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DESAFIOS FREIREANOS: DEMOCRACIA, VIOLÊNCIAS E PRÁXIS DIALÓGICA NA CONTEMPORANEIDADE

  Silvana Bezerra de Castro Magalhães[1] 

Recebido em: 23/09/2020

Aprovado em: 19/11/2020

Resumo: O presente artigo é um ensaio teórico interdisciplinar, que se propõe a discutir as bases atuais da sociedade (anti) democrática brasileira e como esta engendra relações autoritárias e violentas. Discute-se, a partir dessa problemática tão atual, os conceitos de democracia e sociedade democrática como base necessária para a construção de relações dialógicas na sociedade como um todo, e especificamente no contexto pedagógico educacional. Apresenta uma discussão a partir do pensamento freireano e suas amplas e pertinentes dimensões das relações dialógicas e antidialógicas que podem ser construídas na sociedade, em contraposição às relações baseadas na violência e nos silenciamentos de determinados setores sociais cada vez mais invisibilizados. Discute-se, em diálogo com outros autores, os conceitos de liberdade, utopia e humanização como possibilidades de transformação e luta em tempos de violência e ódio.

Palavras-chave: educação; pensamento freireano; educação dialógica; democracia; violência

FREIREAN CHALLENGES: DEMOCRACY, VIOLENCES AND DIALOGICAL PRAXIS IN CONTEMPORANEITY

Abstract: This paper is an interdisciplinary theoretical essay, that aims to discuss the current bases of Brazilian (anti) democratic society and how it engenders authoritarian and violent relations. From this very current issue, the concepts of democracy and democratic society are discussed as a necessary basis for the construction of dialogical relations in society as a whole and specifically in the educational pedagogical context. It presents a discussion based on Freire's theory and its broad and pertinent dimensions of dialogic and antidialogical relations that can be built in society as opposed to relations based on violence and the silencing of certain social sectors that are increasingly invisible. In a dialogue with other authors, the concepts of Freedom, utopia and humanization are discussed as the possibilities for transformation and struggle in times of violence and hatred.

Keywords: education; freirean theory; dialogical education; democracy; violence.

DESAFÍOS FREIREANOS: DEMOCRACIA, VIOLENCIAS Y PRAXIS DIALÓGICAS EN LA CONTEMPORANEIDAD

Resumen: Este artículo es un ensayo teórico interdisciplinario, que tiene como objetivo discutir las bases actuales de la sociedad (ant) democrática brasileña y cómo engendra relaciones autoritarias y violentas. A partir de este tema tan actual, se discuten los conceptos de democracia y sociedad democrática como base necesaria para la construcción de relaciones dialógicas en la sociedad en su conjunto y específicamente en el contexto pedagógico educativo. Presenta una discusión basada en el pensamiento de Freire y sus amplias y pertinentes dimensiones de relaciones dialógicas y antidiológicas que se pueden construir en la sociedad frente a relaciones basadas en la violencia y el silenciamiento de ciertos sectores sociales cada vez más invisibles. En diálogo con otros autores, se discuten los conceptos de Libertad, utopía y humanización como posibilidades de transformación y lucha en tiempos de violencia y odio.

Palabras-clave: educación; pensamiento freireano; educación dialógica; democracia; violência.

INTRODUÇÃO

Assim passavam os dias de Terralba, e os nossos sentimentos se tornavam incolores e obtusos, pois nos sentíamos como perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas. (CALVINO, 2011, p. 86)

 Tempos difíceis para a humanidade, tempos difíceis para nosso país.  A pandemia que nos assola parece ser apenas a ponta do iceberg do contexto conturbado, difícil, contraditório em todas as áreas da sociedade brasileira. As vulnerabilidades desse momento histórico nos gritam que não temos o controle de nada, nunca tivemos, mas talvez nos enganássemos. As injustiças parecem que chegam a nós cada vez mais desnudadas de suas camuflagens. Como que num filme distópico nos encontramos lutando com um vírus invisível que nos aproxima de forma visceral das injustiças do mundo.

Uma grande parte da sociedade tenta se colocar fora dos conflitos sociais, como uma forma de atenuar suas reações sociais ao sofrimento do outro, se tornando cada vez mais tolerantes com a injustiças, violências e desigualdades. A exclusão de tantos vulneráveis vista de forma naturalizada, como “vontade de Deus”, como culpa individual, como recompensa de um pretenso mundo meritocrático. Nesse processo perverso, suspendemos a crítica e a substituímos por estereótipos impostos pela mídia, redes sociais; abolimos nossa capacidade de julgar e de agir contra as injustiças.

Vozes violentas que gritam uma pretensa hegemonia do ódio e da intolerância perpassando todas as relações. Hegemonias de pensar, de agir e se sentir. Pensamentos monolíticos e autoritários. O pensamento/práxis freireano nunca foi tão necessário, ao mesmo tempo, nunca foi tão agredido por forças conservadoras e retrógradas.

Em meio a esses mecanismos de desativação de autocontrole moral, culpabilizamos o outro, desumanizamos e somos desumanizados, reificamos e somos reificados.

Nesse contexto caótico pretendemos levantar algumas reflexões sobre democracia, violência e a retomada do pensamento dialógico freireano em diálogo com outros autores como forma de combate amorosa nesses tempos difíceis.

Não se pode afirmar que alguém liberta alguém, ou que alguém se liberta sozinho, mas que os homens se libertam em comunhão. Com isso, não queremos diminuir o valor e a importância da liderança revolucionária. Pelo contrário, estamos enfatizando esta importância e este valor. E haverá importância maior que conviver com os oprimidos, com os esfarrapados do mundo, com os condenados da terra? (FREIRE, 2001a, p. 130).

DEMOCRACIA E VIOLÊNCIAS

Vamos festejar a inveja, a intolerância e a incompreensão

Vamos festejar a violência e esquecer a nossa gente, que trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada

Vamos celebrar a aberração de toda a nossa falta de bom senso

                                                                                                                                    Renato Russo

Como entender a violência e suas diferentes manifestações numa sociedade que se diz democrática? Como a democracia liberal, ou o que dela possuímos, permite e até mesmo se sustenta com e na violência? Falar de democracia, violências e pensamento freireano é imprescindível num momento em que diferentes forças trabalham em prol do desmantelamento das instituições democráticas construídas a duras penas em nosso país. E não é possível falarmos em educação sem olharmos para essa realidade mais ampla onde ela se situa.

Esse artigo pretende fazer uma discussão sobre democracia, violência trazendo pontos importantes e atuais do pensamento freireano como contraponto crítico.

[...] uma democracia que aprofunda as desigualdades, puramente convencional, que fortifica o poder dos poderosos, que assiste de braços cruzados à aviltação e ao destrato dos humildes e que acalenta a impunidade. [...] uma democracia cujo sonho de Estado, dito liberal, é o Estado que maximiza a liberdade dos fortes para acumular capital em face da pobreza e às vezes da miséria das maiorias. [...] democracia puramente formal que lava as mãos em face das relações entre quem pode e quem não pode porque já foi dito que ‘todos são iguais perante a lei’. [...] Lavar as mãos a diante das relações entre poderosos e os desprotegidos do poder só porque já foi dito que ‘todos são iguais perante a lei’ é reforçar o poder dos poderosos. [...] democracia fundada na ética do mercado que, malvada e só se deixando excitar pelo lucro, inviabiliza a própria democracia (FREIRE, 2000, p. 24).

Mais do que nunca, num momento em que ressurgem com força, ideários violentos e fascistas, faz-se fundamental pensarmos a incoerência das relações baseadas na violência, na violência desestruturadora dentro de uma sociedade pretensamente democrática. Partimos então do pressuposto que só é possível a construção de uma sociedade democrática com a luta pela superação das diferentes formas de violência em todas as instâncias da sociedade, pois existe uma incompatibilidade estrutural entre democracia e violência.

 Somos resultado de um processo histórico que nos leva a um elitismo democrático, no qual os mais “competentes” se responsabilizariam por organizar a sociedade. Uma “democracia de poucos”, dos mais capazes. Democracia muitas vezes entendida apenas como representatividade e direito ao voto.

Na verdade, vivemos a democracia como método e não como conteúdo. Como método, a democracia é antes de tudo representação política, que inclui procedimentos regulares de voto, eleições livres, sistemas parlamentares e judiciais livres do controle do executivo, noções de vigilância e equilíbrio do sistema, predomínio dos interesses individuais sobre os coletivos, e liberdade de expressão. Como conteúdo, a democracia está associada à participação política do povo nos negócios públicos. Está relacionada com o poder do povo (TORRES, 2001). Um modelo mais radical de democracia deveria ir ainda mais longe, defendendo a igualdade em todas as instâncias da sociedade, em termos de interação de classe, raça e etnia, não apenas prevenindo as formas de exclusão que impediriam a participação política.

 Vivemos hoje no Brasil um modelo de democracia contraditório, um modelo de democracia representativa que esvazia o sentido da participação e que se esgota na normalização das instituições políticas, atendo-se a institucionalização da ordem política e ignorando a natureza dos conteúdos éticos e os profundos antagonismos sociais. (BORON, 1994).

Percebendo a necessidade de transcendermos esse modelo de sociedade; acreditando que democracia e desigualdade são radicalmente antagônicas, vemos a necessidade de mudanças profundas relativas à uma proposta de reforma social que suprima as flagrantes injustiças do capitalismo e oriente aos agentes sociais da transformação nos traiçoeiros labirintos da conjuntura. Só por essa via se poderá reconciliar, pelo menos parcialmente e por enquanto, a cidadania política abstrata da democracia burguesa com a “descidadania” social concreta que caracteriza as sociedades capitalistas (BORON, 1994, p.09). Essa concepção integral de democracia é a única capaz de concretizar o regime democrático no contexto de autoritarismo em que vivemos.

Se partirmos do pressuposto que uma democracia autêntica transcende os parâmetros do liberalismo, só se tornando possível ao partir do povo, caímos na problemática de como viabilizá-la num contexto de expropriação. Não é possível falar em democracia aceitando um sistema que expropria dos bens mínimos a maioria da população gerando uma multidão de excluídos e, consequentemente, diferentes manifestações de violência. Que não permite que o povo se reconheça enquanto tal e tenha espaço para afirmar-se e lutar pelos seus direitos, pois tem que lutar, cotidianamente e de diferentes maneiras pela sobrevivência, usando inclusive como instrumento a violência. Não é possível falar em democracia num contexto onde direitos básicos ainda não foram conquistados. Como “consolidar” um modelo democrático quando o quadro da desigualdade, da distribuição de renda se distanciam cada vez mais? A questão crucial é até que ponto pode progredir e se consolidar a democracia em um quadro de miséria generalizada como a que hoje afeta as nascentes democracias sul-americanas, que corrói a cidadania substantiva das maiorias precisamente quando mais se exalta sua emancipação política. Pretende-se integrar politicamente as massas e simultaneamente se ensaiam políticas de ajuste que as excluem e as marginalizam... (BORON, 1994, p.13).

Nossas democracias convivem passivamente sobre estruturas de injustiça que condenam pessoas à marginalidade. Por isso seria necessária uma real democratização da sociedade. Ou seja, temos a tarefa de não simplesmente assegurar as formas políticas da democracia, mas tornar a democracia instrumento eficaz de transformação da sociedade, tendo também a educação um papel importante nesse contexto.

A democracia apenas como forma traz diversos riscos para a atualidade, frente a todas as contradições e antagonismos sociais cada vez mais crescentes. Dentre eles o da própria ingovernabilidade frente à ineficácia de um sistema que não consegue nem ao menos a resolução dos seus conflitos básicos. O aumento da violência e a criminalidade, a decomposição social e a anomia, a crise e a fragmentação dos partidos políticos, a prepotência autoritária do executivo, a capitulação do Congresso, a inanição da Justiça, a corrupção do aparato estatal e da sociedade civil, a ineficácia do Estado, o isolamento da classe política, a impunidade para os grandes criminosos e mão dura para os pequenos delinquentes e, last but not least, o ressentimento e a frustração das massas constituem a síndrome dessa perigosa decadência institucional de uma democracia reduzida a uma fria gramática do poder e purgada de seus conteúdos éticos (BORON, 1994, p.38).

Nesse modelo excludente, e para lidar com esses problemas que surgem com a acentuação das contradições sociais, uma distribuição mínima dos bens é vista como necessária, exatamente como tentativa de regulação e de se evitar o caos social total. Um certo assistencialismo perverso torna-se necessário para evitar o conflito, a luta e as reivindicações pelas melhores condições. No capitalismo, igualdade entre os homens não seria um ideal a se conquistar. Tocqueville demonstra a origem desse pensamento no liberalismo clássico: “quando todos são equalizados, quando não há mais diferenças entre os homens, eles terminam por obedecer a todos a um déspota e se forma o que ele chama a tirania da maioria” (Tocqueville apud COUTINHO, 2002, p.13). As liberdades individuais deveriam ser mantidas para evitar que a democracia se transformasse em regime despótico.

Enfatizar a problemática da violência no plano da sociedade e da cultura, compreendendo suas conexões com o poder político estatal, requer problematizar a complexidade do social, dos diferentes eixos de poder que o atravessam, que realizam a dominação, que convergem para o Estado e que suscitam a formação de ideologias autoritárias e discriminatórias. “Como não falar em violência se sequer os direitos sociais fundamentais- o direito ao trabalho, à educação, à saúde, ou seja, aqueles direitos que recobrem a dignidade da pessoa humana- não estão universalizados, isto é, assegurados para todos os cidadãos?” (ADORNO, S, 1995, p. 323).

A violência não pode ser analisada distanciada das relações sociais concretas da sociedade, suas manifestações são fruto das condições históricas concretas e ligadas à realidade de opressão e desigualdade que é parte intrínseca da sociedade capitalista. O grande desafio é tentar entender a violência nas suas manifestações cotidianas, nas micro-relações, sem deixar de lado uma análise da práxis social. Como pensar então o conceito de violência como um todo, como entendê-lo a partir dos pressupostos de visão de sociedade contraditória já colocados anteriormente?

POR UMA PEDAGOGIA QUE ROMPA COM AS TRAMAS DA VIOLÊNCIA

Como, frente a essas questões, romper ou iniciar um processo de “desconstrução” dos mecanismos da violência?

 Contra a barbárie enunciada, a difusão de uma ética da solidariedade, cuja base seja o respeito ao outro, pode compor uma linha de fratura no dispositivo da violência.

Dentro dessa linha de fratura, o respeito aos direitos humanos, com fundamento no direito à vida, poderia consistir no início de uma luta social contra a violência (SANTOS, 1995, p.293).

 Frente a todas as questões problematizadas, destacaremos o ideário freireano como contraponto às relações sociais baseadas na violência, e mais especificamente como possibilidade de ancoragem para a construção de uma proposta pedagógica que “desconstrua”, ou dê outros rumos às diferentes formas de violência introjetadas e reproduzidas pela nossa sociedade em prol de uma sociedade democrática.

Paulo Freire parte de uma pedagogia verdadeiramente democrática, ancorada na prática cotidiana, frisando a necessidade do educador compreender o mundo pela compreensão do povo. O respeito ao “saber de experiência feito” é condição sine qua non para uma pedagogia transformadora. Apresenta-nos mais uma teoria do conhecimento do que simplesmente um método pedagógico. O respeito ao educando, a construção por meio da dialogicidade são elementos extremamente pertinentes para a discussão aqui iniciada, a relação pedagógica sendo acima de tudo é uma relação dialógica. Tudo isso sem deixar de lado a politicidade do ato educativo, a construção dos processos de aprendizagem sendo indissociável ao processo de politização.

Numa época como a nossa, marcada pela exclusão, pela negação ou pela expropriação do direito de ser humano, não é possível pensar na educação, sem pensamos na educação como possibilidade de humanização, e esse é um dos referenciais centrais em torno do qual Paulo Freire constrói suas reflexões.

A democracia que, antes de ser forma política, é forma de vida, se caracteriza, sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no comportamento do homem. Transitividade que não nasce e nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas comuns. Em que o homem participe. (FREIRE, 1989, p. 80).

Retornamos hoje à uma discussão e à uma busca pelo mínimo, pelo primário em termos reivindicação pela educação, mas ainda muito pouco conquistada: a luta pela humanidade para os excluídos (ARROYO, 2001). Mais do que nunca vemos a necessidade de superação da alienação, no sentido trabalhado por Agnes Heller (1991), de impossibilidade de desenvolvimento humano e condução da própria vida, alienação esta que ocorre quando há um abismo entre o desenvolvimento humano genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos.

A humanização só seria possível pelo processo de conscientização, como a chave de toda a pedagogia pelo diálogo não impositivo, onde educando e educador, caminhariam juntos na construção contínua de uma verdadeira práxis.

Refletiremos nesse artigo sobre alguns pontos do pensamento freireano que auxiliam na nossa discussão: a dialogicidade, a construção da liberdade e a necessidade da utopia.

DESCONSTRUINDO O SILÊNCIO: POR UMA PEDAGOGIA DO DIÁLOGO

Iniciamos essa discussão levantando impossibilidade de uma verdadeira sociedade democrática conviver com o silenciamento do povo, com a sua exclusão, no sentido desta não poder efetivamente participar da construção da sociedade. No que diz respeito à construção de uma educação democrática, o silenciamento do povo também se torna incompatível. Nesse sentido, Paulo Freire trabalhou com maestria a construção de uma pedagogia do diálogo e, a partir dela, faremos algumas reflexões sobre como o diálogo não impositivo pode ser um instrumento poderoso no desmantelamento da violência.

Ouvir e dialogar com as populações vitimizada pela violência torna-se fundamental para entender como, com ela, e nunca para ela, construir caminhos de transformação.

Como condição primeira para a existência do diálogo é imprescindível a fé na capacidade do homem de fazer e refazer, na sua vocação de “ser-mais”. (FREIRE, 2001a).  Esse pressuposto torna-se fundamental quando pensamos que a maioria da sociedade não acredita na possibilidade de “ressocialização” daqueles que infringem as suas normas. Por isso é importante, antes de mais nada, refletir sobre as causas que levaram à marginalidade e acreditar na capacidade humana de construir-se continuamente, de não ser algo acabado ou que se acaba em algum momento, sem mais possibilidades de mudança.

 Se não se acreditar na possibilidade de humanização de todo e qualquer indivíduo, como princípio básico para uma ação educativa, os pré-conceitos que unem opressor ao oprimido dificilmente serão quebrados.

Como lidar com a violência já introjetada sem trazer à tona a palavra a partir do diálogo? Dizer a palavra não deve ser privilégio de alguns, mas direito de todos os homens (FREIRE, 2001a, p.79). Freire nos fala do diálogo como um profundo amor ao mundo e aos homens, sem o qual não pode verdadeiramente acontecer. Num contexto como o atual marcado pelo desrespeito ao outro, falar de relação educativa baseada em afetividade pode parecer distante, entretanto esse comprometimento com o diálogo verdadeiro só é possível como uma opção afetivo existencial de transformação. Por isto mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam sujeitos de sua busca, se instaura como situação violenta. Não importam os meios usados para esta proibição. Fazê-los objetos é aliená-los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros (FREIRE, 2001a, p. 74).

 Diante de tudo isso a busca do “ser-mais” só se torna possível na comunhão, nas relações de solidariedade, tão diferentes daquelas construídas fragmentariamente pela opressão. Numa sociedade que se baseia no individualismo o resultado é o ser menos, a desumanização.

Quais seriam os mecanismos dessa ação e como se constituem no cotidiano da opressão? Manipulação, conquista, divisão e invasão cultural são características da ação antidialógica trabalhados por Freire (2001a). A necessidade da conquista reifica os homens, roubando sua palavra e sua cultura, tendo como principal instrumento a construção de uma visão mítica e alienada do mundo. Dos diversos mitos que se constrói cotidianamente para manter o conquistado, um dos mitos instituintes seria o de que “a ordem opressora é uma ordem de liberdade” (FREIRE, 2001, p.137) e fora dela não haveria opção.

A conquista quer retirar a capacidade do homem de ad-mirar-se, apresentando o mundo como algo estático a que os homens devem se ajustar.

 Como já vimos anteriormente, o problema, o conflito, a violência são naturalizados e analisados individualmente, a culpa é colocada nas escolhas individuais. Como se numa sociedade opressora houvesse tantas possibilidades reais de escolha para o oprimido. Em nenhum momento é construída a possibilidade do opressor se ver e ver a realidade como realmente é, os mitos precisam mascará-la para evitar que o oprimido se conscientize.

A divisão pretende “enfraquecer os oprimidos mais do que já estão ilhando-os, criando e aprofundando cisões entre eles” (FREIRE, 2001a, p.138), desde as ações da burocracia estatal até ações micro, tira-se a visão da totalidade, pulverizando a realidade, os problemas sendo analisados de forma individualizada.

A divisão garante a opressão, pois: “Unificados e organizados, porém, farão de sua debilidade força transformadora, com que poderão recriar o mundo, tornando-o mais humano.” (FREIRE,2001a, p.142). Há um certo messianismo nesse aspecto da ação antidialógica, uma fala salvadora dos homens que na verdade esconde o que realmente se quer salvar: o status quo de uma classe que teme ser ameaçada pela violência que ela mesma instaura. Na manipulação a burguesia se coloca como modelo a ser alcançado e, para isso, a sua palavra deve ser a única a ser aceita, já que “saberia” o caminho das pedras. A manipulação evita e muda o rumo de uma organização autêntica, impedindo um pensar verdadeiro e transformador “as elites dominadoras na manipulação, vão inoculando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal” (FREIRE, 2001, p.147).

A meritocracia, hoje retomada tão fortemente pelo modelo neoliberal, seria instrumento para a manipulação, apregoando as mesmas oportunidades e diferentes capacidades que determinariam os fracassos na vida, na escola, na construção da própria história.

 A invasão cultural, como elemento antidialógico também seria um ato de conquista. A propaganda, os slogans, os depósitos, os mitos, são instrumentos usados pelo invasor para lograr seus objetivos; persuadir os invadidos de que devem ser objetos de sua ação, de que devem ser presas dóceis de sua conquista. Daí que seja necessário ao invasor descaracterizar a cultura invadida, romper seu perfil, enchê-la inclusive de subprodutos da cultura invasora (FREIRE, 2001 b).

A invasão cultural objetiva à domesticação, a visão de mundo do oprimido é considerada errada, incompleta, para se impor a visão do dominador. É a tentativa de modelar o oprimido a imagem e semelhança do opressor, pois essa conformação traria estabilidade ao opressor, no reconhecimento de sua pretensa superioridade. “Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo”. (FREIRE, 2001a, p.151).

Pelas estratégias da ação antidialógica podemos perceber que o opressor não concebe e não quer conceber, que do povo possa vir a organização de suas ações e história e, mais especificamente, a construção da ação educativa. A decisão pelo futuro, pela construção da vida estaria sempre fora do oprimido, no opressor, num processo de formação de seres para o outro.

Em contraposição às características do antidiálogo, temos a teoria da ação dialógica, tão bem articulada por Paulo Freire. Suas características: a colaboração, a união, a organização, e a síntese cultural auxiliariam no processo de construção educacional e desmantelariam uma educação baseada na opressão e nos silenciamentos.

A co-laboração, partindo da fenomenologia do diálogo de Buber (1982), postula que o mundo só pode ser transformado pelo trabalho conjunto, em oposição à fragmentação e separação trazidas pela conquista. A co-laboração só se torna possível no diálogo, onde os homens, mesmo em funções diferentes fundariam o trabalhar com: “Enquanto na teoria antidialógica a elite dominadora mistifica o mundo para melhor dominar, a teoria dialógica exige o desvelamento do mundo(...) ...enquanto são objetos sobre que incide a ação de conquista, na teoria da ação dialógica são sujeitos também a quem cabe conquistar o mundo.” (FREIRE, 2001a, p.166)

A ação pedagógica que pretende superar as relações baseadas na violência deve partir do trabalho com o outro, que deve ser considerado elemento imprescindível na construção do processo educativo. A denúncia do “regime que segrega esta injustiça e engendra esta miséria’” deve ser feita com suas vítimas a fim de buscar a libertação dos homens em colaboração com eles (FREIRE, 2001a, p.171).

A colaboração auxiliaria na quebra da violência dos poderes instituídos, auxiliando na reconstrução das identidades e coesão grupal. A união viria em contraponto à característica antidialógica da divisão, tendo como passo inicial a desmitificação da realidade. Para oprimir, para que o oprimido permaneça aderido ao opressor, são construídos mitos que o mantém acomodado a “verdade” opressora.

 Para romper com essa visão mitificada, tão confortável à dominação, é preciso que a realidade seja questionada e os mitos sejam refutados. Cuidado especial deve ser tomado para não se aderir o oprimido a uma outra realidade, sem que seja realmente uma construção coletiva e conscientemente produzida. É necessária a “adesão à práxis verdadeira de transformação da realidade injusta” (FREIRE,2001a, p. 173). Os oprimidos devem se reconhecer como transformadores da realidade, rompendo o processo de reificação. Os padrões construídos pela mídia para moldar os jovens a um único modelo só poderão ruir na construção dialógica, no processo de conscientização e crítica. A organização estaria ligada à união. Seria a organização com as massas populares, pelo qual se instauraria a pronúncia do mundo. Aí se afirmariam a liberdade e autoridade em contraposição ao autoritarismo e a licenciosidade. É o momento em que povo e liderança buscam a instauração da transformação, conciliando e aprendendo a lidar com a autoridade e liberdade verdadeira.

 No processo educacional, constantemente se colocam discussões sobre autoridade, autoritarismo e licenciosidade. O medo da liberdade, e muitas vezes de suas consequências, acaba mostrando o caminho mais fácil do autoritarismo. É interessante frisar que a licenciosidade também não é libertadora, mas oprime como o autoritarismo, pois não leva ao diálogo transformador, mas ao vazio que perpetua a dominação. Nos trabalhos pedagógicos com a juventude, talvez um dos grandes desafios seja o de lidar com autoridade e liberdade, com objetivos transformadores, sem cair em nenhum dos extremos. Uma autoridade que pode ser vista no sentido dado por Hannah Arendt: de responsabilidade coletiva com o mundo, sendo que “na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade” (ARENDT, 1997, p. 239).

Nesse aspecto vemos serem infundadas as críticas de que o pensamento freireano estaria favorecendo o laissez-faire, pelo contrário, a responsabilidade com o mundo impediria o educador de se eximir de ser agente do processo educativo, com o educando.

A síntese cultural parte do pressuposto da não imposição ou doação de uma realidade ou cultura. É o instrumento de superação da cultura alienada e alienante. Não se pode simplesmente retirar e substituir o universo cultural do oprimido, mas trabalhar com ele. “Um desafio que se apresenta para o campo educacional é o de conseguir os necessários ‘vistos’ e passaportes para a viagem que é dialogar e mesmo compartilhar dos sentidos culturais que são elaborados nas múltiplas redes sociais da juventude” (CARRANO, 2000, p.26).

As diferentes visões de mundo e cultura devem ser respeitadas e imbricadas. As contribuições do senso comum devem ser consideradas da mesma forma que as do conhecimento mais teorizado. Não podemos negar que são formas diferentes, mas isso não justificaria a invasão ou o desprezo pelo diferente. A visão de mundo que o povo traz deve ser levada em conta, assim como as apropriações cientificas da realidade. O educador precisa entender as diferentes leituras do mundo, as suas manifestações da cultura da resistência às manhas. Nesse sentido não podemos impor a nossa forma de ver a realidade, mas o respeito pelo saber e pelo ponto de vista do outro devem ser a tônica das relações. A certeza dos autoritários procede muitas vezes de saberem ou de acharem que sabem o que as classes populares precisam.

DESCONSTRUINDO AS RELAÇÕES BASEADAS NA VIOLÊNCIA: POR UMA PEDAGOGIA DA LIBERDADE

 Como falar em liberdade no contexto da desumanização? Freire afirma que, muitas vezes, o medo da liberdade impede que a busquemos, a falsa segurança que a ausência de liberdade traz, muitas vezes é preferida aos riscos de um processo de libertação. Ao mesmo tempo os opressores não querem perder a sua “liberdade” de oprimir.

 Para falarmos de liberdade, precisamos inicialmente entender a sua ausência e os mecanismos de aprisionamento do homem. O opressor usa a dependência que ele mesmo cria nas relações assistencialistas baseadas na injustiça, para poder realizar a sua pretensa generosidade. Essa perpetuação da dependência criando possibilidades ilusórias de auxílio ao oprimido.

A camuflagem da desigualdade dessa forma tem como objetivo impedir o oprimido de conscientizar-se da opressão. Um conceito muito importante no referencial freireano esclarece a discussão: a aderência do oprimido ao opressor. Enquanto o oprimido não se descobre como hospedeiro do inimigo, enquanto o mantém aderido a ele, não consegue se libertar. Para isso é importante a admiração, que o comportamento antidialógico quer sufocar ou não deixar surgir e só quando o oprimido descobre o opressor fora de si, pode libertar-se. Mas muitas vezes o medo do vazio que a ausência do opressor traz também impede a libertação, o conteúdo da própria autonomia traz o medo, medo de assumir o risco da própria liberdade. A violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de serem, sendo a libertação a resposta destes a violência, o anseio da busca do direito de ser.

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. (FREIRE, 2001a, p. 44).

O processo de libertação envolveria dois momentos, o primeiro do desvelamento do mundo da opressão, o descolamento do opressor e o comprometimento com a transformação do mundo, tornando-se num segundo momento, pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. No contexto da juventude, por exemplo, muitas vezes o oprimido está introjetado sua “revolta”, não é uma consciência da própria exploração, mas uma busca de ser o opressor, de reproduzi-lo através dos padrões de vida deste, que são objetivos almejados. Não apenas a reprodução do opressor idealizado, do modelo burguês de consumo jogado pela mídia, mas o próprio opressor no contexto das comunidades. Apenas na práxis essas relações de opressão poderão ser superadas. Práxis sendo pensada como “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para a transformá-lo. Sem ela é impossível a superação da contradição opressor-oprimido” (FREIRE, 2001a) e somente os oprimidos podem libertar-se dos opressores, e libertando-se, libertarem também o opressor.

 Refletindo sobre o processo de libertação analisado por Paulo Freire, gostaríamos de fazer algumas aproximações ao pensamento sobre liberdade desenvolvido por Agnes Heller na sua Sociologia da vida cotidiana (2001). Partiremos da premissa, a partir do pensamento de Heller, que a liberdade conquistada pelo oprimido se aproxima mais de uma liberdade filosófica, enquanto a pretensa liberdade de opressor se liga a liberdade cotidiana. Para isso explicitaremos alguns pontos ligados ao tema. Para Heller, não podemos falar de um único conceito de liberdade, mas de liberdades no plural, havendo a liberdade econômica, política, moral, filosófica e cotidiana. O conceito cotidiano de liberdade liga-se ao conceito de particularidade, no sentido de afirmar aquilo que se quer, a legitimação das aspirações particulares. O conceito filosófico de liberdade seria visto nas suas manifestações históricas.

O conceito de liberdade da antiguidade clássica, no contexto da pólis, ligava-se a escolher o bem e, o máximo da liberdade, seria alcançado pelo homem que ocupasse a administração da pólis, livrando-se assim de suas motivações particulares. A concepção cristã não se contenta com o conceito político moral e busca as raízes ontológicas-antropológicas da liberdade. O cristianismo se volta contra a comunidade política tradicional e a ética da polis, transferindo o critério de liberdade para a vontade e acoplando a categoria liberdade à personalidade, estabelecendo uma relação entre liberdade de responsabilidade. Nas concepções burguesas vemos a correlação entre liberdade e necessidade. Spinoza, segundo Heller, por exemplo, trabalha a teoria do auto determinismo apregoando não haver liberdade alguma, apenas a necessidade, o indivíduo autodeterminando a ação. Já Hegel afirma a liberdade como reconhecimento da necessidade. Segundo Heller: “A humanidade só será livre quando todos homens particulares puderem participar conscientemente na realização da essência do gênero humano e realizar os valores genéricos em sua própria vida, em todos os aspectos dela.” (HELLER, 1991, p. 217).

A liberdade cotidiana se aproximaria mais dos interesses particulares. A definição burguesa de liberdade, a liberdade econômica do mercado seria análoga à liberdade cotidiana. A verdadeira liberdade só sendo possível quando a opressão não existir, quando o genérico estiver acima do particular. A liberdade cotidiana colide com o gênero humano, pois representa a liberdade da particularidade, que para Freire não poderia nem ao menos ser chamada de liberdade. A liberdade filosófica que o oprimido pode conquistar no processo de conscientização parte é claro, da cotidiana, da qual ao opressor não interessa transcender.

Heller não nega a liberdade cotidiana, assim como Freire também não, vendo nela o gérmem para a liberdade filosófica, que faria uma síntese das duas. A liberdade cotidiana, sem perder a sua especificidade de ser cotidiana, se tornará genérica, será humanizada, quando a vontade na vida cotidiana dos homens não estiver em conflito com os valores do desenvolvimento genérico, mas quando se harmonizarem. A tarefa do socialismo para Heller, assim como a tarefa da educação transformadora para Freire seria a de realizar a liberdade, de garantir a cada um as mesmas possibilidades de realizar a liberdade cotidiana, ou produzir as condições para uma nova democracia onde seria possível eliminar os conflitos entre valores genéricos e cotidianos.

 Tudo isso só seria possível pela superação da alienação. Na “cotidianidade parece natural a desagregação, a separação de ser e essência” (HELLER,1989, p.37). Existindo a alienação “...quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção” (HELLER, 1989, p.38) .

Heller diz que a alienação do cotidiano é superada pela condução da vida numa relação consciente do indivíduo com o humano genérico. Para Freire o processo de conscientização que levaria a libertação também daria ao homem a condução de sua vida, o desapego ao opressor que o conduzia cegamente, levando-o ao comprometimento com o mundo e com a sua permanente libertação.

DESCONSTRUINDO A DESESPERANÇA: RESGATANDO O DIREITO DE SONHAR

Uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica radical libertadora é trabalhar a legitimidade do sonho ético político da superação da realidade injusta. É trabalhar a genuinidade desta luta e a possibilidade de mudar, vale dizer, é trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante, que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodação à realidade injusta, necessária ao movimento dos dominadores (FREIRE, 2014, p.24).

 Nas relações capitalistas, o mercado tornando-se o definidor das relações humanas traria o fim das utopias e esperanças. Então nada mais pertinente que pensarmos no resgate do sonho e na capacidade de sonhar; do sonho que mostra que o diferente é possível, apenas ainda não foi instaurado. ...não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens.

A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre ambos quando da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua (FREIRE, 1998, p.91).

 O conceito de utopia no ideário freireano é intrínseco ao seu pensamento, como denúncia de um presente intolerável e anúncio de um futuro diferente a ser construído. Sem a utopia a educação não é possível, pois traz a semente do novo, do possível, da transformação. Sem ela nos limitaremos ao adestramento. O projeto de um mundo diferente, antes da sua execução é imprescindível numa prática educacional transformadora, sendo comparado com o trabalhador que projeta seu trabalho antes de executá-lo. O não comprometimento com essa utopia é deveras cômodo aos dominantes, pois leva o oprimido a comprometer-se de forma alienada com o sonho do opressor, com a sua lógica e verdade, querendo reproduzi-lo mecanicamente, como já analisamos com relação à juventude.

Faremos uma breve explanação sobre conceito de inédito-viável, trabalhado por Freire, pois traz contribuições importantes à discussão. Frente às situações limites e aos obstáculos que podem aparecer na vida do homem, pode-se reagir de formas diferenciadas, com posturas diversas: essas situações podem gerar um sentimento de que se é incapaz de transpô-las o não desejo de transpô-las ou a percepção crítica da sua existência levando ao desejo de superá-las. Por isso é fundamental que se tome distância para perceber o problema destacado da vida cotidiana, a ad-miração. O obstáculo só pode ser visto na sua dimensão de totalidade, quando se olha de forma crítica para ele. O inédito viável seria o não vivido, o utópico, apenas sonhado, o não lugar a ser descoberto e que só seria possível descobrir pela práxis libertadora. Esse percebido-destacado passa a ser visto como algo a ser enfrentado e superado por ações que seriam os atos –limites. O percebido – destacado levaria o oprimido a descobrir e buscar o inédito-viável.

O inédito-viável é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um percebido destacado pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (FREIRE-notas,1998, p. 206). Na discussão sobre as relações baseadas na violência, vemos a expropriação do sonho autêntico como algo a ser trabalhado e resgatado. A busca pela transformação da própria vida, assim como das vidas dos iguais, o sonho coletivo, pode se tornar um forte contraponto à ilusão da ascensão desmedida e aos ideais de consumo.

A concretização do ‘inédito viável’, que demanda a superação da situação obstaculizante – condição concreta em que estamos independentemente de nossa consciência – só se verifica, porém, através da práxis. Isso significa, enfatizemos, que os seres humanos não sobrepassam a situação concreta, a condição na qual estão, por meio de sua consciência apenas ou de suas intenções, por boas que sejam (...) Mas, por outro lado, a práxis não é a ação cega, desprovida de intenção ou de finalidade. É ação e reflexão (FREIRE, 2015, p. 221-222).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Contem-lhe que há milhões de corpos a

enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando

em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso reconquistar a vida...

Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder...

Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...

                                                   Vinícius de Moraes (Mensagem à poesia)

Freire nos propõe o diálogo como um profundo amor ao mundo e ao ser humano, e podemos acrescentar, um profundo respeito pelo humano como sujeito que possui uma fala a ser enunciada, respeitada, ouvida e acolhida na sua relevância. As relações de opressão entre oprimidos- opressores devendo ser desveladas nos processos crítico-educativos de construção do mundo.

Para Freire os processos educativos devem permitir ao homem se construir como sujeito, como pessoa que transforma o mundo nas suas relações de reciprocidade, fazendo a cultura e a história.

Num contexto como o atual, marcado pelo desrespeito ao outro e a fala de grupos minoritários, falar de relação educativa baseada em afetividade dialógica a partir do referencial freireano na escuta dos setores “pequenos” da sociedade, seria uma opção afetivo existencial revolucionária de transformação e de politização.

Para Paulo Freire (2001a, p. 81) “não há também diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer, de criar e recriar”. Fé na capacidade humana de “ser-mais”, como na de todos os homens e mulheres, sujeitos do processo da vida.

A utopia não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante. Por essa razão, a utopia é também um compromisso histórico. (FREIRE apud MISOCZKY et al, 2009, p. 461).

Violências e desconstrução dos processos democráticos estão nos ameaçando a cada dia. Mas a práxis de um saber ancorado na liberdade, diálogo, e utopias de transformação não podem ser esquecidas, nem naturalizadas. Num mundo “diabolizado”, a construção histórica e a certeza de que esse mundo está em construção precisa permear nossos dias e ações. Mesmo que cansados, as vezes sem perspectivas. O mundo está sendo, o mundo não é, como bem dizia o mestre Paulo Freire. Continuamos nas frentes de lutas, apesar de tudo... Continuamos ressignificando e reafirmando nas salas de aula, nos movimentos políticos e sociais, nos embates ideológicos cotidianos, que a utopia não morreu. É possível construir relações pelo diálogo ao invés do ódio, é possível conviver respeitosamente com a pluralidade e diferença, é possível ressignificar os processos democráticos. E como no mito de Calvino no “Visconde partido ao meio”, onde um personagem nobre é partido ao meio maniqueistamente, dividido entre a parte totalmente boa e a totalmente má, lutamos pelas pela re-costura dos diferentes e sempre imperfeitos, pelo ser-mais e pelos processos que caminhem em direção a humanização.

E que não se acanhem com os gritos de ódio.

REFERÊNCIAS

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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 30ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001a.

FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 11.ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2001b.

FREIRE, P. Pedagogia da Solidariedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

HELLER. A. O cotidiano e a história. 3. Ed. Rio de janeiro: Paz e terra, 1989.

HELLER. A. Sociologia de la vida cotidiana. 3 ed. Barcelona: Ediciones Peninsula, 1991.

MISOCZKY, M. C. A.; MORAES, J.; FLORES, R. K. Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio. Cadernos EBAPE. v.7, nº 3, artigo 4, Rio de Janeiro, setembro, 2009.

SANTOS, J. V. A violência como dispositivo de excesso de poder. Sociedade e Estado. Brasília, v. 10, n. 02. P. 281 à 298, jul/dez. 1995.

TORRES, C. Democracia, educação e multiculturalismo: dilemas da cidadania em um mundo globalizado. Petrópolis: Vozes, 2001.

Revista Desenvolvimento Social, vol. 26, n. 2, jul/dez, 2020

PPGDS/Unimontes-MG       


[1]  Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas (1995), Mestrado em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2006). Atualmente é professora DE do CEFET-Celso Suchow da Fonseca, unidade Nova Friburgo. E-mail: silvanaped@hotmail.com.