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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ

MOVIMENTOS SOCIAIS, SOFRIMENTO E CONFLITO: POR UMA ESCUTA QUE POTENCIALIZE A LUTA         

Paulo Beer[1]

Pedro Oliveira Obliziner[2]

Recebido em: 01/12/2020

Aprovado em: 21/12/2020

Em meio a uma tentativa de desmonte dos serviços públicos de atenção psicossocial no Brasil, a reunião das diversas reflexões presentes neste volume não poderia ter sua relevância mais explicitada. O grave momento que vivemos dificilmente não seria visto como uma tempestade perfeita: conjuga, por um lado, um governo irresponsável e absolutamente comprometido com a perpetuação de uma govermentabilidade opressiva, assassina e segregadora; por outro lado, a crise deflagrada pela pandemia aprofunda a violência já instaurada por essa racionalidade, de modo que o descaso dos governantes produz não somente uma situação de conflito, desamparo e tragédia sanitária, mas também a dramaticidade da situação atinge com ainda mais violência, como sempre, grupos segregados e descriminados por questões ligadas a raça, classe e gênero.

Se a situação atual torna imperativo o questionamento das estruturas operantes, é necessário também não nos esquecermos de que a crítica desse funcionamento social vem sendo feita há muito tempo — por diversos grupos e de distintas maneiras —, e que há muito que aprender com aqueles que se colocam nas linhas de frente há tanto tempo. Esse reconhecimento não consiste somente em um tipo de alinhamento ideológico ou programático, mas também na possibilidade de escuta das histórias, dos conflitos, do sofrimento e das perdas que se fazem presentes, tanto em cada um de seus sujeitos quanto coletivamente, e que devem ser tratados com o maior cuidado para que não se caia numa repetição que retire a potência das ações.

Isso significa que os movimentos sociais e seus agentes não podem ser reduzidos a suas pautas ou reivindicações, devendo ser tomados na complexidade que toda e qualquer coletividade impõe. Afinal, pode-se concordar ou discordar com ideias, objetivos ou encaminhamentos, mas, para além disso, o próprio fato de que pessoas de diferentes lugares e com diferentes histórias se unam numa pauta comum, se engajem numa causa e coletivamente lutem, sofram, percam e ganhem, isso indica que há aí muito mais do que pautas específicas ou defesas de projetos pontuais. Especialmente num momento em que o modo de pensar calcado em um ideal de privatização de todas as esferas da vida parece cada vez mais ganhar força, esse tipo de ajuntamento se mostra, em si, já uma forma de resistência. Essa resistência transcende, como afirmamos, as pautas específicas de cada grupo, uma vez que se pode ver nas próprias formas de organização a aposta numa outra maneira de se construir e lidar com o comum, de estar junto com os outros e de enfrentar os problemas e contradições que há tanto tempo nos assolam.

Entretanto, esse caráter de resistência sustentado por tais grupos não deve ser romantizado, sendo necessário olhar não somente para seus eventuais paradoxos, mas principalmente para o preço que se paga ao sustentar uma posição contra-hegemônica numa sociedade que trata dissidências com crescente agressividade. Isso indica a existência de ao menos duas dimensões distintas de conflito e sofrimento a serem consideradas. Por um lado, é bastante evidente que a própria existência de movimentos sociais indica que algo não vai bem: há experiências de conflito e sofrimento suficientemente relevantes, partilháveis e similares entre diferentes sujeitos para que se justifique uma organização coletiva para reivindicar e produzir transformações. Mais que isso, essas experiências partilháveis e similares muitas vezes dizem respeito ao desrespeito a direitos fundamentais, à violência e à negação da dignidade. Ou seja, isso, em si, já indica a intensidade e agressividade de tais conflitos e sofrimentos.

Entretanto, há outra volta que não somente se soma, mas aprofunda isso tudo. Trata-se do frequente desprezo e não reconhecimento da legitimidade desses movimentos e dessas pessoas. Algo que certamente já se faz presente nas formas de violência política supracitadas, mas que se aprofunda num modo de organização social que pouco tolera formas coletivas de enfrentamento e elaboração. Esse segundo ponto diz respeito, portanto, ao aprofundamento da violência, da humilhação e da deslegitimação dessas pessoas pela escolha de unirem-se e não silenciarem frente à opressão de uma sociedade tão desigual. A militância é, antes de tudo, uma clara demonstração de esperança de que o instituído possa virar uma outra coisa.

Desse modo, vê-se que se os movimentos sociais são possibilidades de elaboração e transformação daquilo que não funciona em nosso mundo, oferecendo apoio e reconhecimento a seus agentes, são também alvos privilegiados numa ideologia que insiste no aprofundamento da atomização dos sujeitos, em sua separação, segregação e despotencialização. Aquilo que é, portanto, uma resposta ao sofrimento e aos conflitos também se torna lugar de produção de sofrimento e conflitos, uma vez que se movimenta na contracorrente do que é socialmente esperado em termos de adaptação à ordem estabelecida.

Esse processo dialético em que as tentativas de transformação são combatidas violentamente aprofundando o sofrimento (que já não era pequeno) deve ser visto não somente enquanto um jogo de poderes e seus conflitos inerentes, mas também enquanto algo que molda as possibilidades de experiência de seus sujeitos. Ideia essa já presente em Freud (1917), ao apontar os atravessamentos sociais presentes na constituição dos sintomas, e aprofundada por autores como Hacking (1995/2002), Dunker (2015) e Rose (2018), entre diversos outros que apontam o fato de que o sofrimento não somente seria efeito dos conflitos e das contradições sociais, mas também de que o modo como esses conflitos são (ou não) reconhecidos modificam a própria maneira como se sofre. Ou seja, o sofrimento é histórico não somente porque é inseparável do contexto do qual é efeito, mas também porque é forjado a partir das ferramentas simbólicas disponibilizadas.

Nesse sentido, não é difícil reconhecer que propostas que tentam instaurar o entendimento de que o sofrimento deve ser compreendido prioritariamente como efeito de processos fisiológicos ou de ligações neuronais não somente fazem uma aposta irracional (Rose, 2018), mas também contribuem para o estabelecimento de um modo de vida em que os sujeitos se compreendem e se experienciam enquanto indivíduos avulsos, que devem ser culpabilizados por aquilo que não funciona sem considerar a dimensão social dos conflitos encontrados. Ou seja, há um caráter inegavelmente político em atuação.

Dessa forma, a tentativa de desmantelar um serviço público de atenção psicossocial mostra uma coerência com um projeto autoritário e segregador. Não se trata somente de instaurar um entendimento moralizante e até mesmo religioso sobre como podemos lidar com o sofrimento, mas, acima de tudo, trata-se de apagar a dimensão pública (que diz respeito a todos) e política do sofrimento. Isto nos leva a uma outra importante indagação: se antes falávamos de como o conflito e o sofrimento podem levar a uma luta pela transformação, por que alguns sofrem e mesmo assim não se rebelam? Trata-se de importante tópico da filosofia política desde a idade moderna, essa questão chega ao campo da saúde mental de um modo único, tendo aqui autores proeminentes entre Frantz Fanon (2020) e seus influenciados, incluindo Paulo Freire.

Algo que se tenta negar, e um dos pontos de desenlace, é a compreensão de que, embora uns sofram mais do que outros (ou tenham mais dificuldades em lidar com seu sofrimento), trata-se de uma questão que diz respeito a todos. Não somente porque o sofrimento é inseparável das escolhas que fazemos enquanto sociedade, mas também porque o modo como lidamos com esse sofrimento influi diretamente na possibilidade de transformar suas causas e de acolher aqueles que sofrem. Ideias essas que habitaram e habitam a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica brasileiras. Nesse sentido, isso que retrocessos como o atual desmantelamento tentam colocar em prática é um aprofundamento dessa cisão entre o individual e o coletivo, é a intensificação do isolamento de cada um e o apagamento de um horizonte comum em que a transformação seja uma possibilidade radical coletiva, e não reduzida a processos individuais que dificilmente escapam à adequação ou adaptação ao estabelecido.

Nesse ponto, retomamos a urgência dos trabalhos aqui reunidos, os quais conjugam em seus percursos o reconhecimento de sofrimentos e conflitos, as contradições, os paradoxos, e também a potência e a necessidade do combate coletivo ao racismo, à desigualdade, à segregação e à violência social em suas diversas formas. Os autores que contribuíram para a construção deste volume partem de suas experiências, atuais ou passadas, contribuindo para um debate franco e propositivo sobre como é possível avançar, mesmo em condições tão adversas. Se falamos da importância da dimensão coletiva da luta, não deve passar desapercebido que a grande maioria dos textos presentes nesse dossiê vem da experiência de grupos que se organizam tal como coletivos — Clínica Periférica de Psicanálise, Margens Clínicas, NETT, Roda Terapêutica das Pretas —, enquanto que o texto que nos remete à reforma psiquiátrica fala de uma época na qual esta forma de se nomear uma atuação em grupo ainda não era usual, mas que certamente era um trabalho que levava em conta esta dimensão.

Temos, como resultado dos convites feitos para a composição deste dossiê, um espaço aberto e interessante. Ainda que composto por textos com escopos diferentes, a unidade do tema proposto (“movimentos sociais, conflito e sofrimento”) forma um conjunto que permite adensar este campo e transmitir as inquietações mais atuais destes grupos, certamente afetados pelo nosso momento histórico.

Para tanto, David Pavón Cuéllar e Ian Parker nos oferecem um texto que se apresenta como um verdadeiro manifesto. Os dois pensadores e ativistas vêm conduzindo um esforço internacional de apresentar a psicanálise radical a membros de movimentos sociais, defendendo-a como uma forma de transformação e de libertação. Não apenas liberdade para si mesmo, mas liberdade de si mesmo. A respeito de um assunto que trazemos no tema deste dossiê, o conflito, eles apresentam que os sintomas escutados pelos psicanalistas são expressões de conflitos não apenas pessoais, mas políticos e históricos. Na insistente afirmação de que vivemos problemas historicamente construídos — para os quais a psicanálise e outras teorias da libertação surgem para tentar responder — e que podemos modificar o mundo a nossa volta e a nós mesmos, este texto é uma grande apologia da esperança e da luta pela transformação, algo bem-vindo no momento em que a psicanálise foi criada, mas também em nossos dias atuais.

Ana Carolina Barros conjuga, em seu artigo, tanto a história da Roda Terapêutica das Pretas como as questões que atravessam sua prática, e demandam um modo crítico de habitação da teoria psicanalítica. Trata-se, em linhas gerais, do reconhecimento interseccional de violências sofridas pela população negra e periférica, que faz com que a própria escuta do sofrimento não possa deixar de prestar especial atenção aos determinantes sociais que incidem diretamente na saúde mental dessa população. Num diálogo cerrado com a obra de bell hooks, Silva apresenta como a clínica não pode ser apartada de sua dimensão política, possibilidade que cairia, necessariamente, na desconsideração de questões cruciais para diversos sujeitos e que acabaria por reproduzir um sistema racista de violação e segregação.

Victor Barão, Pedro Obliziner e Anita Vaz nos trazem uma importante discussão decorrente de desdobramentos recentes do trabalho do Margens Clínicas, dando corpo a questões encontradas em processos de justiça restaurativa. Se a justiça restaurativa, de maneira geral, se constitui a partir de uma compreensão social dos problemas que tradições punitivistas e produtoras de encarceramento em massa incorrem — reproduzindo, evidentemente, padrões racistas e de criminalização da pobreza —, isso não significa que o estabelecimento de modelos alternativos seja algo simples, ou mesmo sem contradições. Visando, assim, sustentar de maneira consistente os ideais que permeiam os esforços de instauração de uma justiça alternativa e comunitária, os autores propõem uma ampliação do horizonte teórico que pode ser utilizado para lidar com as questões encontradas, apostando que a combinação de abolicionismo penal com vertentes materialistas históricas e uma psicanálise crítica — tudo isso passando por autores provenientes de tradições de pensamento não hegemônicas —, pode ser uma maneira de fazer avançar essa atuação.

O coletivo Clínica Periférica de Psicanálise - representado pelo texto de Gabriel Martins Lessa, Isabela Zeato Passos, João Luis Sales Sousa, Pablo Kaique Angelin Godoi e Yasmin Gabrielly Gomes dos Santos - apresenta pontos de reflexão que surgem da sua concepção e da sua prática, e que permitem questionar aquilo que localizam como dogmas da formação de um psicanalista, o pressuposto de que o paciente deve pagar em dinheiro e o desafio de conciliar a postura militante com o eixo político desta prática. A forma de atuação e o próprio nome escolhido para o coletivo causam impactos no tratamento, como acompanhamos na discussão feita sobre as inflexões que eles têm na transferência clínica. A origem recente do coletivo, em meio ao começo do surto de Covid deste ano de 2020, o coloca em uma perspectiva interessante para discutir os fenômenos recentes sobre populações marginalizadas, tanto no que diz respeito à pandemia quanto do nosso governo federal reacionário.

No texto de Nilson Sibemberg, temos um relato do resultado de uma mobilização social: a criação de um CAPS II em Porto Alegre no contexto da reforma psiquiátrica das décadas de 80 e 90. Ele descreve um esforço que envolve tensões e articulações no âmbito da política, do trabalho clínico pensado interdisciplinarmente e da administração de um serviço público. O artigo se desenvolve sobre uma forma peculiar da recorrente alegação de que “política e clínica seriam incompatíveis” — a qual, de diferentes formas, não deixa de ser largamente explorada nos outros artigos deste dossiê —, e que Sibemberg desenvolve a partir do tensionamento entre profissionais da saúde mental que muitas vezes enxergam com ressalvas um tipo de militância que poderia atrapalhar a clínica, e, por outro lado, militantes da luta antimanicomial que consideravam que trabalho clínico poderia ser um perigo à militância e à luta por direitos. Dicotomia esta que o autor responde ao discutir os horizontes teóricos que orientaram essa política pública.

No texto do NETT – escrito por Cristiane Nakagawa, Danielle Gimenes, Fabio Carezzato, Paulo Beer e Yuri Azeredo – vemos que a atuação voltada majoritariamente a pessoas de movimentos sociais demanda uma reflexão crítica sobre os efeitos da desigualdade social e da miséria na saúde mental das pessoas atendidas, inclusive o agravamento do sofrimento pela ausência de uma escuta qualificada. Essa problemática permite uma apresentação do início do trabalho do grupo numa ocupação do MTST, quando a demanda por atendimentos se mostrava aparentemente inexistente pela população local; o grupo, então, se coloca em uma postura ativa de querer escutar, procurar conversas, e percebe uma resistência daquelas pessoas em conversarem com pessoas “estudadas”, significante compreendido enquanto um marcador de diferenças sociais e de humilhação social. Ou seja, uma escuta qualificada não se corresponde a uma dita “boa formação” nas nossas escolas, instituições e universidades, se essa formação ainda reproduzir formas de violência social. O artigo aborda, assim, a relação analítica enquanto uma relação de poder que pode causar silenciamento e deslegitmação, ao invés de ser um convite à fala, questão apontada como essencial para a possibilidade de trabalho.

Esperamos, como organizadores, que o presente dossiê possa contribuir para revolver, fertilizar e germinar este campo de discussões. Que este seja mais um entre vários espaços de troca sobre a especificidade deste tipo de trabalho, sobre os desafios e efeitos de uma clínica implicada, radical e revolucionária. E, acima de tudo, coletiva.

REFERÊNCIAS

DUNKER, C. (2015) Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo Editorial.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu editora, 2020.

FREUD, S. (1917). O sentido dos sintomas. In: Obras Completas, volume 13. Tradução: Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Hacking, I. (1995) Múltipla personalidade e as ciências da memória. São Paulo: José Olympio, 2000.

ROSE, N. (2018) Our psychiatric future. The politics of Mental Health. Cambridge, UK: Polity Press.

Revista Desenvolvimento Social, vol. 26, n. 2, jul/dez, 2020

PPGDS/Unimontes-MG       


[1] Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pelo IPUSP. Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP) e da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP-ISPP). Professor do Instituto Gerar, coordenador do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT) e editor de Lacuna: uma revista de psicanálise. Autor de Psicanálise e ciência: um debate necessário (Ed. Blucher, 2017). https://orcid.org/0000-0001-9702-4209 contato: beerpaulo@gmail.com

[2] Psicólogo e psicanalista, mestre em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP e pesquisador do laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP). É membro do coletivo Margens Clínicas. Contato: pedro.obliziner@gmail.com. ORCID: 0000-0002-1096-2225.