputa retórica aparece nos periódicos, como é demonstrado no livro. No entanto, sente-se falta de aprofundamento sobre as mencionadas retóricas, pois se, por um lado, o autor demonstra sua presença nas fontes que analisa, por outro, a diferenciação entre tais retóricas para o leitor leigo fica subjetiva.
Continuando o tema, surge um ponto importante para a possível guinada na década seguinte do “Jornal do Commercio”, a Lei de 1871. Com ela, Gusmão Lobo escreve sobre a questão da experiência adquirida e que o receio desta lei “[...] provocaria, dentre outras coisas, ‘insurreições da escravaria’ [...]” (SILVA, 2021, p. 84). Utilizando Clarkson como base, o autor discorre sobre a resistência escravocrata que se valeria de perigos inventados para justificar a manutenção do status quo. Ele apresenta nesta parte de sua obra, e que vale destacar, o fato do “Jornal” incorporar transcrições de discursos realizados em outros locais. Tanto é que Joaquim Nabuco sugeriu, em suas conferências, a necessidade de se pensar no dualismo da historiografia entre o abolicionismo legalista e parlamentar, e o abolicionismo popular e radical (SILVA, 2021, p. 89). O fato é que os “ingleses de Dantas” atacaram a retórica da ameaça com a retórica da experiência. Porém, apontam que a ameaça poderia estar no futuro, não se limitando apenas a atacar a retórica da ameaça.
Como aponta o autor, houve um discurso em torno da razão nacional, que se distancia do “Jornal” que se pauta a numa razão econômica, diferente da razão social mobilizada pelos abolicionistas (SILVA, 2021, p. 102). Mobilizando suas fontes, o historiador aponta que, ao contrário do clima de tranquilidade, nos jornais o clima era de insegurança devido aos diversos movimentos abolicionistas (SILVA, 2021, p. 116; 120). Um fator positivo apresentado por ele é a necessidade de colocar as retóricas dos jornais umas em relação às outras, afinal, elas possuem relação dialógica (SILVA, 2021, p. 104).
No capítulo seguinte, Silva busca problematizar algumas noções estabelecidas pela historiografia de que o “Jornal do Commercio” construiu um clima de tranquilidade. E mais, ele também coloca em questão a historiografia que defendeu que Joaquim Nabuco, em seu livro de 1883, assumia que sua posição abolicionista não se dirigia aos escravos e as insurreições, ou mesmo aos quilombos do interior. Como bem observado por Silva, alguns anos depois, Nabuco publicou em “O Paiz” a legitimidade do “crime de insurreição” (SILVA, 2021, p. 114). Do mesmo modo que os jornais evidenciaram as notícias dos escravos fugitivos, dando luz às revoltas e à luta da população negra, mesmo que indiretamente, os periódicos conservadores diziam-se contra a ordem do movimento abolicionista. Silva apresenta como ocorreu uma disputa na seção “Publicações a pedido” entre o termo “insurreição” que criminaliza a fuga dos escravos e “êxodo” que as legitimava. O mais curioso é que essa sessão contrariava o que o próprio jornal tentou afirmar de que era um momento com clima de tranquilidade.
O que as próprias disputas nas narrativas jornalísticas demonstram e, o autor consegue demonstrar para o leitor por meio das fontes, é que havia um clima de insegurança em que se disputava uma narrativa da ameaça dos escravos e abolicionistas e do outro lado pelo governo e pelos escravistas. Nas disputas, divergindo do “Jornal do commercio” et al, periódicos como “O Paiz” e “Cidade do Rio” alegavam que o problema não era o abolicionismo e sim a defesa do governo ao escravismo (SILVA, 2021, p. 121). Outro movimento interessante feito na análise é a relação com as questões políticas liberais e conservadoras. Além dos posicionamentos, que se entrelaçam e divergem nas fontes jornalísticas dos oitocentos, há respingos da política do período nos jornais. Isso porque, os liberais paulistas, por exemplo, “[...] em vez de se unir contra as tão temidas ‘sublevações de escravos’ - preferiam atacar Antonio Prado pelo suposto ‘plano político’” (SILVA, 2021, p.126). Essas disputas, confirmam que não havia um consenso e que, os jornais, disputavam sobre as narrativas. Alguns colocavam o perigo do abolicionismo, como anárquico, e outros, mostravam que o sangue derramado não era pelos ditos escravos insurretos, mas pela repressão do próprio governo em nome da ordem (SILVA, 2021, p. 133).
O próprio “Jornal do Commercio” considerava que os escravos não estariam prontos para a liberdade (SILVA, 2021, p. 134). Nos artigos publicados em jornais, é possível ver as posições de agentes históricos importantes como Joaquim Nabuco que defendia a liberdade e outras reformas, como a democratização da terra; André Rebouças que também afirmou sobre a injustiça da escravidão e a necessidade de uma democracia rural brasileira (SILVA, 2021, p.140). Por outro lado, nas páginas do “Jornal do Commercio” continuava se defendendo “[...] em nome da nação e contra a ameaça abolicionista, ‘a boa propaganda em favor dos interesses da lavoura’” (SILVA, 2021, p. 140).
Como já dito, o autor apresenta questionamentos relevantes sobre o uso das fontes jornalísticas, em nossa análise este é um dos pontos fortes do livro. Novamente no trato delas, ele questiona sobre o equívoco de certa historiografia tomar por fato o que eram disputas com interesses distintos. Inclusive, baseando-se em Reinhard Koselleck, ele aborda a importância do “poder de veto” das fontes. Como bem demonstra o capítulo três, existiram batalhas entre os jornais de acordo com as ações dos diversos agentes envolvidos nos acontecimentos (SILVA, 2021, p. 149).
Em seu último capítulo, é possível levantar a hipótese de que o autor optou por apresentar todo o contexto das fontes para explicitar a noção que usa de retórica. Isto é, Silva busca mostrar como uma semana após a abolição já existiam publicações que queriam tratar do acontecimento recente e, mais, define que as batalhas entre os periódicos “[...] constituíram retóricas, servindo de munição para a mobilização em meio às batalhas políticas, no âmbito das quais se disputava distintas propostas para o encaminhamento da extinção da escravidão.” (SILVA, 2021, p. 151). A disputa em torno da memória da abolição foi desde a inserção de São Paulo como aquele que levou a esse acontecimento, devido à importante figura de Antônio Prado (SILVA, 2021, p. 154), ou ainda da luta popular em que se inseriram os próprio escravos que fez com que a monarquia obedecesse a vontade da nação (SILVA, 2021, p. 157), ainda que o povo não percebesse isso. Nesses embates, o próprio ato da monarquia do 13 de maio foi divulgado de maneiras distintas. O jornal “Novidades”, que era escravista, dizia que esse foi o “erro da regência” que abalou a monarquia (SILVA, 2021, p. 160). Por outro lado, alguns articulistas publicaram na seção “Publicações a pedido” defesas à Coroa alegando que ela havia sancionado a vontade do povo (SILVA, 2021, p. 162-163), por exemplo Gusmão Lobo sob o pseudônimo Junius. Sobre esse assunto não há consenso do “Jornal” de um marco estabelecido que tenha levado ao fato, alguns artigos colocam em 1871 e outros em 1850, porém o que parece persistir na perspectiva transmitida pelo periódico é a noção de que a abolição fora um ato filantrópico[2] realizada em plena paz (SILVA, 2021, p. 170-171).
Segundo o autor, o critério para que determinados atores da época fossem lembrados ou não nas páginas do periódico era político (SILVA, 2021, p. 173), o que conforme esperamos ter deixado claro, possui apoio em todos os capítulos da obra. Silva encerra esse capítulo com uma importante contribuição para a historiografia, a partir de um balanço com importantes historiadores do tema, Roger Aníbal Lambert da Silva questiona sobre qual tem sido a memória que os historiadores têm preservado sobre a abolição e seu contexto, inclusive os que se julgam imunes dessa função (2021, p. 178). Ao problematizar a visão sobre os agentes e dos periódicos conforme os interesses, o autor também expressa a importância de que a historiografia tomou posicionamentos aos quais ele diz não seguir. Sua opção nesse trabalho foi partir da ideia de que as posições sociais e políticas não eram separadas, estava em pauta o regime de trabalho e o próprio destino político do Brasil. Em suas palavras: “[...] problematizar a forma como sua agência tem sido representada, isto porque a nomeação de acontecimentos e das ações dos atores não era nada neutra, mas se dava, isto sim, no âmbito do jogo político” (SILVA, 2021, p. 182).
Assim, é preciso problematizar a própria historiografia pela cristalização de determinadas memórias sobre a abolição. Segundo o autor, de modo convincente dado suas fontes, a retórica da dádiva que aparece no “Jornal do Commercio” atendia ao próprio interesse dos senhores em relação aos libertos, porque buscava mobilizar uma “nova era” se protegendo das ameaças abolicionistas e mantendo a própria ordem conservadora - de modo, paradoxal. Em síntese, ao analisar a obra “Em Nome da Ordem” de Roger Aníbal Lambert da Silva, se pensarmos nas contribuições de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” e Emília Viotti da Costa em “Da Senzala à Colônia”, percebemos uma complexa trama de interesses políticos, econômicos e sociais que permearam o debate abolicionista no Brasil do século XIX.
Enquanto Silva nos conduz habilmente pelos meandros da imprensa da época e suas implicações na luta pela abolição, as obras de Holanda e Viotti da Costa fornecem um contexto mais amplo, destacando as raízes profundas da sociedade brasileira e as transformações necessárias para a construção de uma nação mais justa e igualitária. Assim, ao unir essas análises, somos levados a compreender não apenas a importância do “Jornal do Commercio” como veículo de divulgação e influência, mas também a intricada teia de relações que moldaram os rumos da abolição no país, contribuindo para uma reflexão crítica sobre nosso passado e seus reflexos no presente. Como contribui positivamente o historiador, é preciso estar atento às palavras e perceber que elas não são neutras, mas pelo contrário são instrumentos de luta (SILVA, 2021, p. 187), daí a atenção às retóricas (da prudência, da ameaça e da dádiva) conforme os discursos nos periódicos. Devido a isso, parece-nos acertiva a conclusão do autor de que o “Jornal do Commercio” não era partidário, mas tomava partido daí seu conservadorismo em nome da ordem política, social e, principalmente, econômica (SILVA, 2021, p. 188).
Referências bibliográficas
COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: UNESP, 1998.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SILVA, Roger Aníbal Lambert da. Em nome da Ordem: o jornal do commercio e as batalhas políticas da abolição. Niteroi: Eduff, 2021.
Notas
Autor notes
Ligação alternative
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