Resenha
O RESGATE DE “ELISA BRANCO”: GÊNERO, TRAJETÓRIA E FORMAS DE NARRAR A HISTÓRIA DO PCB
Gabriela Alves Miranda i gabriela.biga@gmail.com
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Brasil
Recepção: 29 Maio 2024
Aprovação: 28 Junho 2024
FERREIRA Jorge. Elisa Branco: uma vida em vermelho.. 2023. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 266pp. |
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Quem já pesquisou em jornais da imprensa comunista nos primeiros anos da década de 1950, sabe. Quem não teve a oportunidade, bastante facilitada atualmente com o acesso à base da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, farei o favor de abreviar o trabalho, indo direto ao ponto. Seja qual for o objetivo do pesquisador diante das páginas de um jornal comunista como o jornal Imprensa Popular, um dos mais populares da época, é certo que irá se deparar com o nome de Elisa Branco por ali, próximo a sua palavra de busca destacada. O filtro “Elisa Branco” retornou o resultado de 267 ocorrências para esse periódico (diário com exceção dos domingos e segundas-feira), e 107 para o jornal Voz Operária (que eram semanal). Ainda assim, seu nome não é tão lembrado quando se trata da história e memória do Partido Comunista do Brasil (PCB).
Portanto, o livro de Jorge Ferreira publicado em 2023 “Elisa Branco – uma vida em vermelho” pelo selo da Civilização Brasileira é mais que bem-vindo. É sua segunda biografia (o autor lançou João Goulart, uma biografia em 2011). Historiador com ampla trajetória em pesquisa e publicações sobre a história do Brasil republicano, do trabalhismo e do comunismo brasileiro sob ótica da cultura política, o autor faz justiça à memória de Elisa Branco. A experiência de leitura pode se mover facilmente das mesas de trabalho às cabeceiras. A leitura flui. Como num romance, precisamos saber o que aconteceu com Elisa Branco. E talvez essa marca do livro venha da preocupação genuína que seu texto alcançasse o grande público, sem a perda do espírito crítico que se espera dos grandes trabalhos de análise histórica. Com linguagem livre de jargões acadêmicos, o livro dispõe de notas de rodapé breves e boxes explicativos que complementam a narrativa, com observações sobre a época referenciadas por especialistas ou apresentando trechos extraídos da documentação. Vale destacar a qualidade do caderno de imagens que traz a ilustração reiteradamente publicada na imprensa reproduzindo a ação de protesto de Elisa, e servindo às campanhas para sua libertação. Além disso, há fotografias públicas e privadas, imagens das notícias dos jornais e materiais das campanhas que Elisa participou.
Ferreira se debruçou sobre a trajetória dessa mulher costureira (ou melhor, modista, como ela se autodenominou em entrevista)[1]militante comunista nascida em 1912 que viveu entre Barretos e Bebedouro até se instalar na capital paulista em 1947, onde faleceu em 2001. Uma mulher comum, que quando criança sentiu a perda do pai aos 6 anos de idade, se recusando acreditar no drama que a família se via obrigada a lidar. Em meio as dificuldades decorrentes, sentiu o destrato grosseiro de sua professora, e decidiu abandonar cedo os estudos, indo aprender o ofício da costura com uma prima. Uma mulher que “sofreu, riu e apanhou”, envolvida numa relação apaixonada e explosiva com o namorado que se tornou o marido Norberto. Foi mãe de duas, avó, amiga, trabalhadora. Uma mulher comum que, quando garota, pedia dinheiro à mãe para comprar mais um fascículo dos jornais que narravam a saga da Coluna Prestes, fascinada com o “Cavaleiro da Esperança”. Como muitos, ingressou no PCB em 1945, num contexto extremamente favorável ao Partido após a Segunda Guerra Mundial em que alcançou sua legalização como parte do processo de redemocratização do país depois de 15 anos de Governo Vargas, sendo 8 deles de ditadura do Estado Novo. Essa mulher que já possuía notoriedade, como demonstra o autor – durante a fase de moradia em Bebedouro sua casa tornou-se ponto de encontro para as reuniões comunistas, era uma liderança nas atividades de apoio a militantes, e recebia diariamente leite e pão frescos em sua porta, gentilmente presenteadas pelo padeiro colega de luta – ampliou seu círculo, passando a ser conhecida nacional e internacionalmente a partir de uma atitude, tomada em um único dia.
Conhecida como proativa, destemida e comunista de grande destaque em sua época, persistindo na militância mesmo após a ilegalidade compulsória do Partido em 1947 quando a fase moderada foi substituída por uma linha radical (prova de sua lealdade, pois nesse momento o Partido teve uma grande evasão de membros). Branco participou intensamente das organizações feministas do PCB e da campanha pela Paz, que foi a maior frente do Partido no pós-guerra e Guerra Fria – o Movimento dos Partidários pela paz foi lançado pelo PC da URSS também em 1947, sendo seguido pelos PCs de todo mundo e mobilizou artistas, intelectuais, militantes e pessoas comuns, fossem comunistas ou não, para que se posicionassem contra a guerra atômica. Assim, de tabela, esse livro faz jus à memória das mulheres militantes comunistas e à história do Partido Comunista, conforme o próprio autor enuncia na apresentação. Com o que acrescentamos, o livro também é uma contribuição à história do próprio país, que vai ganhando novos prismas interpretativos, abrindo caminhos e se distanciando daqueles empobrecidos de uma história única.
A narrativa de Ferreira reservou um capítulo para destacar “A ousadia de Elisa”. Durante o desfile de 7 de setembro de 1950 no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, com presença de autoridades, inclusive o governador do Estado Adhemar de Barros, os comunistas distribuíam panfletos e manifestos e alguns foram presos, entre os quais Elisa Branco.
Nesse evento, Elisa abriu uma faixa com os dizeres “os soldados, nossos filhos, não irão para a Coreia” em protesto contra a possibilidade do envio de tropas brasileiras à Guerra da Coreia. É uma passagem emocionante na narrativa, porque sabemos ser momento decisivo de sua trajetória, mas também porque trata da tensão vivida no momento que o autor procura reproduzir. O conjunto de fontes que embasou a pesquisa de Jorge Ferreira foi formado pelos escritos de memória da biografada, notícias de jornais, arquivos policiais, além de entrevistas guiadas pelo método da história oral. Contudo, a fonte zero, o ponto de partida para o desenvolvimento da pesquisa foram as memórias de Elisa Branco escritas em 1995, incentivada por seus familiares e que foram denominados como Livro I e II pelo próprio autor que faz questão em contar essa história logo no início. Jorge Ferreira contou que atendeu ao chamado de uma ex-aluna de quem havia sido orientador da monografia de mesmo título em questão sobre a vida de Elisa. Maria Aparecida Amorim havia acumulado boa documentação para escrever seu trabalho e lhe confiou o material substantivo que viria dar: cópias digitais compiladas dos arquivos policiais levantadas pela própria Elisa Branco a seu respeito juntamente com a versão impressa dos mesmos acrescentada com suas anotações e comentários nas bordas. As lembranças organizadas pela memória de Elisa escritas nos anos 1990 não amenizavam: “Sai fora [,] DOPS[,] você é nojento!”, “Que crime [h]ediondo, só na cabeça de policial fascista que quer ganhar dinheiro a custa [de] forjar crime onde não existe.” (Ferreira, 2023: 245, 247). Referia-se aos agentes do DOPS/ DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo) que acumularam muitas páginas de informações da vigilância sobre seus passos.
Branco passou a ser vigiada pelos agentes do DOPS desde 1946. Ao todo, Branco passou por 4 prisões em sua vida (uma delas após o Golpe de 1964), mas foi a abertura da faixa de protesto que depois foi reproduzida nos jornais, que levou a sua detenção mais longa, cerca de 1 ano enquanto as outras duraram poucos dias, sendo que sua condenação era de mais de quatro anos. Essa prisão também fez com que seu nome estivesse frequentemente na imprensa comunista, e proferido nos discursos mesmo entre não comunistas, que passaram a exigir sua libertação. Ferreira mostra como a imagem de Elisa Branco foi usada pelo PCB para reforçá-la como modelo de militante, mulher, mãe e revolucionária. Do anonimato, após 3 meses de sua prisão, Elisa se tornou notícia, inclusive no Pravda de Moscou. Ferreira mapeou a incidência de Elisa Branco na imprensa, demonstrando como a intensidade dos primeiros anos vai se arrefecendo até desaparecer, percebendo as reações diante das negações aos pedidos de Habeas Corpus, as justificativas jurídicas embasadas pela ideologia do anticomunismo e a cobertura após a libertação de Elisa. Ela recebera homenagens de escritores famosos para a cultura comunista como Jorge Amado e Dalcídio Jurandir, mas também teve apoio de personalidades e políticos de outros espectros.
Fruto e prova de seu prestígio, Branco foi laureada com o Prêmio Stálin da Paz no ano de 1952. O prêmio foi instituído em 1949 e contemplava comunistas de destaque no mundo inteiro, articulados com o Movimento dos Partidários da Paz. Entre brasileiros, o prêmio foi concedido a Jorge Amado em 1951, à Elisa Branco e à Oscar Niemeyer em 1963. O escritor recusou o prêmio após as denúncias expressas pelo Relatório de Kruschev e o arquiteto foi contemplado em data posterior à desestalinização quando o prêmio mudou sua denominação para Prêmio Lenin da Paz. Elisa foi a única que permaneceu vinculada a tal honraria diretamente associada a Stálin. Doou a maior parte do prêmio em dinheiro ao PCB, uma quantia considerável com poder de compra de bens como um apartamento ou carro de luxo, o que gerou conflitos familiares, já que as condições financeiras eram de dificuldades.
Elisa viajou para Moscou para participar da cerimônia de premiação em dezembro de 1952. Por causa da variação de temperatura pela recepção do inverno russo, foi acometida por forte gripe que lhe deixou na cama de um hospital enquanto os outros passeavam na Praça Vermelha e outros pontos turísticos e instituições soviéticas, frustrando suas expectativas. Porém, as impressões de viagem à Moscou de Elisa Branco estão registradas em um livro de entrevistas realizadas por iniciativa da Federação de Mulheres do Brasil, entre outros 15 relatos de mulheres que conheceram a URSS publicado pela maior e mais longeva editora comunista no Brasil, a editorial Vitória em 1954. Ela narrou sua sensação na noite solene da premiação assim como suas visitas a fábricas, casas de moda, e um espetáculo de ópera destacando que era sua primeira vez em um teatro, já que nunca teve tal oportunidade no Brasil.
A pergunta central do autor é “Como explicar que uma militante tão conhecida e celebrada tenha desaparecido dos meios de comunicação do Partido?” (Ferreira, 2023:163). Além da imprensa, seu nome também não é encontrado nas memórias publicadas dos antigos militantes e na historiografia sobre o partido (com exceções pontuais as quais referencia). Se tem um lado da própria posição paradoxal que o Partido reservava à mulher a considerar. Ferreira também pontuou um aspecto importante da relação entre história e memória que pode explicar os silenciamentos. O esquecimento de Elisa nas análises e memórias do Partido se relaciona com as mudanças vividas no interior da cultura política comunista internacional, a partir da crise instaurada com a denúncia e crítica a personalidade de Stálin com relatório Kruschev em 1956. Jorge Ferreira habilmente demonstra o perfil da militância de Elisa. Ela era o que pejorativamente denominavam como tarefeira, ligada à atuação prática e pouco afeita aos debates teóricos do marxismo, aguerrida à cosmogonia soviética, prestista, stalinista, fiel às linhas do PCB. Para ela a “nova política” e os “eurocomunismos” eram coisas de traidores, o que gerava o grande motivo do conflito com seu genro, o historiador Fernando Novais (representante de uma nova geração, crítica ao stalinismo).
O faro do historiador de Ferreira procurou ouvir os ruídos desse silêncio. Levou à sério a declaração de outra militante, D. Brites, que em depoimento durante entrevista para o livro publicado por Ecléa Bosi em 1987 “Memória e Sociedade: lembrança de velhos” disse: “No dia em que se escrever a história do partido comunista, na primeira linha tem que estar Elisa Branco” (Ferreira, 2023: 14 apud Bosi, 1987: 285). A imagem da militância de Elisa Branco impressa nas folhas dos jornais comunistas esteve associada a luta pela paz e a visão de mulher e mãe compartilhada pelo PCB. Ainda assim, Ferreira mostra como senso de justiça e solidariedade eram parte de sua personalidade.
A sensibilidade do autor no tratamento da documentação se destaca em todo livro, ao lidar com a “escrita de si” de Elisa Branco, por exemplo. Também na seleção dos trechos das entrevistas como aquele que serviu de epígrafe ao livro em que Luiz Carlos Prestes Filho narrou a tristeza de sua mãe, Maria Prestes. Enquanto estavam exilados em Moscou, ele quebrou um copo que havia sido presente de sua leal amiga Elisa Branco e o filho de 12 anos viu a mãe chorar pela primeira vez. Contudo, seria interessante pensar na relação dessa escrita autorreferencial com o processo de redemocratização que o país experenciava, ambos nos anos 1990. Branco escreveu suas memórias em meio à abertura e democratização do acesso aos arquivos policiais, iniciado com a chamada Lei de arquivo de 1991.
Por sua vez, é notável que documentação policial tenha sido criticamente tratada, considerando suas condições de produção e intenções. Apesar da narrativa de Ferreira sobre a vida de Elisa Branco ter sido pensada a atender o grande público, talvez o autor pudesse ter explicado com maiores detalhes o contexto do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos. Acordo esse assinado em março de 1952, mas que estava em fase de negociação desde a eclosão do primeiro conflito significativo da Guerra Fria, a Guerra da Coreia (1950-153) em junho de 1950. Embora a solicitação oficial da ONU (organização das Nações Unidas) para o envio de tropas brasileiras lutarem na Coreia em apoio ao exército norte-americano tenha ocorrido em junho de 1951 (sendo que a prisão de Elisa se deu em 7 de setembro de 1950), o debate sobre tal possibilidade antecede ao documento e possivelmente influenciou a motivação para a mensagem na faixa desfraldada por Elisa Branco naquele 7 de setembro. Havia a expectativa de que o acordo financiasse projetos desenvolvimento para o país, ainda que não houvesse de fato a intenção do governo brasileiro no envio das tropas, não havia certezas uma vez que estava viva a memória da participação da FEB na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. A campanha contra o envio das tropas brasileiras possuiu a mesma duração do conflito. Assim, a agenda dos comunistas, que juntos com os nacionalistas formaram o grupo de pressão contrário essa derivação do Acordo, não era algo sem sentido. Esse grupo se contrapunha aos liberais que defendiam apoio irrestrito aos Estados Unidos em troca de recursos materiais e a representação de apoio ao mundo livre (não comunista). Se o objetivo do autor era reforçar a ideia da injustiça da prisão de Elisa Branco, esse aspecto mereceria mais atenção a fim de situar melhor sua atitude, que como ele mesmo ponderou, foi baseada em uma decisão coletiva partidária.
Notas
Autor notes
Ligação alternative
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