https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n1p160-197



Vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

ISSN: 2179-6807 (online)




ESTADO E SOCIEDADE: POLÍTICAS SOCIAIS E SUAS INCIDÊNCIAS EM LOCALIDADES RURAIS EM ITINGA, MINAS GERAIS, BRASIL1



Elicardo Heber de Almeida Batista2


Recebido em: 03/11/2020

Aprovado em: 14/05/2021


Resumo: No início do século XXI uma das propostas centrais das políticas públicas no Brasil, notadamente as políticas sociais, diz respeito à eliminação da pobreza econômica e da miséria. A referida proposta parte de um cenário brasileiro marcado por consideráveis assimetrias regionais, carências distintas e até mesmo a falta de infraestruturas sociais (sobretudo de atendimento à saúde e à educação), além de um número expressivo de brasileiros pobres ou extremamente pobres. Este artigo tem como objetivo apresentar um debate sobre o sistema de proteção social brasileiro e, a partir da experiência da pobreza cotidiana, tratar da relação entre sociedade e Estado, mormente a implantação de políticas sociais com enfoque no Programa Bolsa Família (PBF) e suas incidências nos lugares e condições de vida, tendo como recorte as famílias residentes em comunidades rurais localizadas em Itinga, Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Nessa localidade foi realizada uma pesquisa de campo baseada nas metodologias qualitativas, sobretudo, mas não apenas, em entrevistas que possibilitou a produção de evidencias que serão apresentadas ao longo deste texto, ou seja, história oral de vida e história oral temática como mecanismos para validação de algumas experiências não registradas em documentos históricos/escritos, bem como para dar centralidade à entrevista na produção de evidências empíricas. Em linhas gerais, pode-se concluir que as mudanças mais significativas no âmbito local se dão no contexto de uma forte presença do Estado com seus programas sociais, sobretudo o Programa Bolsa Família (PBF). Pode-se dizer que os processos sociais, econômicos e até mesmo culturais são reconfigurados a partir do momento em que há a “presença” do poder público nos “mundos rurais” com altos índices de pobreza.

Palavras-Chave: Políticas sociais. Pobreza rural. Famílias rurais. Vale do Jequitinhonha, Brasil.


STATE AND SOCIETY: SOCIAL POLICIES AND THEIR IMPACT IN RURAL LOCATIONS IN ITINGA, MINAS GERAIS, BRAZIL


Abstract: In the early twenty-first century one of the central proposals of public policies in Brazil, especially social policies, concerns the elimination of economic poverty, and misery. The proposal part of a Brazilian scenario marked by considerable regional differences, different needs and even the lack of social infrastructure (particularly health care and education), as well as a significant number of poor or extremely poor Brazilians. This article aims to present a debate on the Brazilian social protection system, and from the experience of everyday poverty, dealing with the relationship between society and State, especially the implementation of social policies and their effects in places and living conditions, and as clipping the families living in rural communities selected in empirical research in Itinga, Jequitinhonha Valley, Minas Gerais. In this location, a field research was carried out based on qualitative methodologies, above all, but not only, in interviews that enabled the production of evidence that will be presented throughout this text, that is, oral history of life and thematic oral history as mechanisms for validation of some experiences not recorded in historical/written documents, as well as to give centrality to the interview in the production of empirical evidence. In general terms, it can be concluded that the most significant changes at the local level take place in the context of a strong presence of the State with its social programs, especially the Bolsa Família Program (PBF). It can be said that social, economic and even cultural processes are reconfigured from the moment when there is the “presence” of public authorities in “rural worlds” with high levels of poverty.

Keywords: Social policies; Rural poverty; Rural families; Jequitinhonha Valley, Brazil.


ESTADO Y SOCIEDAD: POLÍTICAS SOCIALES Y SU IMPACTOS EN LOCALIDADES RURALES DE ITINGA, MINAS GERAIS, BRASIL


Resumen: A principios del siglo XXI, una de las propuestas centrales de las políticas públicas en Brasil, en particular las políticas sociales, se refiere a la eliminación de la pobreza y la miseria económicas. Esta propuesta parte de un escenario brasileño marcado por considerables asimetrías regionales, necesidades diferenciadas e incluso la falta de infraestructura social (especialmente salud y educación), además de un número significativo de brasileños pobres o extremadamente pobres. Este artículo tiene como objetivo presentar un debate sobre el sistema de protección social brasileño y, desde la experiencia de la pobreza cotidiana, abordar la relación entre la sociedad y el Estado, especialmente la implementación de políticas sociales centradas en el Programa Bolsa Família (PBF) y sus incidencias en los lugares y condiciones de vida, con especial atención a las familias que residen en las comunidades rurales ubicadas en Itinga, Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. En este lugar se realizó una investigación de campo basada en metodologías cualitativas, sobre todo, pero no solo, en entrevistas que permitieron la producción de evidencias que serán presentadas a lo largo de este texto, es decir, historia oral de la vida e historia oral temática como mecanismos para la validación de algunas experiencias no registradas en documentos históricos / escritos, así como para dar centralidad a la entrevista en la producción de evidencia empírica. En términos generales, se puede concluir que los cambios más significativos a nivel local se dan en el contexto de una fuerte presencia del Estado con sus programas sociales, especialmente el Programa Bolsa Familia (PBF). Se puede decir que los procesos sociales, económicos e incluso culturales se reconfiguran desde el momento en que existe la “presencia” de los poderes públicos en “mundos rurales” con altos niveles de pobreza.

Palabras clave: Políticas sociales; la pobreza rural; familias rurales; Valle de Jequitinhonha, Brasil.


INTRODUÇÃO


Nos anos recentes, sobretudo após 2003, difundiu-se no Brasil um conjunto de pesquisas e relatórios técnicos3 que apontam para transformações sociais e econômicas que estariam em decurso no país. Uma das principais mudanças diz respeito à redução dos índices de pobreza e de desigualdade, sobretudo, mas não apenas, nos primeiros anos do século XXI. Tal fato, segundo os dados4, estaria associado à expansão de políticas públicas, entre elas, as de transferência direta de renda aos domicílios mais pobres do país, localizados em regiões com baixo dinamismo econômico e alto índice de problemas sociais.

Nesse sentido, o artigo tratará, de forma sintética, do sistema de proteção social brasileiro e, a partir da experiência da pobreza cotidiana, da relação entre sociedade e Estado, mormente a implantação de políticas sociais e suas incidências nos lugares e condições de vida de famílias rurais pobres, tendo como recorte as famílias residentes nas comunidades rurais selecionadas na pesquisa empírica em Itinga5, Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, mas com enfoque no Programa Bolsa Família (PBF). Nessa localidade foi realizada uma pesquisa de campo baseada nas metodologias qualitativas, sobretudo, mas não apenas, em entrevistas que possibilitou a produção de evidencias que serão apresentadas ao longo deste texto, ou seja, história oral de vida e história oral temática como mecanismos para validação de algumas experiências não registradas em documentos históricos/escritos, bem como para dar centralidade à entrevista na produção de evidências empíricas.


ESTADO E SOCIEDADE: O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL



O Sistema de Proteção Social brasileiro, com ações governamentais concentradas nas áreas relativas à saúde, educação, assistência social, suplementação alimentar e programas habitacionais, começou a ser construído no período pós-guerra, ganhando maior relevância no ano de 1964 (MATTEI, 2003). Entretanto, cabe ressaltar que a previdência social, um dos pilares da proteção social, começou a ganhar forma com a Lei Federal Eloy Chaves, de 1923.No cenário nacional, as políticas sociais sempre receberam menos ênfase em relação às estratégias de desenvolvimento econômico do país. Ao longo do período militar, por exemplo, mesmo tendo havido expansão nos gastos de recursos públicos na esfera social em comparação aos anos anteriores, o sistema de proteção social permaneceu ligado às lógicas da política econômica nacional (HENRIQUES, 1999).

O período entre 1964 e 1988 foi conhecido como a época de aplicação de uma estratégia conservadora que “combinava a expansão da oferta de serviços com a centralização do processo decisório e com a regressividade dos mecanismos de financiamento, processo esse assentado no uso quase exclusivo de recursos de natureza fiscal” (MATTEI, 2003, p. 107). Dessa forma, o caráter redistributivo do Sistema de Proteção Social no Brasil foi consideravelmente limitado, e este é um dos fatores responsáveis pelos indicadores de concentração de renda no referido período.

Estando o poder de decisão concentrado na esfera do governo federal, sob um regime de exceção, a ausência do controle social e da participação popular ou de representantes da sociedade no processo de elaboração e condução das políticas sociais “possibilitaram ao Estado a adoção de um sistema que, com o passar do tempo, foi sendo tomado por interesses particulares e clientelistas, com impactos negativos sobre o próprio resultado das políticas sociais” (MATTEI, p. 107 2003). Esse modelo de intervenção estatal começou a esgotar-se na década de 1980. A crise financeira internacional, seus reflexos no Brasil e o colapso do regime militar contribuíram para esse esgotamento. Com os reflexos da crise financeira da década 1980 e o fim do regime militar, houve no país o aumento, ou maior visibilidade, das demandas sociais, entre elas a questão da pobreza e da pobreza extrema. Como em outras experiências, a exemplo do que ocorreu em Portugal com o fim do Estado Novo (CAPUCHA, 1998), no Brasil, após o retorno à normalidade institucional e com a eleição de governos não ditatoriais, as demandas sociais começaram a entrar nas agendas nacionais, entre elas as discussões relativas ao Sistema Nacional de Proteção Social, as assimetrias sociais e a questão da pobreza econômica.

Um dos reflexos desse fenômeno social e político está na própria Constituição Federal de 1988, que contém um capítulo específico sobre seguridade social e as questões relativas à saúde, previdência e assistência social, direcionando ao Estado a responsabilidade de organizar o Sistema Nacional de Proteção Social (FAGNANI, 1999; MATTEI, 2013). Entre os princípios norteadores desse sistema, o texto legal estabelecia a universalidade da cobertura, a equivalência dos benefícios e dos serviços às populações rurais6 e urbanas, as distintas formas de beneficiamento e mecanismos democráticos de gestão. Relativo à esfera financeira, foram definidas como fontes de financiamento do referido sistema “as contribuições dos empregados e dos empregadores, o Fundo Nacional de Investimento Social (FINSOCIAL), a parcela dos lucros líquidos das empresas, a receita percentual de jogos e as parcelas dos impostos arrecadados pelo governo” (MATTEI, p.108, 2013). Entretanto, o processo de implementação do novo sistema de seguridade social foi caracterizado por uma fragmentação política da aliança democrática, pelo clientelismo político e pela corrupção, elementos que contribuíram para a pouca eficácia das ações sociais adotadas nos períodos posteriores à Constituição de 1988, o que significou uma estrutura social brasileira permanentemente marcada por altíssimos índices de pobreza econômica e miséria.

Em 1980, a população total do Brasil era de 118,2 milhões de pessoas, sendo que 54,5 milhões (46,1%) tinham rendimento per capita que não ultrapassava meio salário mínimo, considerando os valores referentes a outubro de 1981 (ou 0,5 SM), e 26,6 milhões (22,5%) tinham um rendimento per capita que não ultrapassava um quarto daquele salário mínimo, ou seja, eram pessoas classificadas como extremamente pobres, conforme o critério do rendimento familiar per capita. Em termos percentuais, os valores para 1990 não eram tão diferentes. De uma população total de 144,4 milhões de pessoas, 63,2 milhões (43,8%) tinham rendimento per capita igual ou inferior a meio salário mínimo, enquanto o rendimento per capita de 32,9 milhões (22,8%) não ultrapassava um quarto daquele salário mínimo, ou seja, estavam em contexto de pobreza extrema (HOFFMANN, 1995).

Entretanto, mesmo com este cenário, tanto no governo do presidente Fernando Collor de Melo (1990-1992) quanto no de Itamar Franco (1993-1994), o foco das ações se concentrou na redução da presença do Estado na vida econômica e social. Trata-se de um período chamado de neoliberalismo “à moda brasileira”, implementado por forças políticas conservadoras e com falsas promessas direcionadas aos brasileiros excluídos socialmente. No âmbito das políticas sociais, criaram-se dificuldades para o funcionamento dos direitos da sociedade explicitados na Constituição de 1988, principalmente devido ao adiamento da implementação de uma legislação complementar que os viabilizasse (IVO, 2008).

Entre 1995 e 2002, o governo de Fernando Henrique Cardoso foi marcado por uma estabilidade baseada nos preceitos do ajuste econômico proposto pelo Consenso de Washington, tendo como elementos centrais a desregulamentação dos mercados, a liberalização comercial e a reforma do Estado. Devido a essas circunstâncias, foi possível realizar reformas nos programas de seguridade social. A retomada do crescimento econômico e as mudanças no papel do Estado foram entendidas como aspectos essenciais para a obtenção de melhorias na esfera social (MATTEI, 2013). Entretanto, o governo FHC encontrava-se diante de um impasse: por um lado, havia a Constituição Federal, que estabelecia o direito do cidadão a saúde, educação, previdência e assistência das políticas sociais e o dever do Estado em prover esses serviços; por outro, a perspectiva neoliberal sob a qual os gastos públicos para atender as camadas mais carentes da população deveriam ser focalizados e selecionados.

Na perspectiva de focalização e seletividade nos gastos sociais, o governo FHC lança o Programa Brasileiro de Desenvolvimento Social (PBDS) com um conjunto de políticas focalizadas no combate à pobreza, extrema miséria e à fome aguda. Essas politicas de combate à pobreza focalizam suas ações em critérios técnicos baseados em princípios de necessidade e eficácia, visando a descentralizar competências entre as distintas esferas do poder público (União, estados e munícipios). No cenário nacional, porém, o baixo crescimento econômico e a fragilidade acerca das fontes de recursos contribuíram para a permanência das desigualdades sociais e de renda na estrutura populacional brasileira.

No entanto, como fruto de uma discussão que se estabeleceu no campo técnico, com ênfase na diminuição das desigualdades de renda no Brasil, ao longo da década de 1990 - mesmo que o período fosse caracterizado pelo desencontro e pela incompatibilidade entre os programas de ajuste macroeconômico em decurso e as estratégias de desenvolvimento social do governo (FAGNANI, 1999), agravados pelas restrições relativas ao crescimento econômico que impactava o financiamento do sistema social de proteção - começam a ocorrer, em determinadas localidades do Brasil, algumas experiências pontuais de transferência direta de renda.

Experimentos pioneiros foram realizados nos municípios paulistas de Campinas, Santos e Ribeirão Preto com programas de transferências de renda orientados a garantir uma Renda Básica de Cidadania (RBC), como uma tentativa de erradicar a pobreza e a miséria (SILVA & SILVA, 2007). No Distrito Federal, entre 1995-1998, foi implantado um programa de transferência direta de renda condicionada, o “Bolsa para Educação”, que exigia das famílias beneficiárias a matrícula e a permanência dos filhos nas escolas. Entretanto, essas experiências careciam de condições técnicas, operacionais ou financeiras (LAVINAS, 1998; ROCHA, 2008). Para se ter uma ideia, entre 1995 e 1998, as despesas financeiras da União (juros, encargos e amortização da dívida externa e interna) aumentaram de 37% para 58%, e os gastos sociais, de 25,5% para 26% (FAGNANI, 1999; MATTEI, 2013).

O que houve no cenário nacional foram ações muito pontuais e frágeis no combate à pobreza e à miséria. Utilizando o critério de salário mínimo, na década de 1990, os índices de pobreza e miséria eram consideravelmente altos, e o que estava em questão, entre tantos outros elementos agregados à pobreza, era a inseguridade alimentar e uma das expressões mais basilares da pobreza, a fome. Fome que não era e não deve ser entendida como uma ausência global de alimentos, mas relacionada à pobreza de grande parte da população brasileira (HOFFMANN, 1995).

Com a permanência da pobreza, da miséria e do fenômeno da fome, no ano de 2001 foram criados os programas Bolsa Escola (vinculado ao Ministério da Educação), Bolsa Alimentação (vinculado ao Ministério da Saúde) e o Vale Gás (vinculado ao Ministério das Minas e Energia), este último, um benefício direcionado as famílias com rendimento inferior a meio salário mínimo, mas sem condicionalidades. Em 2001, o salário mínimo vigente no Brasil era de R$ 180,00. Os dois primeiros benefícios eram condicionados: as famílias beneficiárias deveriam matricular seus filhos em escolas e sua frequência mínima deveria ser de 85%. Outros condicionantes eram a vacinação das crianças e a frequência das mães em postos de saúde para exames e tratamentos (MATTEI, 2013). No início do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, no ano de 2003, foi criado o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) que, através de um cartão alimentação, transferia renda às famílias que estavam inseridas em contextos de extrema vulnerabilidade social e insegurança alimentar e nutricional. No geral, o país ainda apresenta expressivos índices de desigualdades de renda. Em 2000, o Brasil, estava localizado entre os dez países mais desiguais do mundo, num total de 95, conforme os dados do relatório do Banco Mundial (2000).

No Brasil, os dados relativos à distribuição de renda presentes na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2013), mostra a permanência de uma profunda desigualdade no país, mesmo após uma distribuição de renda, mas que foi consideravelmente tímida. No início do século XXI, a apropriação da renda por parte da faixa dos 10 % mais ricos passou de 47,44% em 2001 para 41,55% em 2013. Por outro lado, entre os que estão nas faixas 50% mais baixas passaram de 12,6% para 16,41%. Em 2013, 15,09% da população brasileira era considerada pobre. Em 2001, essa taxa representava 35,09%. No ano de 2003, a gestão dos programas de transferência de renda era deficitária e este ponto refletia na inclusão e/ou exclusão das famílias nos programas sociais.

Com problemas de comunicação entre os diferentes órgãos e desencontros entre um conjunto de programas, mas com mesmo foco, famílias em uma mesma condição de precariedade poderiam receber um benefício, todos os benefícios ou mesmo ser excluída da rede brasileira de proteção social. Nesse sentido, foi instituído no ano de 2003, o Programa Bolsa Família, que unificava todos os programas sociais de transferência de renda (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás). Surgiu com a proposta de melhorar a identificação dos beneficiários, agilizar a liberação de recursos, reduzir os entraves burocráticos e facilitar a transparência no destino dos recursos públicos. Com uma proposta mais ambiciosa, esta política social, além de integrar o Fome Zero e um conjunto de benefícios surge com a ambição de combater a fome e a miséria e promover a emancipação das famílias mais pobres (BRASIL, 2013).

Há, na experiência brasileira, a mobilização de um conjunto de setores, tais como o empresariado brasileiro, a mídia impressa e televisionada, o terceiro setor (que não faz parte do mercado e do Estado) e a própria sociedade civil, para o enfrentamento da pobreza econômica. Entretanto, é o Estado, em suas diferentes esferas (União, estados e municípios), que tem apresentado experiências mais relevantes para o enfrentamento da pobreza. O papel do Estado tem aparecido como um elemento central de diferenciação na proposição e implementação de um conjunto de politicas no enfrentamento da pobreza.

Na segunda metade dos anos 2000, ocorreu no país um período de relevante dinamismo econômico e, ao mesmo tempo, expressiva redução da pobreza e no crescimento dos rendimentos per capita dos domicílios. Entre 2003 a 2009 o número de pobres caiu de 36 para 23 milhões de pessoas. No meio rural, onde a pobreza relativamente é mais expressiva, houve uma redução de 13 para 9 milhões, ou seja, uma queda de 31 % no numero de pobres (IBGE/POF, 2003;2009). A redução da pobreza foi resultado de uma variação positiva dos rendimentos em todos os segmentos sociais. Relativamente, a renda per capita das famílias mais pobres foi a que mais cresceu entre 2003 e 2009, de R$ 230 para R$ 326/mês, um crescimento 42 %, índice superior ao crescimento de 20 % da renda per capita urbana. O crescimento da renda per capita mais expressiva entre os mais pobres é reflexo não apenas da distribuição direta de renda. É resultado também de uma expressiva valorização do salário mínimo para o referido período (BARROS, 2007). Entre 2003 e 2009, a renda per capita cresceu 39 % entre os mais pobres urbanos e apenas 14 % entre os 10 % mais ricos urbanos. No meio rural, o crescimento foi de 63% para os 40% mais pobres e de 32% para os 10% mais ricos.

Os indicadores apontam que as famílias pobres passaram por maior crescimento de seus rendimentos per capita. Entretanto, as desigualdades permanecem na medida em que o rendimento per capita dos 10 % mais ricos é quase 20 vezes superior aos dos 40 % mais pobres nos domicílios urbanos e 18 vezes superior aos domicílios rurais (IBGE,2009).

Os pobres, como uma categoria social transitória, diversificada e multifacetada são grupos sociais que, em grande medida, não tem uma renda regular e acessam de forma precária as infraestruturas sociais, sobretudo relativas à saúde e educação, como é o caso das famílias rurais residentes em comunidades rurais em Itinga, no Vale do Jequitinhonha. São indivíduos ou famílias que, em maior ou menor grau, são os despossuídos da sociedade capitalista contemporânea. A partir desses critérios, os pobres são entendidos como carentes e excluídos.

É importante ressaltar que os critérios e a definição do que se entende por pobre são quase sempre externos aos próprios grupos classificados dessa forma. Nesse sentido, os pobres são classificados como os “outros”, os indivíduos marcados por um conjunto de carências que definem, mesmo que involuntariamente, um modo de vida. Modo e condição de vida que, em parte, deve ser eliminado, como por exemplo, no que respeita à alimentação precária ou ao acesso rudimentar à água. Se é legitima a importância de programas de combate a pobreza, a eliminação das desigualdades ou um conjunto de ações específicas direcionados aos grupos pobres, não parece para esses indivíduos ser muito confortável a posição de serem reconhecidos como os pobres do país.

Como afirmado anteriormente, o critério mais utilizado para a definição da pobreza é a faixa de renda em que se encontram as pessoas, de forma que os considerados pobres são reunidos em categorias, a partir de dados estatísticos, o que não permite observar a diversidade de situações que os envolve. As ações propositivas para a pobreza e a miséria geralmente partem de setores mobilizados da sociedade (como exemplo emblemático as ONGs) e ações governamentais. Esses agentes sociopolíticos geralmente são elementos externos aos grupos delimitados como pobres. Neste ponto, há pelo menos dois problemas centrais. Grupos definidos como pobres a partir de um recorte de renda podem possuir demandas distintas. Ainda que tenham em comum o fato de disporem de uma determinada quantia de renda para sua sobrevivência, esse indicador por si só não aponta para uma homogeneidade.

Transferências de renda têm tido um importante papel na redução da miséria rural. Outros programas, criados especificamente visando às famílias rurais e suas atividades agrícolas, não tem contribuído consideravelmente para a sua mobilidade social. O baixo acesso dos agricultores descapitalizados a determinadas políticas creditícias - como o PRONAF B, e a quase inexistente de adesão ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), resultado de um conjunto de elementos (estruturais e conjunturais) que contribuem anualmente para perda de grande parte das safras dos cultivos agrícolas. Dentre esses fatores, a inexistência de redes de irrigação, as longas estiagens/secas, os rios intermitentes, a ausência ou o pouco uso de insumos agrícolas são elementos que muito contribuem para a baixa produção/produtividade na agricultura familiar.

A instalação de cisternas em propriedades rurais é um paliativo que resolve o problema da sede, mas tem pouco impacto ou limita consideravelmente o trabalho da família na atividade agrícola. O Programa Mais Cisternas é mais um exemplo de como as ações públicas pontuais resolvem problemas localizados, mas trata-se de ações pontuais que têm pouca capacidade de mudar determinadas realidades sociais. Nesse ambiente social e econômico, as transferências diretas de renda acabam por ter um maior peso nas estratégias de reprodução social dessas famílias. Em Itinga, dentre as políticas sociais de combate à pobreza, a que mais se destaca é o Programa Bolsa Família. São 2.426 beneficiários, por meio dos quais são atingidas diretamente 7.520 pessoas, ou seja, mais da metade da população total do munícipio, que é de 15.012 habitantes (IBGE, 2010). O município de Itinga, localizado na microrregião de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, detém duas características bem particulares que o diferenciam da maioria dos municípios brasileiros: 1º) o predomínio da população residente no meio rural; e 2º) a ocupação de maior parte de sua população ativa em atividades consideradas essencialmente agrícolas (relacionadas à produção animal e vegetal).

A população total do município de Itinga (MG), em 2010, era de 14.407 habitantes (IBGE, 2010), dos quais 6.554 (45,5%) residiam na área considerada urbana pelo IBGE, e 7.853 (54,5%), na área rural7.

Com alta incidência de pobreza8 (59,19 %) (IBGE, 2010), a realidade social e econômica é marcada pelo pouco dinamismo na geração de emprego e renda, uma forte presença do poder público federal, com políticas de transferência de renda, intensa mobilidade espacial de sua população e carência de bens materiais e de infraestrutura, sobretudo a social. O município ganhou repercussão nacional por ter sido o local de lançamento do que é considerado o maior programa de combate à pobreza e à fome do mundo – o Fome Zero – e por deter, conforme relatório da Fundação João Pinheiro, o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM 0, 624) no universo de todos os municípios do Vale do Jequitinhonha (FJP, 2010).

Do total de 14.407 habitantes do município de Itinga, 2.846 (19,8%) encontravam-se na faixa que define extrema pobreza, com uma renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00. Em relação ao local de residência, enquanto 828 pessoas (29,1%) viviam na sede urbana do município, 2.019 (70,9%) eram moradores rurais. Esse é um dado importante, visto ser a pobreza econômica mais expressiva no meio rural. Ainda que o recorte para definir extrema pobreza seja extremamente baixo (menos de R$ 70,00 per capita), há um número considerável de famílias inseridas em uma realidade de baixíssima renda , o que reflete sobre outros indicadores, como o acesso à alimentação, por exemplo.

Os pobres economicamente têm demandas distintas, pois constituem um grupo heterogêneo. Por isso, uma maior participação desses grupos na definição de políticas públicas pode ser um meio de entender as deficiências em cada ambiente socioeconômico específico, a fim de que as ações de governos (em seus diferentes níveis) ou de outros setores mobilizados da sociedade possam ser mais eficientes, dependendo de cada contexto. Mais importante que localizar quem são os pobres (os grupos carentes) e suas carências (sobretudo as ligadas às condições materiais de existência) é tentar localizar quais são as potencialidades existentes nessas “regiões da pobreza”. A identificação e a seleção dos que são considerados os mais pobres na estrutura social brasileira são evidentemente importantes para que os programas sociais atinjam seu público. Entretanto, programas de transferência de renda condicionada (Estado) ou de distribuição de alimentos, em especial cestas básicas, por ONGS ou grupos ligados às igrejas católicas ou neopentecostais, têm tido efeito paliativo e pouco impacto no afastamento das famílias das condições de pobreza econômica e até mesmo da miséria/indigência.



POLÍTICAS SOCIAIS, INTERVENÇÃO NO COMBATE À POBREZA E AS RENDAS NÃO AGRÍCOLAS



O Programa Bolsa Família (PBF), no contexto de combate à pobreza, surge com a proposição de articular pelo menos três pontos considerados basilares na tentativa de eliminação da fome e da pobreza: promoção de redução imediata da pobreza através da transferência direta de renda; ampliação ou reforço dos direitos sociais básicos no âmbito da saúde e da educação; e coordenação de um conjunto de programas complementares, focalizado em famílias inseridas num contexto de vulnerabilidade social e/ou pobreza. Entre esses programas complementares, há os relacionados à geração de trabalho e renda, alfabetização de adultos, fornecimento de registro civil etc. (BRASIL, 2004). A articulação da transferência direta de rendimento com programas estruturantes, principalmente voltados à educação, saúde e trabalho (SILVA & SILVA, 2007), representa, portanto, uma possibilidade de ruptura com um ciclo geracional de pobreza (SIQUEIRA, 2007). Ao ser incorporado ao Programa Fome Zero, o PBF, pelo menos no âmbito das propostas, busca assegurar a parcela da população brasileira mais vulnerável à fome e localizada na base da estrutura social nacional, o acesso à alimentação, a erradicação da extrema pobreza/miséria e a conquista da cidadania. De forma geral, o combate à fome, à pobreza e às assimetrias sociais mediante as transferências diretas de renda, acompanhadas de um conjunto de serviços sociais basilares, sobretudo saúde, educação e assistência social, são proposições governamentais para a inclusão social dos mais pobres. De forma mais audaciosa, o PBF intenta possibilitar a emancipação social das famílias beneficiárias e a construção de oportunidades para que essas pessoas saiam de uma condição de miséria/extrema pobreza ou até mesmo de um contexto de vulnerabilidade social.

Ainda que a pobreza, como já mencionado, seja um fenômeno multideterminado que necessita de respostas ou aparatos complexos, o Programa Bolsa Família, ao transferir renda aos mais pobres, enfrenta diretamente pelo menos uma das faces da pobreza, a ausência de rendimentos para a compra de alimentos, situação em que seu impacto é direto. No entanto, por se tratar de um programa condicionado, as famílias beneficiárias precisam cumprir determinadas exigências, entre elas: a matrícula e a permanência de jovens e crianças em idade escolar em estabelecimentos de ensino; cuidados básicos com a saúde, por exemplo, frequentando postos de saúde, respeitando o calendário de vacinação de crianças entre zero e seis anos, ou realizando exames pré e pós-natais, o que, entre outros efeitos, pode impactar na queda dos índices de mortalidade infantil.

A análise das condicionalidades do PBF permite perceber uma forte centralidade do programa nas crianças e nos jovens. Tanto nas sociedades mais ricas quanto nas demais, as crianças estão entre os grupos mais vulneráveis à pobreza e à miséria. Os programas de transferências direta de renda, como o Bolsa Família, propõem combater ou reduzir a pobreza em um médio e longo prazo, centrando suas ações na tentativa de favorecer a quebra de um ciclo intergeracional de pobreza, por exemplo, o trabalho infantil e o analfabetismo (ausência de educação formal). O fato de estar condicionado à permanência das crianças, dos jovens e dos adultos na educação formal visa à superação da pobreza material/econômica e da miséria e aponta para a construção de uma sociedade mais igualitária.

O Programa Bolsa Família é uma das maiores iniciativas de combate à pobreza e à miséria no mundo. Tendo como público-alvo famílias com rendimento per capita mensal de R$ 154,00 reais, o programa complementa a renda de 13,9 milhões de domicílios com valor médio de R$ 164,86 por família, atingindo diretamente um quarto dos brasileiros (MDS, 2015). Seus principais objetivos são: 1) alívio imediato da miséria e da pobreza (transferência direta de renda), e certamente o objetivo mais conhecido do referido programa; 2) reforço ao exercício de direitos sociais basilares, com o intuito de contribuir para a ruptura do ciclo intergeneracional da pobreza (acesso à educação, à saúde e à assistência social); 3) apoio à geração de oportunidades para o desenvolvimento das famílias (ações complementares).

Em seus anos de existência, o PBF possibilitou retirar 36 milhões de pessoas da extrema pobreza mediante essas transferências diretas de renda. Entretanto, são consideravelmente altos os índices de pobreza e extrema pobreza no país, ainda que seja muito baixo o recorte de renda utilizado pelo governo brasileiro para identificar os pobres e focalizar políticas sociais a eles direcionadas. Enquanto em determinados países, como os componentes da União Europeia, a discussão maior gira em torno da exclusão social, no Brasil, uma das questões centrais continua sendo a necessidade de combate à miséria (extrema pobreza) e à fome, ou seja, as expressões mais basilares e mais cruéis da pobreza.

A fome como fenômeno social, pode ser compreendida em pelo menos três níveis: estrutural, específico e local. No nível estrutural, não é entendida necessariamente pela ausência de alimentos nos mercados globais, nacionais ou locais, mas como resultado direto da distribuição assimétrica de riquezas, notadamente, a concentração de renda e o desemprego. No nível específico, ela é decorrência de determinadas catástrofes naturais (secas/desertificações) ou sociais e políticas, tais como as guerras, que afetam diretamente o acesso das populações mais vulneráveis aos alimentos. No nível local, certas especificidades, tais como a baixa produção da agricultura para o autoconsumo, podem contribuir para a insegurança alimentar e a fome no âmbito micro.

No entanto, a avaliação do Programa Bolsa Família não é consensual, seja na sociedade brasileira em geral, no âmbito do campo acadêmico, ou no corpo técnico especializado – os assistentes sociais, por exemplo. Uma das principais críticas que a ele se faz diz respeito aos problemas que impedem a inclusão social dos beneficiários (SIQUEIRA, 2007), em especial a dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal, que poderia ser a “porta de saída” da situação de pobreza e, consequentemente, da condição de beneficiário do programa, bem como a baixa qualidade dos serviços públicos, principalmente nas áreas da educação e da saúde. Entretanto, essa carência de qualidade dos serviços públicos é parte da própria rede de proteção brasileira que extrapola até mesmo as competências do PBF. Estudos locais no Brasil (SIQUEIRA, 2007) aponta, por exemplo, que a chegada do PBF em regiões empobrecidas, tais como o Nordeste do Brasil ou a Mesorregião Norte do Estado de Minas Gerais, contribuiu para o aumento do número de matrículas de jovens e crianças pobres em estabelecimentos de ensino, a diminuição da evasão escolar e a ampliação dos índices de vacinação, mas os serviços ofertados e acessados por essas pessoas são, em grande medida, consideravelmente precários, como ocorre em experiências locais, a exemplo de Itinga, conforme demonstra o assistente social entrevistado, em sua fala que trata da relação entre as contrapartidas do PBF e os serviços públicos ofertados pelo Estado.

A condicionalidade da permanência de jovens e crianças em instituições escolares para a obtenção e a manutenção do benefício é passível de críticas na medida em que essa permanência é entendida pelo beneficiário como meio para o recebimento de uma renda e não necessariamente como o reconhecimento do papel e da importância da educação (SIQUEIRA, 2007). Mas, entre as famílias mais pobres, um dos reflexos do PBF, com a exigência de matrícula dos filhos em instituições de ensino, é que as crianças são afastadas de trabalhos pesados. Há autores que veem nisso uma inversão de valores, pois o que na essência é um direito passa a ser uma obrigatoriedade (SOARES, 2007), mas com o PBF, é possível às famílias retirarem seus filhos do trabalho na atividade agrícola (na roça) para se dedicarem aos estudos. E as evidências apontam que os índices de evasão são muito baixos.

Outra crítica que se faz ao PBF é que, ao selecionar os beneficiários a partir de níveis de renda muito baixos, restringe a inclusão de pessoas e/ou famílias vulneráveis no programa (SENNA, 2007), representantes de estratos da sociedade que se encontram em distintas situações de vulnerabilidade. Retoma-se, assim, a questão do critério adotado para a seleção do público-alvo do programa, o qual, para muitos, não deveria ser rígido. Outra face do problema é que, num país marcado pela informalidade do mercado de trabalho, também pode ocorrer que famílias com renda acima do critério de inclusão sejam indevidamente incluídas no programa, visto não terem seus rendimentos contabilizados. Neste caso, porém, os valores transferidos geralmente são tão baixos que pouco alteram as condições das famílias pobres (SILVA & SILVA, 2007). O impacto dos recursos é maior mesmo na redução da condição de miserabilidade de pessoas e famílias e da vulnerabilidade à insegurança alimentar.

Outro ponto que chama a atenção quando se avalia o PBF é o fato de ser considerado um “assunto de mulher”. Direcionado à família, com condicionalidades que são distribuídas entre seus distintos membros, o programa traz implícito o reconhecimento do papel central desempenhado pelas mulheres na esfera doméstica. Isso se expressa na opção por ter a mulher (sobretudo as mães) como titular do cartão para o recebimento dos recursos, e também como maior responsável pelas condicionalidades impostas pelo programa (MARIANO; CARLOTO, 2009). Dessa escolha decorrem duas visões distintas. Por um lado, entende-se que privilegiar a mulher numa questão tão importante, alçando-a ao papel de representante de seu grupo familiar, pode significar, no âmbito doméstico, o seu empoderamento, assim como o reforço da materialização simbólica da família centrada na figura feminina. Por outro lado, as feministas entendem que o PBF aumenta a responsabilidade das mulheres com os jovens e crianças, reforça a cristalização dos papéis relativos a gênero e o lugar da mulher dentro da sociedade e, principalmente, em seu próprio lar: os cuidados com a casa, com o grupo familiar e com a reprodução biológica.

Independente de como é avaliado, o PBF, um rendimento extrafamiliar, originário das transferências diretas de renda, é incorporado na economia doméstica e passa a ser parte das estratégias familiares de reprodução social. Seus recursos alteram a economia doméstica e, como primeiro impacto, se reflete no aumento quantitativo de alimento e, depois, na compra de eletrodomésticos e móveis financiados, movimentando as economias locais, sobretudo em Itinga e Araçuaí.

Além disso, o acesso a determinados bens, tais como roupas e sapatos, assim como melhorias nas residências, com a troca do telhado, pintura e o chão cimentado são algumas modificações pontuais que contribuem para uma percepção de que estão ocorrendo transformações em suas condições de vida, viabilizadas pelas transferências diretas de renda. Se, nos lugares de vida, há uma incerteza dos rendimentos, vivendo as pessoas permanentemente por um “fio”, dedicando-se a uma agricultura para o autoconsumo, com baixa capitalização, elas dependem consideravelmente dos benefícios sociais que são parte essencial de suas estratégias de reprodução social. Para as famílias rurais agrícolas, organizando o trabalho a partir da unidade familiar, que é simultaneamente unidade de produção agrícola e de consumo, na incerteza dos recursos monetários advindos da comercialização dos produtos agrícolas resultante das atividades na roça e no roçado, adotam involuntariamente novas estratégias de sobrevivência, ampliando o peso dos rendimentos dos benefícios sociais.

Mesmo que existam nas proximidades ou nas próprias comunidades rurais9 outras atividades não necessariamente ligadas diretamente à produção animal e vegetal, tais como consertador de cercas, pedreiros, marceneiros etc., dificilmente as famílias irão contratar mão de obra extrafamiliar. Entre as famílias extremamente pobres, as atividades agrícolas e não agrícolas, quando praticadas fora da unidade de produção familiar, tem um forte caráter de ajuda e reciprocidade. Essas relações de trabalho tendem a não ser mediadas pelo dinheiro. Na comunidade rural da Gangorra – localizada no município de Itinga, uma das comunidades onde foi realizada a pesquisa , área de cerrado e com menor problema relativo à escassez de água a ser utilizada na atividade agrícola e no consumo dos animais, há uma diferenciação social entre os pequenos agricultores policultores e os fazendeiros especializados nos cultivos de café. Em determinadas fases dos cultivos no café, quando os fazendeiros locais necessitam de um número maior de empregados, sobretudo durante a colheita, a mão de obra é paga, diferente da solidariedade existente entre as famílias de agricultores pobres.

A solidariedade entre as famílias de agricultores pobres é também uma estratégia de sobrevivência em um contexto de parcos recursos. O trabalho dos camaradas na atividade agrícola baseado em relações não capitalistas irá produzir alimentos para o consumo. Quando são gerados excedentes agrícolas, eles são comercializados pela família nas feiras, sob uma lógica e dinâmica predominantemente capitalista, desde o pagamento para o transporte dos produtos agrícolas das comunidades à sede da feira, até a venda dos referidos produtos. Os vizinhos trocam produtos agrícolas entre si, mas na feira, o objetivo primordial é a comercialização de tais produtos. Com o resultado da venda, os agricultores compram nos mercadinhos locais alimentos industrializados, roupas, remédios ou outros produtos entendidos como necessidade da família. Entretanto, a geração desses excedentes agrícolas depende do esforço do trabalho familiar, ajuda esporádica da vizinhança e um fator essencial: a chuva. A atividade agrícola concentrada nos tempos das águas (entre outubro e dezembro) e uma menor produtividade ao longo das estiagens (restante do ano) são alguns dos fatores que contribuem para uma agricultura descapitalizada. Em comunidades rurais localizadas no cerrado, na caatinga, na mata atlântica, ou no encontro desses três biomas (áreas de transição), a organização da produção agrícola e a criação de animais, principalmente porcos e galinhas, são consideravelmente orientadas pelas necessidades de consumo familiar e para a comercialização nas feiras locais.



Mapa 1: Itinga, Vale do Jequitinhonha (MG) As comunidades rurais e os biomas.



Comumente ao fato de serem famílias agrícolas, com a incerteza das rendas nos lares, a “ajuda” do governo passa a ter um forte peso na definição das estratégias de reprodução social das famílias. Quando a produção agrícola é prejudicada, principalmente nas áreas mais impactadas pelas secas, as necessidades do grupo são atendidas pelo Programa Bolsa Família, como mostra a entrevista abaixo10:



LB. Moço, vou falar para você, que esse ano foi triste. Plantei uns 10 pratos de feijão e uns 7 de milho. Era o tempo das águas [...] Esperei a chuva chegar e não vinha. Pensei que ia perder tudo. Começou chover que foi uma beleza. O feijão estava cheio de flor e o milho, bonito. De dezembro pra frente, saiu um sol forte. A quentura veio e perdi tudo. Esse ano [2013] foi ruim demais para roça. Aqui na comunidade, foi perda total. Se você for à feira vai ver como está fraco o movimento. Não escapou nada.

E. Se pudesse, o senhor gostaria de trabalhar como outra coisa que não a roça?

LB. Eu gosto da roça. Gosto desse trabalhinho sossegado. Mas é sofrido demais. Tem vez que a gente planta e espera colher, e a coisa não vinga. Já pensei em ir embora. Mudar da comunidade, mas ir para onde? Nós não temos estudos. Queria mesmo era ter um jeitinho de ficar aqui mesmo [...] ter um ganho certo para viver melhor.

E. E quando não colhe para vender na feira, como ficam as coisas?

LB. Fica difícil demais [...] Tem o Bolsa Família que ajuda muito. Deus mandou esse benefício que quebra um galho [...] se não tem a colheita, dá para ir ao mercadinho e comprar a comida [...] comprar um feijão, um óleo, uma misturinha. (Sr. Luís Bezerra, 38 anos, Comunidade rural Ponte dos Pasmados, ensino fundamental incompleto)



O PBF tem tanto um papel complementar ou suplementar no contexto dos rendimentos do grupo. Com o insucesso na atividade agrícola, o PBF passa a ser o principal rendimento monetário do grupo familiar. Em geral, nos anos de “safra” boa, grande parte da produção de farinha, feijão, milho, rapadura e gordura de porco é estocada pelas famílias. Mas, anos seguidos com longas estiagens e um menor tempo das águas diminuem os estoques que as famílias possuem em suas dispensas. Na impossibilidade de trocar ou doar alimentos entre os vizinhos, recorrem aos mercadinhos com a renda dos benefícios sociais. A dependência do Programa Bolsa Família entre famílias pobres também é ampliada quando não há idosos residindo em seus lares. Como já demonstrado em outra oportunidade, as aposentadorias rurais e as pensões, por terem o seu valor atrelado ao salário mínimo vigente no país, além de estabilizar a renda familiar, viabilizam também a melhoria das condições de vida e a compra de bens materiais duráveis (carros, móveis e motos) e de consumo imediato (alimentos, roupas, calçados, entre outros), sendo que os principais gastos do benefício são com o consumo de alimentos, seguido do pagamento de tarifas de água e luz.

Em lugares com limitadas possibilidades de mobilidade social mediante o trabalho (agrícola e não agrícola), a presença de um aposentado rural em lares com poucos dependentes dessa renda é até mesmo um elemento de diferenciação social e interfere indiretamente nos arranjos familiares, com a valorização do idoso que, de dependente a provedor, passa a ser disputado pelas famílias. Ter um idoso aposentado no lar é uma forma de ter também um rendimento regular ao longo dos meses do ano (BELTRÃO; CAMARANO; MELLO, 2005). Geralmente as crianças e os idosos são duas categorias vulneráveis à pobreza, mas, com as aposentarias rurais, os mais velhos conseguem influenciar diretamente nas condições de vida dos membros de sua casa e até mesmo ampliar o investimento na atividade agrícola, com a compra de maquinários que serão operados pelos membros da família em idade ativa. Os idosos saudáveis tendem também a continuar na atividade agrícola, mesmo após a obtenção do seu benefício, pois a permanência no trabalho na roça é que dá sentido à existência dessas pessoas. Entretanto, em comunidades rurais muito pobres e com limitadas possibilidades de ter acesso a uma renda monetária certa, os idosos não conseguem proporcionar uma considerável melhoria nas condições de vida de suas famílias, como exemplo, nas residências, nas compras de móveis e eletrodomésticos, quando há muitos dependentes a uma única fonte certa de renda. Entretanto, Com a ausência de salários regulares ou a aposentadoria, é no PBF que elas se apoiam na certeza de ter uma renda que podem contar para garantir o suprimento das necessidades básicas do grupo familiar.


Quando a gente era menina, vivia descalça. Quando tinha um sapato, era de couro de vaca. O primeiro sapato que tive, quando mocinha, era desses de couro de vaca. Pai cortava o couro e fazia os sapatos para nós. Tudo era de couro. O colchão que eu dormia era de couro também. Não era muito bom. Era duro e doíam as costas, mas era o que tinha. Quando não tinha o couro, fazia as esteiras de palha de banana para dormir. Roupa também era coisa que não tinha. Não podia comprar roupa, porque não tinha como comprar. Éramos muito pobres. Eu não tenho vergonha de contar, porque eu vivi aquilo. [...] Quando tinha roupa, era a que mainha fazia. Era roupa de saco de estopa. O fazendeiro usava o saco de estopa para carregar mantimento. Quando não servia mais, mainha pegava e costurava para nós usarmos. [...] Tinha short, suspensório, camiseta, tudo de saco de estopa. [...] hoje, graças a Deus, consigo comprar a roupinha dos meninos. Compro fiado, mas vou pagando direitinho. Todo mês pego meu dinheirinho e pago um pouco [...] dá pra comprar comida, remédio, roupa para os meninos. [...]. Se você ver como era antes, hoje a vida na roça está muito melhor. Ninguém passa fome, tem luz, tem água. Comparado com antes, todo mundo é rico [...] Graças a Deus que a vida anda muito boa. (Dôra, 39 anos, agricultora, beneficiária do Programa Bolsa Família, Comunidade Rural Santo Antônio das Pindobas, analfabeta)



Em situações de extrema miséria e pobreza dos bens mais elementares da vida, com um círculo viciosa da pobreza, em que há uma quase impossibilidade de viver outro modo de vida no lugar, com menor precariedade, os recursos oriundos de “fora”, ou seja, das transferências de renda de políticas sociais, possibilita uma condição de vida menos precária que é visível principalmente no que se põe a mesa, ou seja, a comida.

O relato da família Ferreira, residente da comunidade rural do Itiguinha, traz evidências empíricas que possibilitam entender as mudanças que o Programa Bolsa Família viabiliza no espaço intradoméstico, mormente em relação a compra de bens para o lar (móveis) e a alimentação. Em uma casa próxima a um rio intermitente, o Itiguinha, residem Luísa, a esposa, 35 anos, analfabeta, Ribeiro, esposo, 42 anos, analfabeto, e seis filhos com idades entre 6 e 17 anos. Ambos são filhos de ex-agregados, expulsos de suas casas quando jovens. Ao longo de sua trajetória de vida, Ribeiro foi migrante temporário, trabalhando ora no corte da cana no interior paulista, ora como vaqueiro no Sul de Minas, sem deixar também sua atividade na comunidade rural de origem. Com os recursos da migração, adquiriu cinco hectares de terra numa área marcada por longas estiagens/secas ao longo do ano. Juntamente com vizinhos e parentes, construíram uma residência de pau a pique que foi sendo melhorada de pouco em pouco e, desde a contração do matrimônio, é o lar da família. Com o Programa Luz para Todos, conseguirem acesso à energia elétrica e, com o Programa de Cisternas, conseguiram minorar o problema das secas, estocando água, sobretudo para o consumo doméstico.

Em uma casa de cinco cômodos, residem com os filhos. Parte do dia, dedicam-se às atividades agrícolas. Cultivam milho, mandioca, hortaliças e feijão catador11. Luísa tem uma trajetória de vida marcada pela imobilidade. Na infância e em parte da juventude, residiu com a família na “terra dos outros”, até o momento em que tiveram que sair de seus lares e morar numa vila, onde sua família recebeu um lote do fazendeiro, como indenização. Sua antiga casa deu lugar ao cultivo de capim. O mesmo processo ocorreu com a família do Ribeiro: de agregados a residentes nas vilas do município de Itinga. Com a migração e a compra de um pedaço de terra, foi possível retornar à condição de agricultor, mas descapitalizado. Em pequena área, cultiva para o consumo familiar e a venda de excedentes nas feiras de sábado na sede urbana do município. Vivendo diariamente com a incerteza sobre as fontes de renda, ao longo da primeira parte do ano 2000, a família pôde acrescentar ao orçamento familiar à renda oriunda do Programa Bolsa Família.



E. A senhora recebe o Bolsa Família?

L. Recebo. Tem mais de oitos anos.

E. O Bolsa Família ajuda?

L. A gente não tem serviço aqui. Não tem um dinheirinho certo. Quando tem uma coisinha da roça pra vender na feira, até tem, mas não é certo. Certo mesmo, é só o Bolsa Família e graças a Deus tem ajudado demais. [...] a gente não tem estudo e é muito difícil [...] a gente acaba trabalhando nas roças mexendo com lavoura. É muito pouco o dinheiro de roça. A gente peleja, mas às vezes não colhe nem pra comer. [...] O lugar é pobre e não tem muito jeito de tocar a vida. Certo mesmo só esse dinheiro que o governo manda [...] com esse dinheiro dá pra comprar o material escolar e ajuda na feira [...] Sem o Bolsa Família, tudo ficava mais difícil pra gente [...] Deus ajudou que apareceu essa oportunidade dessa bolsa. Eu acho assim, se fosse um emprego pra gente, seria melhor [...] a gente ganhava mais, ajudava mais, mas emprego é difícil.

E. Melhorou a vida depois do Bolsa Família?

L. Melhorou. Ajuda manter os meninos na escola [...] De primeiro, a gente não tinha nem como mandar os meninos estudar em Itinga. Em Itinga usa uniforme, tem que ter uniforme, mas não tínhamos dinheiro para comprar o uniforme. Quando não tinha Bolsa Família, os meninos iam com uma bolsa rasgada ou com saco plástico, agora vão mais ajeitadinho. [...] Geladeira é uma coisa que a gente precisa bastante [...] sem uma geladeira é difícil demais, aí, com o dinheiro do Bolsa Família, já dá pra gente comprar. Pensava que nunca ia ter uma geladeira em casa, e agora eu tenho, graças a Deus.

E. É importante os meninos irem para escolar?

L. É importante. Eu estudei pouco. Escola era longe e tinha que ir a pé. Hoje, a gente fica atado porque mal sabe escrever. Ter escola é bom, porque pode depois buscar coisa melhor. Sair desse sofrimento de roça [...] eu queria ter estudado, mas Deus quis assim. Agora o governo ajuda demais, e estão mais fáceis as coisas.

E. Com os R$ 320,00 reais, dá pra uma família viver?

L. Vive com aperto. Igual a gente, que paga luz, compra comida, roupa, sapato, é uma ajuda que dá pra um tanto de coisa, mas aperta. Mas deu uma melhorada [...] Consegui até comprar uns móveis, dividido no boleto.

E. Você é quem compra os móveis?

L. É, eu mesmo, porque eu vou receber o dinheiro e aproveito para comprar um calçado, uma roupa, aí eu vou lá e pago, vou pagando [...] comprar um móvel, lá na Eletrozema, e eles dividem em 15 vezes pra gente. [...] comprei televisão, geladeira, com o dinheiro do Bolsa Família [..] é importante pra gente dentro de casa ter uma geladeira [....] agora, a gente tem condição de comprar, mesmo que aperta um pouquinho, mas o dinheiro do Bolsa Família é certo, você sabe que todo mês você tem ele, e pode comprar dividido. Aí vai lá e pode comprar.

E. Na feira, o que você compra com o Bolsa Família?

L. A gente compra óleo, açúcar, arroz, frutas, iogurte, bolacha recheada. [...] quando eu era mais nova, bolacha recheada era comida de rico. Hoje, todo mundo compra bolacha recheada. (Luisa, agricultora, casada, Comunidade rural do Itinguinha, ensino fundamental incompleto)



No caso dos beneficiários do PBF, o uso do dinheiro na compra de bens considerados essenciais à vida traz a percepção de aumento do conforto e melhoria das condições de vida no lugar de origem, como ter energia elétrica e uma geladeira, por exemplo. A compra de roupas, sapatos, produtos de higiene e alimentos e de produtos que as famílias beneficiárias conseguem acessar nos mercadinhos locais permite às pessoas pobres das comunidades rurais afirmarem que o PBF mudou sua vida positivamente. É um dinheiro que dá mais liberdade de escolhas, mesmo que sejam limitadas, devido ao valor do benefício que varia conforme o número de filhos. Mas para pessoas com rendimentos incertos e não raro até mesmo inexistentes, o Programa Bolsa Família representa poder escolher determinados produtos, como por exemplo, iogurte e bolacha recheada.

De fato, a estabilização dos ganhos monetários não contributivos tem maior poder para efetivar essa mudança em contextos em que há um menor número de dependentes dos idosos. Não se trata, porém, de profundas alterações ocupacionais. São famílias de agricultores, descapitalizados e marginalizados, que conseguem estabilização da renda mediante a presença do Estado no espaço intradoméstico, com o recebimento dos benefícios sociais. Ainda assim, considerando que a maior parte das pessoas é dependente da atividade agrícola, esses benefícios tendem a ter um impacto indireto em sua retenção nos seus lugares de vida e em melhores condições materiais de existência. Um dos problemas relativos às comunidades rurais de Itinga é que os rendimentos monetários não relacionados à atividade agrícola são, em sua maioria, decorrentes de transferências diretas de renda dirigidas aos mais pobres, aos idosos ou a portadores de deficiências físicas e mentais (aposentadorias, pensões e benefícios de prestação continuada), visto que o mercado de trabalho representa uma contingência que limita consideravelmente as opções nos locais de origem.

Os trabalhos não agrícolas, restritos aos escassos postos de trabalho no funcionalismo público, ou a pequenos negócios que comercializam alimentos, dos quais se ocupam geralmente pessoas do próprio núcleo familiar, não dão às pessoas do lugar possibilidades de escolha. Ou seja, é muito raro haver residentes das comunidades rurais em idade ativa, ocupados em atividades não agrícolas, seja em tempo integral, seja em tempo parcial.

Se o mercado de trabalho no entorno das pequenas propriedades rurais pudesse absorver alguns membros da família, sobretudo os jovens rurais, haveria como solucionar o desencontro entre os membros em idade ativa presentes nos lares e a pouca demanda para o trabalho da atividade agrícola ao longo do ano, principalmente, mas não apenas, durante os períodos de seca, quando diminui o trabalho familiar na roça e no roçado. Entretanto, para que isso se concretizasse seria necessária a ampliação do fenômeno das ocupações em atividades não agrícolas nas proximidades das comunidades, ocorrendo alterações nos mercados de trabalho rurais, o que de fato, não ocorre, ou ocorre pontual e insatisfatoriamente, como já mencionado. Como afirma Kageyama (2003, p.58), as rendas não agrícolas são importantes, na medida em que “podem viabilizar a sobrevivência da agricultura familiar no capitalismo, contribuir para a fixação da população no campo e aliviar a pobreza rural”. A combinação de múltiplas inserções ocupacionais dos membros pertencentes a uma mesma família é dificultada pelo ambiente social e econômico em que se inserem, em virtude da inexistência de postos de trabalho, visto não haver ali indústrias, grandes construções ou estabelecimentos de prestação de serviços, etc. A possibilidade de a família ter uma ou mais fontes de renda (combinação de uma ou mais inserções laborais) depende, portanto, de um conjunto de variáveis e fatores existentes tanto no espaço intradoméstico (número de trabalhadores disponíveis), quanto no espaço circundante (oferta de empregos). Como consequência, em famílias compostas por muitos jovens, cuja atividade agrícola não os absorve satisfatoriamente, essa diversificação das fontes de renda só é possível e, muitas vezes viabilizada, pela migração temporária ou definitiva de alguns dos membros dos grupos familiares.

Para as pessoas do lugar, o principal problema não está na pobreza, na miséria ou na falta de infraestrutura social, mas na ausência de empregos que estabilizem a renda e que, no imaginário social, representaria uma possibilidade de melhorar suas condições de vida. Essa visão é reforçada pelos próprios beneficiários do PBF, que entendem o caráter transitório do programa e, também, que o baixo valor do benefício, visto como uma ajuda, não resolve satisfatoriamente as necessidades das famílias. A inserção de membros das famílias em atividades não agrícolas, configurando novos modos de ocupação da força de trabalho, poderia diminuir a vulnerabilidade social a que estão expostas. Embora alguns membros das famílias assumam a migração como forma de obter emprego e renda, a fim de ajudar os que ficaram no lugar de origem, os custos nos lugares de destino (aluguéis, contas de água, luz, alimentação, transporte etc.) acabam por reduzir muito essa ajuda. Consequentemente, os recursos dos benefícios sociais restam como a única certeza de renda para dar conta das necessidades cotidianas.

Entre as famílias pesquisadas (35), 20 tornaram-se beneficiárias no ano de 2003, ou seja, na primeira experiência do programa, e 15 entre os anos de 2005 e 2007. Em todos os casos, não há uma previsão sobre a devolução dos cartões, o que deve ser entendido como uma falta de perspectiva para a “saída” da situação de pobreza. Isoladas e com dificuldades de acesso ao também escasso mercado de trabalho na sede urbana do município de Itinga, essas famílias dependem do recurso do PBF que, geralmente, é incorporado no orçamento familiar para a resolução de problemas do cotidiano, sobretudo, mas não apenas, para a compra de alimentos e o pagamento da conta de energia elétrica. Com valores que variam entre R$ 112,00 (valor mais baixo) e R$ 360,00, (valor mais alto) são as mulheres que administram o rendimento. O fato de o cartão do Bolsa Família estar em nome das mulheres tem em si um forte peso simbólico. Em outras experiências locais no Brasil, as mulheres são consideradas as melhores gestoras da econômica doméstica, diferente dos seus maridos que, acredita-se, ou não sabem realizar as compras adequadas às necessidades da família, ou provavelmente gastariam os recursos com bebidas (REGO; PIZANI, 2013).

Nas comunidades rurais de Itinga, ter um cartão bancário no próprio nome aponta para outros fatores, além da gestão da economia doméstica. Mulheres analfabetas ou semiescolarizadas, com média de três anos de estudos, têm pela primeira vez a condição de, após a contração do matrimônio, acessarem uma renda que elas administram. As mulheres, invisíveis, recolhidas em grande parte do ano nas suas comunidades rurais, pois em geral não migram, e o seu trabalho se restringe às lides domésticas e/ou ao trabalho na roça, começam a circular por espaços públicos, sobretudo nos bancos e nos pequenos mercadinhos locais. Dessa forma, adquirem visibilidade. Com um significado mais importante e profundo, administrar a renda familiar é papel apontado pela literatura como condição de empoderamento dessas mulheres pobres (REGO ; PIZANI,2013).Com o PBF, elas têm uma maior liberdade nas escolhas dos bens de consumo familiar. Entretanto, ao mesmo tempo em que há um recurso que é complementar a renda familiar, este consumo é limitado pelos valores do Programa Bolsa Família. Com a ausência de salários regulares, é no PBF que elas se apoiam na certeza de ter uma renda que podem contar para garantir o suprimento das necessidades básicas do grupo familiar.

No caso dos beneficiários do PBF, o uso do dinheiro na compra de bens considerados essenciais à vida traz a percepção de aumento do conforto e melhoria das condições de vida no lugar de origem, como ter energia elétrica e uma geladeira, por exemplo. A compra de roupas, sapatos, produtos de higiene e alimentos e de produtos que as famílias beneficiárias conseguem acessar nos mercadinhos locais permite às pessoas pobres das comunidades rurais afirmarem que o PBF mudou sua vida positivamente. É um dinheiro que dá mais liberdade de escolhas, mesmo que sejam limitadas, devido ao valor do benefício que varia conforme o número de filhos. Mas, para pessoas com rendimentos incertos e, não raro, até mesmo inexistentes, o Programa Bolsa Família representa poder escolher determinados produtos, como por exemplo, iogurte e bolacha recheada.

O acesso a um determinado rendimento somado a facilidades creditícias possibilitam aos pobres a aquisição de determinados bens, como televisão, geladeira e telefone celular. Os modos, os meios e condições de vida e até novas formas de sociabilidade (com o uso de celulares) são fortemente influenciados pela relação entre Estado (e suas políticas específicas para os pobres) e a sociedade (neste caso os mais pobres). O aumento do nível de educação formal, todavia, é seguramente a parte mais difícil e invisível das condicionalidades do Programa Bolsa Família. Além de um relativo aumento no poder de compra dos pobres, com o Programa Bolsa Família, as mudanças geradas pelo fornecimento de energia elétrica – Programa Luz para Todos – e de água – Programa Mais Cisternas – são alguns indicativos que os próprios grupos sociais classificados como os pobres do Jequitinhonha (e do país) acionam, para avaliarem uma melhora significativa em suas condições de vida. No próprio imaginário social das pessoas do lugar, tal situação tem tido peso considerável na decisão de permanecerem em seu local de origem, desistindo da migração temporária ou até mesmo definitiva. Dessa forma, a presença do Estado desempenha um importante papel na reconfiguração das dinâmicas populacionais.

Sendo a pobreza (econômica) um fenômeno multidimensional, seu enfrentamento requer uma articulação de diferentes tipos de políticas, mas o PBF é a principal delas e com maior expressão no combate à pobreza. Nos relatos das famílias do Vale do Jequitinhonha, a descrição de suas condições de vida contemplam sempre dois momentos, o anterior e o posterior à chegada do Programa Bolsa Família. Antes de 2003, quando não havia o repasse de dinheiro a essas famílias como tentativa de eliminação da pobreza, as privações relativas ao acesso a alimentos eram uma constante e, não raro, estava presente o próprio fenômeno da fome. Nem sempre era possível obter o alimento por meio do trabalho na terra, da produção animal e vegetal para o autoconsumo. O próprio abastecimento familiar a partir da produção destinada ao autoconsumo limitou, historicamente, o acesso das famílias rurais ao alimento.

Os repasses do Programa Bolsa Família apresentaram uma expressividade maior para as economias de grupos familiares em que não havia nenhum aposentado e/ou de cujo pequeno patrimônio territorial fundiário não conseguiam retirar o necessário para o autoconsumo. É importante ressaltar, todavia, que juntamente com o PBF, a produção para o autoconsumo (produção não monetária) desempenha papel relevante na redução da vulnerabilidade alimentar do grupo familiar (plantar para comer).

A presença de aposentados rurais no espaço intradoméstico, como já mencionado, é elemento importante para as estratégias de reprodução social dessas famílias. Visto ser o valor da aposentadoria atrelado ao salário mínimo vigente no país, ele permite, principalmente quando não há muitos dependentes, melhorar a infraestrutura das residências e adquirir determinados bens, como geladeira, fogões e móveis, entre outros, o que proporciona certo conforto ao grupo familiar. Esse exemplo remete à relação existente entre ciclo de vida e condições de vida. Os indivíduos, ao avançarem na idade (em etapas inerentes ao ciclo biológico – da infância à velhice), mudam também suas posições sociais dentro da estrutura do grupo familiar. Da infância à velhice, no aspecto do trabalho, o indivíduo passa da vida inativa à ativa e, posteriormente, da vida ativa à aposentadoria. Os modos e condições de vida dos mais pobres economicamente estão também atrelados à idade das pessoas. Com isso, a própria trajetória do grupo social passa a ser influenciada pela idade dos que o compõem. Se os indivíduos ocupam distintas posições sociais ao longo de seu ciclo de vida, as crianças têm um alto grau de dependência em relação aos membros ativos ou aposentados de seu grupo familiar (de sangue ou consideração).

A natureza do ciclo familiar favorece (ou não) o acesso a um conjunto de rendimentos que são importantes para a própria estratégia de reprodução social do grupo: I- Famílias compostas por um maior número de crianças e jovens tendem a ser beneficiárias do Programa Bolsa Família. Entretanto, ainda que os recursos sejam proporcionais ao número de dependentes, há uma grande pulverização dos rendimentos, o que mantém as difíceis condições materiais de existência desse grupo. Nas famílias com muitas crianças em relação aos adultos em idade produtiva, há, portanto, uma possibilidade maior de o grupo familiar estar vulnerável a uma condição de pobreza (econômica e material). Com isso, percebe-se que a natureza do ciclo de vida interfere consideravelmente nas trajetórias e condições de vida das famílias.

II- Famílias com idosos tendem a ter, no espaço intradoméstico, benefícios da previdência rural. De qualquer modo, a vulnerabilidade é maior entre famílias com muitas crianças, que entre famílias com idosos. Estas conseguem proporcionar melhores condições de vida aos seus membros que aquelas, com muitos membros dependentes e beneficiárias apenas do Programa Bolsa Família (PBF), por exemplo. É comum, entre as famílias pobres, o acúmulo de benefícios sociais (aposentadorias rurais e o Bolsa Família). Entretanto, diferente de outras experiências locais, como no norte do Estado de Minas Gerais, as aposentadorias rurais em Itinga têm peso menor na melhoria das condições de vida das famílias do lugar, de que é exemplo a de dona Antônia, uma agricultura de 75 anos, da Comunidade Rural dos Hermógenes, matriarca de uma família cujos 26 membros dependem da renda do PBF e de sua aposentadoria.

III- Famílias compostas por um número expressivo de jovens, mas que não recebem benefícios sociais tendem a contar, no espaço intradoméstico, apenas com a renda advinda do trabalho na atividade agrícola e, por isso, mais propensas a uma condição de miserabilidade. Seu rendimento, resultante ou das vendas esporádicas da produção agrícola, ou de trabalhos temporários fora da unidade familiar de produção, como camaradas, para os fazendeiros locais, não é garantido todo o tempo ao longo do ano, o que afeta, diretamente as condições materiais de existência do grupo familiar.

Ainda que não haja uma grande diferença entre as residências nas comunidades, no que concerne à parte física, as casas das famílias exclusivamente agrícolas e que não podem contar com outra fonte de rendimento são as mais precárias. Como há forte relação entre acesso a benefícios sociais e ciclo de vida familiar, as pessoas do lugar almejam atingir a idade para a obtenção da aposentadoria, vista como uma possibilidade de melhoria nas condições de vidas. Em síntese, analisando as fases do ciclo familiar, percebe-se que, ao contrário de famílias com muitas crianças (7 a 12, por exemplo), aquelas compostas por poucos membros (média de 5 pessoas), com indivíduos em idade ativa e/ou com idosos aposentados, tendem a melhorar sua condição de vida.

O ciclo de vida familiar e poucos dependentes apontam para diferenciações nas condições de vida e até mesmo para distinções sociais entre as residências de uma mesma comunidade rural. As aposentadorias rurais e pensões garantem uma estabilização da renda familiar, possibilitando que as famílias melhorem suas residências, comprem bens materiais duráveis (carros e motos) e de consumo imediato (alimentos, roupas, calçados, entre outros), sendo que os principais gastos do benefício são com a compra de alimentos, seguidos dos custos da tarifa de energia. Além dos melhoramentos materiais que esses benefícios sociais proporcionam, eles acabam também por promover a composição de novos arranjos familiares, como por exemplo, a mudança do papel do idoso no seu próprio grupo, passando de “dependente a provedor” (BELTRÃO; CAMARANO; MELLO, 2005) e a ser pessoa altamente desejada nos lares das famílias pobres. À medida que as aposentadorias e pensões influenciam na melhora da renda do indivíduo, ela também afeta as condições de vida dos corresidentes do beneficiário.

A reprodução social dessas famílias passa a ser consideravelmente influenciada pelo acesso às políticas públicas, que têm como efeito direto ou indireto a redução da pobreza. No geral, são esses os elementos centrais que interferem nos meios e condições de vida dessas famílias rurais. Ou seja, a reprodução social é um processo em que determinada sociedade, mediante diversos mecanismos a partir do ambiente social e econômico na qual está inserida, reproduz suas mais diversas estruturas, mas fundamentalmente baseada em elementos externos aos grupos, como são os benefícios sociais. Em um universo social em que há altos índices de pobreza, tanto a melhora nas condições de vida quanto uma possível mudança na estrutura social (sobretudo pela saída da situação de miséria) são mais plausíveis no horizonte das famílias quando há no espaço familiar a presença do Estado, através principalmente de políticas públicas (particularmente as de caráter social). A satisfação das necessidades básicas dessas famílias (sobretudo no acesso aos alimentos), a posse de determinados bens (a garantia de certo nível de conforto) e o acesso a uma infraestrutura social (como educação e saúde) são atingidos principalmente em decorrência da presença do poder público nessas localidades. No geral, as políticas sociais (com forte expressão da política de aposentadoria rural e o Programa Bolsa Família) tem desempenhado um importante papel no sentido de redução da miséria no meio rural em questão.

Políticas focalizadas, como os programas de transferência de renda (Bolsa Família) e a aposentadoria rural, têm um impacto maior na redução da miséria. Ambas têm em comum o efeito imediato de inserir as famílias no mercado de consumo, ao possibilitar aos estratos mais pobres da sociedade o acesso a um determinado rendimento monetário. Por esse fato, nas regiões brasileiras em que há altos índices de pobreza econômica, o que se percebe com a chegada de políticas de transferências direta de renda (sobretudo o Programa Bolsa Família) e o acesso de um público (os pobres) a esses rendimentos, é o surgimento de mercados e lojas que comercializam eletrodomésticos. Mas, experiências locais no Brasil têm mostrado que o impacto da elevação do salário mínimo sobre a pobreza é maior que o de programas do tipo Bolsa Família, sobretudo para as pessoas com um campo de possibilidades limitado, entre outros motivos, pela pouca opção de trabalho ou de novas formas de ocupação.

Um dos principais dramas das pessoas que vivem em condições de miséria e pobreza no Vale do Jequitinhonha é a ausência de uma educação formal ou os conhecimentos técnicos que ampliem a possibilidade de inserção em distintos campos existentes no mercado de trabalho, sobretudo os empregados com carteira assinada. A baixa educação formal dificulta que as famílias mais pobres consigam trabalho que exija um conhecimento mais especializado. Para as famílias proprietárias de terra, que produzem grande parte do que consomem, mas, em pequenas quantidades, o Bolsa Família ajuda a “complementar a feira”. O feijão, a farinha, as hortaliças, as frutas, o milho (para manter a criação de galinhas, porcos e o gado) raramente são comprados nas mercearias, pois são retirados da propriedade, ainda que sem muita regularidade. Produtos de limpeza e higiene pessoal, açúcar, arroz e outros itens industrializados são adquiridos com o benefício do PBF. No entanto, para as famílias que não possuem terra para o cultivo, residentes nas vilas e povoados, é o Bolsa Família que possibilita o acesso aos alimentos e a ajuda esporádica das famílias (nucleares e estendidas) e dos grupos de vizinhança. Para as famílias rurais agrícolas, a renda do Bolsa Família é amplamente reconhecida como um complemento à produção para o autoconsumo, inclusive quando o trabalho na agricultura é praticado pelos jovens, como o exemplo do Paulo:


P. Produzo mandioca, cana, milho, abóbora, quiabo [...] O que não produzo aqui, eu compro com o Bolsa Família. [...] porque nem sempre sobra pra levar para o comércio [feira de sábado], daí só tem o Bolsa Família.

E. Como é separado o que é para o comércio e o que é para o consumo da família?

P: O que tiver necessidade e tiver na produção é consumo, o que sobra eu vendo [...] minha colheita vai pra alimentação e pra consumo. O que vai pro comércio [pequenas feiras locais] é o que sobra [...] O que não consumimos em casa. (Paulo, 28 anos, agricultor, solteiro, comunidade rural de Gangorra, ensino médio incompleto)



Outro efeito da presença das transferências de renda em localidades tradicionalmente desassistidas pelo Estado é a nova configuração que se desenha nas relações de trabalho.

Para os pequenos proprietários de terra, sem acesso a uma renda fixa, era comum aceitar trabalhos precários, com baixa remuneração e, muitas vezes, apenas em troca de alimentos. O trabalho prestado aos fazendeiros pelos agregados implicava a ética do favor: uma retribuição por ter um lugar para viver e um pedaço de chão para trabalhar em seus roçados. Quando esse arranjo deixou de existir, ganhou força o trabalho do camarada, uma categoria de trabalhadores rurais diaristas, residentes nas vilas, povoados ou em suas pequenas propriedades, que prestam serviços aos fazendeiros locais, recebendo pagamento em dinheiro ou alimento. Trata-se de uma relação assimétrica, diferente das ajudas entre iguais nos trabalhos do roçado e roçadinho. Sem muito poder de barganha, os camaradas aceitavam o trabalho mediante acerto verbal sobre o pagamento que constituía, às vezes, a oferta de almoço e jantar. Entretanto, a chegada do PBF, que para muitas pessoas representou a primeira experiência de uma renda fixa, possibilitou aos trabalhadores locais negociar com os patrões o pagamento pelo trabalho de camarada.

Como efeito positivo indireto do PBF, a mão de obra dos mais pobres tornou-se mais cara, pelo menos em determinadas localidades do país. Garantido o rendimento para a compra de alimentos, os trabalhadores passam a exigir remuneração melhor pelos trabalhos mais degradantes, como por exemplo, nas carvoarias. Se o contratante não paga bem pela diária é possível recusar a empreitada até que surja, ainda que temporário e pesado, um trabalho melhor remunerado. Mesmo nesse ambiente econômico, a posse do dinheiro dilui “obrigações costumeiras vinculadas ao caráter privado da relação pessoal: obrigação e prestação de serviços constitutivos da dependência pessoal entre pessoas que interagem, mas investidas de poder muito desigual” (REGO; PIZANI, 2013, p.219).

Os agricultores locais capitalizados, após a chegada do PBF, passaram a encontrar maior dificuldade para contratar trabalhadores fixos ou temporários. Conforme o Sr. Joaquim, um desses proprietários de terra entrevistado, o que ocorre é que as pessoas “não querem mais trabalhar na roça” e estão “mais preguiçosas”. Acreditam que ao assistir as famílias, o PBF estaria causando a acomodação dos beneficiários em relação ao trabalho, uma espécie de “efeito preguiça”. Ironicamente, os próprios grupos que criticam os pobres pela indolência/preguiça, são os mesmos que em geral tentam explorar essa mão de obra, não assinam suas carteiras de trabalho, pagam valores simbólicos pelas diárias e não querem, na ausência dessa mão de obra, realizar os serviços que os trabalhadores pobres realizam. Tanto nos trabalhos esporádicos como nos fixos, a carga horária e os valores pagos são definidos oralmente. Na região, um trabalhador recebe, em média, R$ 15,00 por dia para “roçar a manga”, utilizando a foice, ou R$ 8,00 para “descarregar” um forno de carvão. Esses valores variam conforme a demanda e, geralmente, são combinados previamente entre contratador e contratado. Um “tirador de leite” trabalha meio período, porém de domingo a domingo, recebendo menos que um salário mínimo, como é o caso de um jovem de 19 anos cujo ganho mensal é de R$ 235,00. Outro exemplo é o de Eugênia, de 27 anos, que trabalha como empregada doméstica de segunda a sábado em uma comunidade rural, recebendo mensalmente R$ 80,00. Segunda ela, aceita essa situação devido à impossibilidade de ter outra fonte de rendimento, mas planeja, tornando-se beneficiária do PBF, deixar o emprego de doméstica, pois “trabalha e sofre muito, mas ganha pouco”.

Entre as diversas privações decorrentes da pobreza econômica, é consenso, entre os estudiosos desse fenômeno socioeconômico, que a fome é uma de suas faces mais duras. A partir dos relatos dos entrevistados, cujas trajetórias sociais são marcadas por privações diversas, incluindo a escassez de alimentos, é possível inferir que atualmente encontram-se em situação mais confortável, conformando um novo tempo. O “tempo da fome” e da “necessidade” corresponde ao período em que as famílias eram compostas por muitos dependentes e os benefícios sociais não existiam. Para os beneficiários do PBF, a vida é dividida entre o “antes” e o “depois” do acesso a essa política social. Ainda que o programa seja um complemento temporário, insuficiente para suprir todas as necessidades da família, permite ao menos mitigar o problema da insegurança alimentar. Dessa forma, percebe-se que as políticas sociais possibilitam que as famílias em condições de miséria e pobreza tenham pelo menos um nível digno de vida, podendo inclusive ser mais seletivos na escolha de trabalhos temporários ou deter maior poder de negociação para obter pagamentos melhores.

Essa mesma seletividade ocorre com as migrações temporárias. Com a possibilidade de ter uma renda nos lugares de vida, as pessoas tendem a evitar a migração para inserção em trabalhos precários, como por exemplo, nos fornos de carvão vegetal. Entretanto, mesmo exigindo um maior pagamento pelo seu trabalho, muitos desses beneficiários do Bolsa Família permanecem inseridos no mercado de trabalho informal. A tendência a permanecer mais tempo no lugar de vida, ao invés de optar pela migração, ainda que temporária, aponta que os rendimentos dos benefícios sociais interferem nas dinâmicas de mobilidade espacial, condicionando inclusive a permanência de populações rurais com fortes tendências migratórias em suas localidades de origem.

Entretanto, nessas localidades, a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e ao ensino formal têm sido um dos grandes entraves à eliminação da pobreza econômica no Brasil, um fenômeno socioeconômico multideterminado e multifacetado, ainda bastante expressivo no cotidiano das famílias residentes nas comunidades rurais. Nos últimos anos, período posterior à década de 1990, porém, a diminuição da miséria e da pobreza (fenômeno socioeconômico ainda persistente) e uma relativa melhora nas condições de vida das famílias pobres foram viabilizadas em decorrência da atuação do poder público, mediante políticas estruturais que possibilitaram às famílias o acesso a energia elétrica, água encanada e tratada, a melhoria nas condições de moradia, inclusive com a construção de banheiros privativos, bem como a “injeção” de dinheiro por meio de benefícios sociais, o que promoveu aumento quantitativo de bens das famílias e de itens relativos à alimentação. Entre as famílias pobres, quanto maior o “braço” do Estado no interior de seus lares, mais expressiva foi a melhora em suas condições de vida, seja através do Programa Bolsa Família ou de outras fontes de rendimento como a aposentadoria rural (baseada no salário mínimo nacional). A diversificação das fontes de rendimento não diretamente ligadas à produção animal e vegetal (atividades não agrícolas) certamente interfere nas condições de vida das famílias, constituindo um importante mecanismo de redução da pobreza. Apesar do amplo grau de cobertura do Programa Bolsa Família, a previdência rural e as pensões têm um efeito maior em termos de valores, por serem calculadas com base no salário mínimo, e a renda por elas obtida pode ser ainda mais significativa dependendo das características familiares, principalmente o número de dependentes que as compõem.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Entre as famílias, localizadas na base da estrutura social que tem em seu cotidiano, os dramas das incertezas, sobretudo relativo à renda monetária, a universalização e o crescimento exponencial (ainda que extremamente insuficiente) das politicas sociais, são percebidas como um dos elementos fundamentais para avaliar essa melhoria de suas condições de vida. Entende-se que as politicas sociais, inclusive do governo Luiz Inácio Lula Da Silva, quando houve a maior saída das pessoas de uma condição de pobreza e extrema pobreza, tem tido um importante papel na dinamização das economias das famílias mais pobres, mesmo não tendo um efeito de impactar processos de mobilidade ascendente.

As políticas sociais, ao apropriar de uma pequena parcela dos recursos do Estado em benefícios dos mais pobres, com as transferências diretas de renda, têm impacto nos modos, meios e condições de vida dessas famílias, sobretudo, mas não apenas nos aspectos relativos aos alimentos e compra de certos bens que dão certo conforto e saída da condição de miséria, o que geralmente os tiram de uma condição de miséria, mas não necessariamente de pobreza. Rendimentos originários das transferências diretas de renda são incorporados às economias das famílias e passam a ser parte das estratégias familiares de reprodução social. A obtenção do PBF impacta diretamente na economia familiar (fonte de rendimento estável) e nas condições materiais de vida, com a possibilidade de melhorias na residência e nas vestimentas, e de aquisição de bens de consumo, como geladeira e fogão. Com trajetórias sociais marcadas pela pobreza econômica, pela marginalidade e exclusão social nas experiências dos migrantes do trabalho precário, os rendimentos oriundos dos programas sociais aparecem como uma possibilidade de ter uma renda no lugar de vida, o que dentre outros efeitos, contribui para uma relativização da necessidade de migrar para se inserir em mercados de trabalho extremamente precários. Ao mesmo tempo em que há um forte peso dos benefícios sociais na possibilidade dessas famílias terem o acesso aos rendimentos, este fenômeno é um forte fator de peso na opção pela não migração e até mesmo na realização da migração de retorno, em uma região fortemente marcada pelas migrações, sobretudo, mas não apenas, a do tipo temporária. Os pobres, como consumidores, permanecem mais tempo em suas localidades e conseguem com os benefícios sociais injetar dinheiro na economia local. Contudo, esse processo é, em grande medida, amparado por programas sociais de transferência de renda. Nesse sentido, as mudanças mais significativas no âmbito local se dão no contexto de uma forte presença do Estado com seus programas sociais, sobretudo o Programa Bolsa Família (PBF). Pode-se dizer que os processos sociais, econômicos e até mesmo culturais são reconfigurados a partir do momento em que há a “presença” do poder público nos “mundos rurais” com altos índices de pobreza.


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1 Esse texto é resultado de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

2 Docente nos cursos de Ciências Agrárias (área) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG Unidade Ituiutaba). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3961-3088. 

3 Dados do IPEA no relatório “TD 2499 - Os Efeitos do Programa Bolsa Família sobre a Pobreza e a Desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos” aponta que o “Bolsa Família é a transferência pública que mais alcança a população pobre no Brasil, uma vez que cerca de 70% dos recursos do programa alcançaram os 20% mais pobres, reduzindo a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%”. O Bolsa Família também responde por 10% de redução da desigualdade no Brasil, entre 2001 e 2015. Há uma vasta literatura sobre os impactos materiais e imateriais do PBF, desde o aumento do consumo (acesso ao dinheiro) até o empoderamento de mulheres por terem o benefício em seu nome e decidir como gastar o dinheiro. Para saber mais ver: Rego e Pizani (2013).

4 Com a análise dos dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e da Fundação João Pinheiro (FJP), percebe-se que o IDHM de Itinga teve um considerável avanço, em apenas sete anos, passando de 0,276 (muito baixo), em 2003, para 0,600 (médio), em 2010. A carência econômica, material e social, somada à baixa qualidade de vida, foi decisiva para que, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado no ano de 2003, fosse lançado, nessa cidade, o Programa Fome Zero, embrião do Bolsa-Família. Transferências de renda, como os oriundos do Programa Bolsa Família, tem impactado famílias com parcos recursos: melhoria na alimentação, acesso a dinheiro e cidadania, como mostrar de forma emblemática a obra de Rego e Pinzani (2013), mas há uma vasta literatura que trata de diversos impactos das transferências de renda, desde escalas locais, regionais e até mesmo nacional.

5 O referido município está localizado no Vale do Jequitinhonha, uma mesorregião mineira conhecida nacionalmente por suas carências sociais, materiais e econômicas. Está presente no imaginário social brasileiro e nas distintas mídias, sobretudo a televisão, como uma região marcada por um profundo estigma socioeconômico: a miséria. Detentora de fortes indicadores de pobreza e baixo dinamismo socioeconômico abriga um significativo número de pessoas residentes no meio rural que vivem do trabalho agrícola (produção animal e vegetal), com produção voltada principalmente para o autoconsumo. Esses marcadores economicistas de pobreza destoa de um ambiente social e econômico que é marcado, por outro lado, pela riqueza cultural (música e artesanato). Há uma vasta produção na literatura que mostra a “produção de uma narrativa” que pretender manter uma visão de Jequitinhonha como “vale da miséria”, apesar de existir movimentos para propor uma nova visão do vale com valorações mais positivas - “vale da cultura”, como exemplo emblemático o Festivale - Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, que surgiu para promover a organização política do povo do Vale e a valorização cultural da região. Para saber mais ver: Servilha (2015).


6 Importante ressaltar que entre trabalhadores rurais há quatro modalidades de previdência: 1) Segurado empregado, ou seja, tem algum tipo de vínculo de trabalho. Exemplo: categoria de trabalhador que presta serviço, de forma habitual, subordinado a um empregador em uma propriedade rural; 2) Segurado contribuinte individual, ou seja, prestam serviços a uma ou mais empresas sem um vínculo formal de emprego. Essa categoria deve fazer sua própria contribuição para o INSS através de guias de recolhimento. Exemplo: diaristas; 3) Segurado trabalhador avulso. Trata-se de uma categoria muito parecida com o Segurado contribuinte individual, mas nessa categoria deve haver intermediação obrigatória do sindicato da categoria ou do órgão gestor e 4 - Segurado especial, a categoria mais conhecida quando se trata de aposentadoria rural. Os segurados especiais são aqueles que exercem algumas atividades rurais de maneira individual ou em regime de economia familiar sem vínculo de emprego. Exemplo: produtores rurais, pescador artesanal, indígena; garimpeiro, silvicultores e extrativistas vegetais, dentre outros. Para saber mais ver Barbosa (2010).

7 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Dados disponíveis no site http://www.ibge.gov.br/cidadesat.

8 Segundo os critérios utilizados pelo IBGE, que trabalha com duas perspectivas para a noção de pobreza: 1º) pobreza absoluta - que se refere a não capacidade de consumo das pessoas, sobretudo pelo não acesso à cesta alimentar e a bens mínimos para a sobrevivência do indivíduo; 2º) pobreza subjetiva - quando as próprias pessoas avaliam suas condições de vida a partir de suas percepções.

9 No Vale do Jequitinhonha, o termo comunidade é utilizado para se referir a um agrupamento de pessoas residentes em áreas urbanas equivalentes a bairros ou de pessoas que residem fora das sedes urbanas dos municípios. Comunidade rural, por sua vez, traz os sentidos de delimitação territorial, religiosa e profissional, assim como de uma organização social fortemente baseada em laços de parentesco e vizinhança. Entretanto, na prática, as comunidades rurais não são universos sociais fechados em si mesmo, como uma espécie de “bolha” ao mesmo tempo em que a comunidade é circunscrita como um local delimitado, há um conjunto de relações sociais e institucionais que são ocorrem nesses lugares.

10 No decurso do texto aparecerão as entrevistas mais emblemáticas para entender parte os processos sociais citados no texto.

11 Feijão catador é também denominado de feijão-de-corda , feijão-macaçar ou caupi . No Brasil, esse tipo de feijão é mais comum na região Nordeste e no Estado de Minas Gerais.

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R evista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 1, jan/jul, 2021

PPGDS/Unimontes-MG