Resenha
DA REVOLUÇÃO À CONTEMPLAÇÃO: UM PANORAMA DA FILMOGRAFIA DE PATRICIO GUZMÁN
Samuel Torres Bueno i samueltorresbueno@gmail.com
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Recepção: 09 Fevereiro 2024
Aprovação: 09 Março 2024
MONTEIRO Fábio. O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens. 2022. Jundiaí. Paco Editorial. 412pp. |
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No mês de setembro do ano passado, houve a efeméride dos cinquenta anos do golpe de Estado que deu origem à ditadura militar no Chile. O referido golpe, para além de ocasionar um prolongado hiato do sistema democrático, encerrou a "via chilena ao socialismo", caracterizada pela ascensão de Salvador Allende[1] e da coligação de esquerda Unidade Popular nas eleições presidenciais de 1970. Neste contexto, a extensa filmografia de Patricio Guzmán propicia instigantes debates acerca das experiências dos períodos intrinsecamente interligados: a Unidade Popular, a ditadura e a transição democrática no Chile. Dessa forma, o livro O cinema de Patricio Guzmán. história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens (Jundiaí: Paco Editorial, 2022), resultado da tese defendida pelo autor, Fábio Monteiro, é um convite para o exame da história recente do Chile mediante a análise da obra de Patricio Guzmán.
O livro de Fábio Monteiro se estrutura em quatro capítulos. No capítulo inaugural, sob o título "América Latina, Guerra Fria e Cinema", a pesquisa empreende, em um primeiro instante, uma contextualização do ambiente particularmente tenso que caracterizou a América Latina ao longo das décadas de 1950 a 1970, e em um segundo, se detém em torno do chamado Nuevo Cine Latinoamericano[2] (NCL). Ou seja, aqui somos apresentados na qual a trajetória de Patricio Guzmán começou, embora o NCL permaneça como um campo aberto, carecendo de definições teóricas, Monteiro (2022) adverte para a sua pesquisa, o que era relevante era apontar o quadro geral da conjuntura dos primórdios da carreira do diretor.
Sob o NCL, houve uma efervescência: uma grande produção cinematográfica, foi acompanhada pela criação de cinematecas e cineclubes. No Chile, o Instituto Fílmico da Universidade Católica, sobressaiu como um dos principais centros responsáveis pela formação dessa geração engajada do cinema chileno, inclusive a de Patricio Guzmán. (MONTEIRO, 2022) Após os estudos nesse instituto, Em 1966, Guzmán parte para a Espanha, sendo aluno da Escola Oficial de Cinematografia de Madrid. Ao retornar ao seu país em 1971, realiza a produção de seu inicial longa-metragem, intitulado O Primeiro Ano[3].
Posteriormente, Patricio Guzmán se imergiu em um projeto voltado para a concepção de uma obra de ficção centrada em um dos protagonistas da independência chilena, Manuel Rodríguez. No entanto, o cineasta reajustou seus planos em virtude dos acirrados conflitos entre a oposição e o governo, particularmente no contexto econômico[4]. Diante desse cenário, Guzmán e sua equipe optaram por prosseguir com a ideia de elaborar uma crônica da Unidade Popular, o que fez surgir A Resposta de Outubro.
Durante o golpe de 1973, Patricio Guzmán estava documentando um projeto inacabado inicialmente intitulado O Terceiro Ano, e após a tomada do poder pelos militares, o diretor chegou a ser detido no Estádio Nacional, e com o auxílio do cineasta francês Chris Marker, conseguiu o exílio primeiro na França e depois em Cuba, onde o cineasta concebeu um novo filme, a trilogia A Batalha do Chile (composta por A Insurreição da Burguesia, de 1975; O Golpe de Estado, de 1977 e o Poder Popular, de 1979) reutilizando as das filmagens de O Primeiro Ano e de A Resposta de Outubro.
No capítulo subsequente, intitulado "As Demiurgias de A Batalha do Chile", Monteiro (2022) indica que as produções dessa trilogia podem ser postas em paralelo com uma vasta bibliografia no intuito de compreender as divergências na esquerda chilena, a intensificação da luta de classes naquele período, e estratégias adotadas pelas forças militares e golpistas.
Resumidamente, a primeira parte da trilogia dos anos 1970 cobre o período de 4 de março a 29 de junho de 1973 (isto é das eleições parlamentares ao “tancazo”, um golpe militar frustrado) a segunda parte desvela as ações engendradas no Parlamento e em nos setores militares golpistas entre o “tancazo” e o golpe bem sucedido de setembro de 1973, e na terceira parte, o foco recai primordialmente nas múltiplas manifestações de movimentos sociais que ao mesmo tempo que constituíam as bases da Unidad Popular, estabeleceram diversas formas de se resistir aos bloqueios, greves patronais e boicotes da direita e das elites chilenas.
Em síntese, Fábio Monteiro (2022) destaca essa que trilogia, sob um olhar panorâmico expõe a urgência da denúncia à ditadura e do clamor à solidariedade com o Chile nos anos 1970, além de explanar sobre as aproximações embates da esquerda, dentro e fora do governo Allende (enquanto membros do Partido Socialista e do MIR defendiam a luta armada e ações diretas, o Partido Comunista enfatizava a luta institucional e os ritos governamentais), bem como a representação das contendas pela produção entre trabalhadores e patrões.
A montagem da trilogia se baseia fortemente na alternância entre dois tipos de imagens. As primeiras são denominadas por Monteiro (2022) como demiúrgicas, uma vez que estão imbuídas de um caráter pastoral, e este arranjo visa engendrar um Allende como uma figura que orienta as multidões. E as segundas, imagens ligadas aos fomentadores do golpismo constituem “imagens hostis”. Fábio Monteiro (2022) também indica que embora desde A Insurreição da Burguesia, a trilogia aborda o papel da Democracia Cristã, em O Golpe de Estado a ênfase a esse partido cresce. Tal relevo se concretiza por meio de imagens que não só se chocam com a demiurgia atribuída a Salvador Allende, mas também se aproximam das imagens hostis na medida em que esse segundo filme mostra a participação, ainda que indireta, de lideranças democratas-cristãs ligadas na preparação golpista.
Nesse ponto, destaca-se que A Batalha do Chile somente foi exibida na televisão aberta chilena em setembro de 2021. Por conseguinte, Monteiro (2022), com base nas inferências da pesquisadora Natasha Scherbovsky, aponta que essa interdição, para além da obliteração da grande mídia, pode ser explicada por dois fatores. O primeiro diz respeito à denotação de que diversos atores políticos de agremiações de esquerda que dispensaram seus antigos princípios revolucionários em favor de cargos.O segundo, e principal motivo para a demora dessa exibição, é a explicitação de que nomes históricos da Democracia Cristã, um dos partidos mais influentes na transição chilena, foram articuladores diretos ou pelo menos cúmplices da derrubada do sistema democrático.
É preciso dizer que embora a leitura de A Batalha do Chile do ponto de vista de gênero não seja o cerne da pesquisa de Fábio Monteiro (2022), o autor não deixa de abordar esse tema. Sendo assim, a perspectiva de gênero sublinha que, especialmente em A Insurreição da Burguesia, as mulheres são como símbolos cruciais das posturas mais reacionárias. Por conseguinte, em A Batalha do Chile, a representação das figuras femininas as insere ora em posições genéricas (como meras companheiras ou colegas dos personagens masculinos, inexistindo uma retratação específica) ora na forma de seres que encarnam os perigos do conservadorismo. Diante disso, essa tríade deve ser problematizada a partir das sensibilidades contemporâneas.
No terceiro capítulo, "As Memórias da Trilogia dos Testemunhos", a atenção é reservada para a "segunda trilogia guzmaniana”, formada por Chile, a Memória Obstinada[5] (1997), O Caso Pinochet (2001) e Salvador Allende (2004). Esses documentários compõem a chamada segunda trilogia “guzmaniana”. Porém, se a historiografia relativa à cinematografia de Patricio Guzmán, de maneira geral, comumente categoriza essas obras como “a trilogia da memória” e como exemplares de uma "história a contrapelo", segundo os termos propostos por Walter Benjamin, Monteiro (2022) desafia essa caracterização. Dessa maneira, a trajetória de um dos personagens de 1997, Juan Osses[6] revela dilemas enfrentados pela Concertación, porque através dela nota-se que o limite do discurso governamental: o questionamento incisivo das heranças da ditadura vindo de um ex-mirista.
Em outubro de 1998, Pinochet era detido em Londres. Esse fato provocou uma sensação de perplexidade e trouxe à tona temáticas sobre a ditadura. O processo judicial contra o ex-ditador é acompanhado em O Caso Pinochet, que transmite os relatos de indivíduos cujos vínculos familiares foram desfeitos pelas atrocidades sob a ditadura, e isso pode ser visto como construtor de um espaço simbólico para que os sobreviventes reelaborem seus laços sociais. As testemunhas apresentadas no filme são identificadas unicamente por seus primeiros nomes, mantendo, assim, o anonimato em relação ao engajamento no MIR.
No documentário Allende (2004), as referências do personagem-título são posta sob uma base que suplanta as tensões da Unidade Popular. Sergio Vuskovic, que foi prefeito de Valparaíso durante a Unidade Popular, traça um Allende “iluminista”. Aqui, também há a falta de identificação de quem depoimenta, pois alguns homens são creditados apenas como "ex-militantes da Unidade Popular" (MONTEIRO, 2022).
Ao efetivar um balanço crítico sobre essa tríade, Monteiro (2022) aponta que ela mostra um alinhamento com a “reserva de identidade”, que pode ser lida como uma narrativa de teor humanista abstrato, que suprime afiliações partidárias e ideológicas. Portanto, a adjetivação “trilogia dos testemunhos” deriva de uma pertinente problematização de Monteiro (2022), a saber, quais memórias foram privilegiadas e quais foram desconsideradas, quais esquecimentos ocorreram nessa sequência fílmica, etc. Ainda que essa trilogia do final dos anos 1990 e começo dos anos 2000 seja comumente apresentada como uma alternativa à dita memória oficial, é possível contestar essa compreensão, já que “a luta contra o apagamento de determinadas demandas históricas de justiça social e avaliação crítica da ‘democracia incompleta’ é realizada dentro do jogo discursivo e simbólico estabelecido pela própria Concertación.” (MONTEIRO, 2022, p.253, grifos do autor).
No último capítulo, "Uma Trilogia Poética para o Chile do Século XXI", Fábio Monteiro (2022) dedica-se à "trilogia da imensidão íntima", inaugurada por Patricio Guzmán emNostalgia da Luz[7] (2010), seguida por O Botão de Nácar (2015) e finalizada em A Cordilheira dos Sonhos (2019). Esse enfoque é justificado por uma inflexão do estilo guzamaniano”: a dimensão subjetiva da voz em off de Patricio Guzmán é acentuada pela narrativa nitidamente poética e autorreflexiva e pelas reiteradas menções à infância através de um olhar direcionado a elementos da natureza chilena.
Nessa última trilogia de Guzmán, nota-se um apreço a nomes da filosofia, e entre eles, o francês Gaston Bachelard e a sua fenomenologia relativa aos elementos naturais. Para Monteiro (2022), nessa "trilogia da imensidão íntima", Guzmán adiciona ao seu estilo elementos como a intensificação das referências autobiográficas, as constantes justaposições e formas de entrelaçamento entre temporalidades e entre o micro e o macro. Em Nostalgia da Luz, o espaço desértico e o jogo de escalas, simetrias e assimetrias se mostram, por exemplo, em alguns instantes: o arqueólogo Nuñez faz uma analogia entre o clima árido e a transparência do céu como ferramentas cruciais para a arqueologia e a astronomia e ao ser interrogado por Guzmán sobre as mulheres que vagam pelo deserto procurando restos de seus familiares, o astrônomo Galaz diz que as atividades desempenhadas pelos astrônomos e pelas mulheres compartilham uma similitude (a busca contínua pelo passado), embora também exibam notáveis distinções, pois o passado analisado pelos observadores celestes não perturba o sono e tampouco evoca memórias dolorosas.
No filme de 2015, essa dinâmica narrativa se evidencia em algumas cenas, das quais pode-se sublinhar aquela em que a artista plástica Emma Malig elabora uma cartografia da costa marítima chilena. A relevância de seu artefato se destaca quando Guzmán argumenta que o Chile teria perdido a conexão com o mar. Adiante, a relação dual entre o temor e a eloquência poética das águas é personificada nas figuras do antropólogo Claudio Mercado e do poeta Raul Zurita. Descrito como alguém que assimilou a linguagem aquática através de sua interação com as comunidades indígenas, as verbalizações de Mercado de mantras indígenas são sintonizadas, pela montagem, com as melodias dos rios. Por sua vez, Zurita compartilha detalhes dos povos originários, sublinhando a beleza dos corpos das águas é acompanhada também por recorrentes episódios de massacres.
Já em A Cordilheira dos Sonhos, esse jogo pode ser observado na alusão dos personagens à essa cadeia de montanhas. O escritor Francisco Gazitúa a qualifica como uma “grande arca” na qual estão contidas regras poéticas essenciais e um mistério sobre suas ranhuras, e o escultor Vicente Gajardo e a cantora Javiera Parra interpretam que essas formações rochosas oferecem ao mesmo tempo proteção e isolamento. Nesse último filme, Guzmán também revisita um tema iniciado em 1997: o entrelaçamento da memória de sua cinematografia com a memória de seu país, pois a evocação de A Batalha do Chile é concomitante às ruínas de uma das casas onde Guzmán passou sua infância.
Nessa “trilogia da imensidão íntima”, conforme denota Monteiro (2022) é possível também identificar traços de melancolia em razão da persistência das consequências nefastas do terrorismo de Estado e do neoliberalismo. Então, a participação de Vicky Saavedra e Violeta Berríos, em Nostalgia da Luz traça um paralelo com o drama de Antígona no que tange à jornada pelos entes queridos: ambas se tornam testemunhas da história a partir dos vestígios humanos. Berríos, expressa seu enorme pesar pela lentidão da sociedade chilena em apoiar a justiça e pela concepção de que as mulheres buscadoras seriam um problema.
Em El Botón de Nácar, também há a temática envolvendo um objeto perdido: um botão que não apenas evidencia a trágica narrativa do extermínio contra os povos originários, simbolizada pelo caso de Jemmy Button (um índigena que em troca dessa peça de indumentária foi para a Inglaterra no século XIX e quando retornou,presenciou o massacre das populações autóctones) mas também remete a repressão pinochetista, apresentado através da reconstituição da morte de Marta Ugarte, que morreu após ser arremessada no Oceano por um chamado vôo da morte. A atenção do filme também é voltada para escutar Martín Calderón, Cristina Calderón e Gabriela Paterito, que são umas das poucas pessoas descendentes diretas do povo Kawésqar vivas, colocando em primeiro plano a noção de que o estado de exceção desconhece tréguas (MONTEIRO, 2022)
Em A Cordilheira dos Sonhos Patricio Guzmán exerce um diálogo mais consoante à produção acadêmica que indica a permissividade da Concertacíon com o neoliberalismo. As críticas à ordem econômica ganham uma dimensão mais profunda através dos relatos pessoais de Pablo Salas (um cineasta que desde os anos 1980 continua a documentar de maneira o cotidiano e os protestos no Chile) e do escritor Jorge Baradit, os quais questionam de maneira incisiva a ideia de que o "sucesso" da economia chilena durante o período de Pinochet seja uma compensação que ameniza a violência, e que a liberdade econômica seja o alicerce do "progresso" chileno.
À guisa de conclusão, concordamos com Fabían Núñez, que assina o prefácio do livro. Para esse docente do departamento de Cinema e Vídeo da UFF (Universidade Federal Fluminense), a qualidade mais notória do trabalho de Fábio Monteiro se manifesta na fuga de dois riscos que podem vir em estudos autoristas. O primeiro reside no pendor à uma certa homogeneização da trajetória do autor inquirido. E o segundo reside na ausência de problematizações. Ainda que a filmografia de Guzmán seja atravessada por uma obsessão com o Chile, Monteiro cita que essa espécie de leitmotiv ocorre em diferentes conjunturas, e embora haja uma predileção de Fábio Monteiro pelo realizador chileno, esse reconhecimento não implica em um olhar incapaz de perceber matizes.
Às observações de Fabían Núñez acrescentamos as nossas: o presente livro de Fábio Monteiro é muito bem-vindo porque além de ser talvez uma obra única a respeito da trajetória de um diretor tão longevo e importante, também inova ao mobilizar referências filosóficas. A própria expressão “imensidão íntima” é apropriada da fenomenologia de Gaston Bachrlard. Além disso, Monteiro (2022) traz contribuições mais amplas em torno de como concretizar uma necessária revisão de elementos tidos como canônicos ou dominantes e por que não, reforçar que rigor e paixão, assim como texto e imagem e história e memória, não se opõem, mas se complementam.
Referências bibliográficas
MONTEIRO, Fábio. O cinema de Patricio Guzmán: história e memória entre as imagens políticas e a poética das imagens. Jundiaí: Paco Editorial, 2022.
Notas
Autor notes
Ligação alternative
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/8179/7800 (pdf)