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ABRINDO BRECHAS: A CONSTRUÇÃO DE FORMAS ALTERNATIVAS DE JUSTIÇA EM DIÁLOGO COM A SAÚDE MENTAL
Victor Barão Freire Vieira[1]
Pedro Oliveira Obliziner[2]
Anita Vaz[3]
Recebido em: 16/11/2020
Aprovado em: 22/12/2020
Resumo: Seguindo o trabalho do coletivo Margens Clínicas de atenção em saúde mental a uma população oprimida pela violência política e injustiça social, somos levados a questionar o ponto de intersecção entre o campo da saúde e o campo da justiça. O artigo é desenvolvido a partir de uma crítica à justiça tradicional como meio puramente punitivista, desigual e que tem, como prioridade, a manutenção do capital e da propriedade privada. Considerando isto, apresentamos algumas formas alternativas mais comuns, como a Justiça Restaurativa, encontramos nelas boas diretrizes e contribuições para uma prática de justiça, mas também certas limitações. É sobre essas limitações que desenvolvemos uma pesquisa há um ano e meio e apresentamos aqui resultados parciais, no esforço de desenvolvimento de uma prática de justiça alternativa e comunitária que se utilize das discussões sobre o abolicionismo penal, de uma crítica materialista histórica do Estado e de contribuições de psicanálise implicada politicamente.
Palavras-chave: Justiça restaurativa; abolicionismo penal; psicanálise; violência política; práticas comunitárias.
OPENING GAPS: THE CONSTRUCTION OF ALTERNATIVE FORMS OF JUSTICE IN DIALOGUE WITH MENTAL HEALTH
Abstract: Following the work in the collective Margens Clínicas, providing attention on mental health practices to a population oppressed by political violence and social injustice, we’re taken to question the intersection point between two fields, health and justice. This article is developed from a critic to the traditional justice as a purely punitivist medium, unequal and which has, as a priority, the maintenance of the capital and the private property. Considering this, we present some alternative forms more frequent, as the Restorative Justice, find in it contributions to a justice practice, but certain limitations as well. It is about those limitations we’re developing a one and a half year research, whose partial results we present here in the effort of developing an alternative and community justice practice that grounds itself in penal abolitionism, in a historical materialist critique of the State and in the contributions of pure and applied psychoanalysis.
Keywords: Restorative justice; penal abolitionism; psychoanalysis; political violence; community practices.
ABRIENDO BRECHAS: LA CONSTRUCCIÓN DE FORMAS ALTERNATIVAS DE JUSTICIA EN DIÁLOGO CON LA SALUD MENTAL
Resumen: Desde el trabajo del colectivo Clínicas Margens de atención a la salud mental a una población oprimida por la violencia política y la injusticia social, nos vemos obligados a cuestionar el punto de intersección entre el campo de la salud y el campo de la justicia. El artículo se desarrolla a partir de una crítica de la justicia tradicional como un medio puramente punitivo y desigual de mantener el capital y la propiedad privada. Considerando esto, presentamos algunas formas alternativas más comunes, como la justicia restaurativa, encontramos en ellas buenas directrices y contribuciones a una práctica de la justicia, pero también ciertas limitaciones. Es sobre estas limitaciones que hemos estado desarrollando una investigación durante un año y medio, y presentamos aquí resultados parciales, en el esfuerzo por desarrollar una práctica de justicia alternativa y comunitaria que haga uso de las discusiones sobre el abolicionismo penal, de una crítica materialista histórica del Estado y de contribuciones políticamente implicadas del psicoanálisis.
Palabras-clave: Justicia restaurativa; abolicionismo penal; psicoanálisis; violencia política; prácticas comunitarias.
INTRODUÇÃO - DE QUE JUSTIÇA ESTAMOS FALANDO?
Este artigo reúne algumas reflexões que membros do coletivo Margens Clínicas vêm realizando junto a outras colegas sobre aspectos que mobilizam a questão da justiça social, motivados por encontros do “Grupo de Estudos em Justiça Restaurativa”, espaço ministrado semanalmente pelo Coletivo desde junho de 2019. Margens Clínicas é um coletivo formado por psicólogos/as e psicanalistas que buscam formas de enfrentar a violência política e seus impactos na saúde mental. Algumas de nossas atuações focam no atendimento clínico a familiares de vítimas de violência policial, pessoas que foram perseguidas ou tiveram seus direitos lesados na ditadura militar, bem como na democracia, e também, muitos/as militantes que apresentam sofrimentos psíquicos devido às dificuldades encontradas nas lutas diárias. Este escopo de trabalho nos faz debruçar tanto sobre problemáticas da saúde mental e da escuta clínica, como em reflexões e posicionamentos críticos a respeito do Estado e seus modos de fazer justiça. Afinal, de que justiça estamos falando quando lutamos por justiça social?
Passando para a análise do crescimento da população carcerária brasileira nas últimas décadas, em comparação aos índices de violência no país[4], entendemos que a prisão como resolução de conflitos criminais não tem contribuído para o tratamento dos danos gerados pelos mesmos crimes. Não satisfeitos com os impactos que o paradigma punitivista tem em nossas formas de vida e sentindo os efeitos danosos que eles provocam, iniciamos alguns estudos coletivos que tangenciam o campo da Justiça Restaurativa, uma das mais difundidas formas alternativas de se pensar a justiça. Endereçamos esse campo, contudo, com a expectativa de produzir nele novos atravessamentos que possibilitem exercitar a crítica ao Estado e ao modo como este se efetiva numa sociedade capitalista como a nossa, em função do lucro e não da vida comum, estando a Justiça Restaurativa também refém dessa operacionalização em última instância.
Desde a nossa trajetória coletiva, e também nos caminhos singulares de cada um/a de nós, vemos que o estudo e a prática de metodologias apoiadas no viés da Justiça Restaurativa tem como uma de suas principais contribuições para o debate anti-punitivista alterar o paradigma retributivo (que toma como foco o sujeito criminoso e a sua consequente punição) para um paradigma restaurativo que privilegie as relações danificadas e as pessoas vítimas a partir de um conflito instalado socialmente. Em tese, o horizonte da Justiça Restaurativa[5] traz pontos significativos para contribuir a novas formas de construção do socius, levando-se em consideração a premissa de que uma vez atrelados a um conflito, somos parte e, portanto, responsáveis pelo cuidado dele decorrente, deste modo, a solução para os conflitos deve ser pensada, segundo essa perspectiva, de forma comunitária.
Contudo, em nossos estudos podemos localizar alguns aspectos da Justiça Restaurativa que nos parecem insuficientes, limitantes ou até comprometedores desta prática, o que nos leva a tomá-la como uma boa referência e inspiração em algumas de suas diretrizes, mas também nos instiga desvios e críticas que apontam para a necessidade de entrecruzar novas práticas no campo restaurativo. Podemos resumir nossas ressalvas em dois conjuntos que exporemos brevemente.
No primeiro deles, nos preocupa os aspectos objetivos da prática da JR em aliança com o poder judiciário, o que nos parece um contrassenso de sua própria origem como veremos mais adiante. A questão que se procurará expor e debater neste artigo é se a JR não estaria ocupando um lugar que interessa ao Estado do ponto de vista da manutenção de um projeto político de acumulação capitalista. Em última instância, uma vez localizada como política pública através da Resolução 255 da CNJ de 2016, qual função estariam as medidas restaurativas operando na política criminal? Qual o interesse de fazê-la parte do direito e da forma política, tomando por base sua radicalidade em inverter o paradigma punitivista atrelado à acumulação do capital?
No segundo conjunto, tentamos responder, principalmente por nossa condição de psicólogo/as e psicanalistas, a escassez de debates sobre uma teoria do sujeito e dos processos psíquicos nestas práticas, com a aposta de que contribuições vindas da psicanálise e de outros campos das humanidades trariam um bom suplemento a isto. Visamos, em especial, as discussões sobre a clínica do traumático e suas vicissitudes (a impossibilidade de narrar, a repetição histórica das violências), o testemunho como forma não-identitária e transindividual de reconhecimento (Obliziner, 2018), assim como as diversas formas de alienação produzidas pelo processo de subjetivação do sujeito na sociedade capitalista (Safatle, Silva Junior e Dunker, 2018). A experiência de trabalho do Margens Clínicas nos permite uma intersecção do campo da saúde mental com o campo da justiça, já que observamos e temos pesquisas consolidadas que mostram os efeitos de adoecimento e sofrimento psíquico advindas de experiências de injustiças sociais produzidas por violências políticas.
Seguindo estes dois eixos e considerando o trabalho ainda em andamento de nossa pesquisa/prática, teremos, neste texto, condições de apresentar resultados parciais de nossas discussões que são, ainda que insuficientes em apresentar soluções ou propostas interventivas concretas, problemáticas que nos permitem tecer críticas e nos re-posicionar em relação ao terreno que estamos lidando. É nossa intenção também territorializar e corporificar as nossas práticas, buscando encontrar quais fissuras podemos produzir rumo a outras possibilidades de construção de formas de justiça e resolução de conflitos que não estejam totalmente reféns e dependentes da forma jurídica.
A JUSTIÇA TRADICIONAL E SUA FORMA ALTERNATIVA
Para se ter uma real dimensão e uma postura crítica frente às concepções da Justiça Restaurativa e sua afirmada “mudança de paradigma”, devemos, antes de tudo, fazer uma análise da constituição do Estado capitalista e de sua forma tradicional de justiça para podermos comparar quais de seus imperativos e formas de opressão são mantidos ou confrontados.
Ao relacionarmos Estado e justiça de modo materialista, vemos que essa relação se tece através de uma política criminal que proporciona realidades radicalmente desiguais a depender da condição social a que estamos analisando. Se tomarmos como exemplo o sistema de segurança pública brasileiro, vemos com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, em entrevista concedida[6], como ele é estruturado segundo uma lógica da insegurança pública, levando à uma atuação das forças policiais deliberadamente violenta justificada por discursos como a da criminalização da pobreza, amplamente difundidos pelos meios de comunicação social que visam construir um imaginário de que o que é considerado crime deve ser combatido com violência. Colado à essa estratégia, está a construção do sujeito enquadrado como criminoso: o sujeito negro e periférico.
Para fazer frente a estratégias políticas como essas, que representam um projeto histórico de genocídio contra a população preta, indígena e periférica, nos valemos aqui de uma perspectiva abolicionista, entendendo crime como uma categoria historicamente produzida e estruturada segundo interesses hegemônicos, que segundo análises da criminologia crítica, sempre mantiveram uma seletividade racial, econômica e portanto também política, para fazer operar a lógica criminal e punitivista apenas para selecionados setores sociais, em beneficiamento de outros. Vera Malaguti (2011) nos aponta como a marcha do capital e a construção do grande ocidente colonizador do mundo e empreendedor da barbárie precisaram da operacionalização do poder punitivo para assegurar uma densa necessidade da ordem (Malaguti, 2011, p.19).
Levar em consideração a desigualdade estrutural instaurada na forma como se opera o punitivismo na sociedade se mostra relevante para guiarmos intervenções que possam, de fato, contestar a lógica hegemônica das práticas de justiça e resolução de conflito instauradas, já que estas, como mostraremos adiante, estão determinadas pelos modos de produção, privilegiando, sobretudo, a manutenção de suas formas de sociabilidade e não o cuidado e atenção com as pessoas e relações que possam ter sido lesadas. Ainda assim, consideramos que para além de um lugar formalmente demarcado por essa política punitivista e seletiva, os processos de subjetivação estão profundamente afetados pela ideologia penal, sendo de nossa percepção que ações que não compreendem sua inserção nessa malha de poder capitalista reproduzem lógicas extremamente naturalizadas na vida concreta das pessoas, como a ideia juspositivista de que, para se fazer justiça, basta recorrer à punição de culpados ou criminosos.
O paradigma juspositivista de se fazer justiça constrói a punição aos moldes da forma mercadoria, isto é, como sua forma derivada, tal como esta foi descrita por Marx e, posteriormente, por Pachukanis:
Para que as coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados’ (...) O sujeito jurídico ganha um sósia, na forma de representante, enquanto ele mesmo adquire o significado de um ponto matemático, de um centro em que se concentra uma dada soma de direitos. (Karl Marx, O Capital t. I apud PACHUKANis, 2017, p.142-144)
É assim que Pachukanis, contrariando as vertentes burguesas e idealistas da teoria do direito, vai notar como a relação de troca de mercadorias entre sujeitos resulta na forma da subjetividade jurídica e na forma política Estado, formas sociais constitutivas da sociabilidade capitalista e universalizadas pelo modo de sua produção.
Isto significa ainda que a forma Estado, garantidora das formas sociais elementares de produção e reprodução social, traduz (de modo arbitrário) a complexidade multidimensional dos conflitos sociais em normativas jurídicas, tal como a mercadoria corresponde um quantum qualitativo de trabalho abstrato contido nas mercadorias a um quantum quantitativo e trocável nas interações mercantis. Diferentemente dos modos de produção feudais ou escravistas, onde a dominação política era exercida pelos próprios agentes de dominação econômica, o modo de produção capitalista delega ao Estado sua função de agente terceiro em face das relações de produção: um agente político separado e em relação aos agentes econômicos dominantes.[7] O Estado como agente terceiro passa assim a ter como posse os conflitos juridicamente demarcados pelo direito, demarcando por sua vez a política criminal e a forma de lidar com os conflitos que se enquadram fora da lei.
Entre 1848 e 1850, Karl Marx está atento à prova a que o Estado francês é colocado diante do fracionamento da burguesia e suas lutas internas pelo poder. Antes que a luta encontrasse seu desfecho, o autor publica 18 de Brumário de Luís Bonaparte (Marx, 2011), uma análise histórica do Estado como garantidor político das formas sociais da acumulação capitalista, ainda que podendo se opor a ela, como se viu com a vitória eleitoral e posterior golpe de Luís Bonaparte. A descoberta de Marx é a de que o Estado não se porta como agente neutro diante dos agentes econômicos, mas, antes, protege e garante as estruturas de exploração, consagradas pelas revoluções burguesas dos séculos XVI em diante: propriedade privada dos meios de produção, igualdade formal e liberdade negocial.
Tanto no século XIX, também hoje a demonstração do Estado como forma terceira pode ser exemplificada com sua distinta preservação das formas jurídicas que se vê obrigatoriamente incumbido de resguardar em situações sociais críticas, quando crises econômicas conduzem enormes frações das classes trabalhadoras à miséria. São momentos como esse, quando o capital está em movimento, que o Estado se vale de amplo espectro de atuação política para a garantia de sua produção e reprodutibilidade: políticas nacionais desenvolvimentistas, de bem-estar social, progressismo industrial, desindustrialização, neoliberalismo ou fascismo, todas fazem parte da mesma ordem e forma política estatal. Ainda que com enormes diferenças, percebe-se que não importa o modelo estadista vigente, ele estará aliado ao capital, mantendo suas formas de reprodutibilidade como prioridade em relação a qualquer conjunto de direitos subsequentes. É sobre essas estruturas de reprodutibilidade do capital que se assentam todas as formas e contraformas jurídicas atuais. Fica marcado assim a indissociabilidade do Estado com o capital, permitindo-nos a crítica a muitos setores da esquerda progressista que clamam por um modelo (mais) democrático de Estado, não notando que assim defendem as mesmas formas sociais que garantem a exploração, i.e, a luta por direitos é uma luta dentro das formas do capital.
Para mencionar formações garantidoras da reprodução do capital, as prisões surgem como forma de administrar a pobreza. Fica marcado na história o movimento dos cercamentos das terras comuns intensificado no Reino Unido do século XVI que resultou na expulsão de camponeses servos das terras feudais e seu posterior deslocamento em massa para as cidades no processo de industrialização que se iniciava, um contingente de trabalhadores despossuídos e pobres passavam a receber uma mínima parte do valor social de seu trabalho, o que impulsionava ao máximo os lucros dos proprietários burgueses. Como essas formas de exploração eram extenuantes e produziam esgarçamento social e revolta, a regulação dos primeiros direitos trabalhistas visavam à proteção e reprodução da força de trabalho e, portanto, a melhor relação custo/benefício para sua exploração. Aqueles trabalhadores fora dos novos postos e contratos de trabalho passavam para o tratamento do Estado. O surgimento das polícias urbanas vem de um movimento subsequente, até se consolidarem no século XIX.
A polícia foi se constituindo como aparato público de represamento das massas e de suas pulsões outras, enquanto, nas trocas mercantis, ia se constituindo uma nova forma de subjetividade, não mais de normas morais, mas de normas jurídicas. Este aparato foi criado não para se ocupar do combate a uma estrangeiridade, de inimigos externos sob condições de uma alteridade, mas da parte indesejada de um elemento interno sob um signo de unidade universal. Poucas décadas do fim do império, no Brasil se viu surgir a lei da vadiagem, que punia com prisão aquele que não submetesse a si mesmo às formas da subjetividade jurídica, como a venda obrigatória da sua força de trabalho. Desse represamento pulsional virá toda forma de resistência, de ambas as classes inclusive, dos ludistas na Inglaterra às histéricas que, ao fim do século, serão ouvidas por Freud. O próprio conceito de sociedade civil passa a ser fundamental para o trato jurídico dessa nova subjetividade.
Em Pachukanis (2017) entendemos que é o direito enquanto forma aquele a organizar as relações sociais concretas que ocorriam, sobre as quais as mercadorias eram trocadas. Somente a conjuração entre dois sujeitos iguais é razão de produtos investidos materialmente enquanto formas de valores distintos que podem ser equiparados, quantificados e trocados. A forma mercadoria, então, será a célula das formas jurídicas para que estas possam sustentá-las em seu plano subjetivo. Por isso, Pachukanis irá afirmar o conceito de subjetividade jurídica como a forma social estruturante das relações sociais em sua universalidade no capitalismo, ou seja, em todos os Estados.
As implicações dessa descoberta para o que nos acostumamos chamar por justiça apontam para as garantias do Estado, em que todos somos sujeitos de direito e que, pelo direito, detemos propriedades, vendemos força de trabalho por um salário e temos formais condições de nos elegermos, abrirmos uma empresa, casarmo-nos, em suma, enforcarmo-nos nas cordas estabelecidas pela sociabilidade do capital. A formalização da igualdade entre os sujeitos, que esconde a desigualdade material de produção e reprodução da vida, irá se elevar à condição de existência dessa sociabilidade e seus modos de produção, tanto para organizar as formas de exploração industrial, do sujeito livre e voluntário para o trabalho assalariado, quanto para a dinâmica criminalização de suas condutas aos moldes daquela referência.
2.1.2 A Justiça Restaurativa (doravante chamada de JR) configura-se enquanto um campo de práticas que visam trabalhar a resolução de conflitos de modo alternativo à pena, valendo-se de uma ampla gama de métodos de diálogo, práticas circulares, vivências e processos artísticos que tenham como intenção a proposição de espaços seguros para o tratamento de questões emergentes ao conflito. Assim, como partida, é possível afirmar que não existe uma única Justiça Restaurativa, e sim, diferentes experiências e perspectivas atuantes nesse campo, que geram por sua vez diferentes entendimentos e críticas de sua aplicabilidade em diferentes situações.
Tendo como um de seus principais fundamentos o foco nos danos provocados pelo conflito, a JR traz a importância em inverter o olhar sistematicamente voltado ao opressor para os danos provocados por ele, ou seja, para os sujeitos e as relações afetadas. Toma assim como premissa a importância da responsabilização destes atos, sem ter como meta, porém, a punição, mas sim a possibilidade de reparação, engajando todos e todas envolvidos/as na trama do conflito. Os meios para esboçar e mapear os danos e possibilidades de resolução/acordo/reparação se dão por encontros entre os/as facilitadores/as e as partes envolvidas nos conflitos. Estes encontros, geralmente, são planejados de modo metodológico pela equipe envolvida, que traça uma forma de se aproximar do caso vigente. Um exemplo é o modelo do Círculo vítima-ofensor, que geralmente prevê entrevistas preliminares com cada parte, encontros de pré-círculo com cada parte e suas comunidades de apoio, para que após um processo de preparação adequada e escuta contínua seja possível gerar o ambiente de um círculo entre a parte vítima e a parte ofensora, através da mediação de facilitadores/as.
A voluntariedade das partes envolvidas no processo restaurativo é uma das exigências para que este possa acontecer. Dentre outras coisas, isso exige que a ofensa seja assumida no início do processo como condição de sua realização, i.e., não há possibilidade de iniciá-lo na medida em que os envolvidos não concordem que um dano foi cometido, que ele produziu efeitos sobre pessoas concretas e suas relações e que haja desejo em repará-lo por meio de reconhecimentos, responsabilizações, reparações e comprometimentos intersubjetivos.
Valendo-se da importância em configurar um ambiente seguro e produtivo do ponto de vista de um acordo restaurativo, participações compulsórias não são aliadas à filosofia e prática que circunda o campo da JR. Ainda assim, emerge aqui um ponto crítico a ser debatido e melhor avaliado, uma vez que não é incomum a busca pela JR como forma alternativa à pena, no entanto sem que se descarte a possibilidade da pena. Em outras palavras, a constante iminência da pena para um sujeito infrator pode muitas vezes levá-lo a "aceitar" um processo restaurativo, sem que de fato queira e acredite em suas proposições. Obviamente, trata-se de um ponto delicado e que deve ser sempre singularmente estudado, mas que possibilita apresentar a ressalva de que a efetivação de uma voluntariedade em processos que envolvem crimes - demarcados pelo Estado - deve se manter sempre debatível.
Dentre os círculos e métodos restaurativos, é comum a proposição de escutar os diferentes valores e intenções que povoam as presenças no encontro, buscando trazer à tona as diferenças e convergências do que se espera produzir no ambiente potencialmente restaurativo. Vemos com Salm e Leal (2012) que a aposta no conhecimento dos valores visa a possibilidade de Justiça calcada no que é comum das relações interpessoais (multiplicidade humana e valorativa) onde se propõe a restauração da responsabilidade, da liberdade e da harmonia que existem nos grupamentos sociais (Salm e Leal, 2012)[8].
Entre os aspectos mais convergentes com o campo da psicanálise que estruturam as práticas restaurativas está a aposta no ato da fala como possibilidade de transformação e possibilidade de restauração relacional. Atribui-se aos sujeitos envolvidos a importância em reconhecer, por meio da fala e da escuta, os seus próprios saberes e em narrar os acontecimentos por eles/as vividos, de modo a buscar não provocar hierarquizações entre esses saberes e vivências, e sim uma horizontalidade que permita a emergência do comum das diferenças, da possibilidade de coexistir ainda que diante de diferentes narrativas. Para tanto, uma conhecida ferramenta que preza pelo diálogo e pela coexistência das diferenças no campo da JR é a peça de fala. Configura-se enquanto um objeto, escolhido muitas vezes pelo/a facilitador/a mas também em muitos casos pelas próprias partes envolvidas, que seja significativo para representar o momento de fala de cada sujeito no círculo. Dessa forma, aquele/a que está com a peça, tem em seu poder o ato da fala, convidando aos demais presentes a escuta. Quando terminar, passa a peça para a próxima pessoa, e assim também, a possibilidade de fala. Novamente, a peça não produz a obrigatoriedade em falar, e sim a possibilidade, sendo um objeto que simboliza o caráter ritualístico do círculo e do ambiente restaurativo.
Ainda que se tenha como aposta a produção de um espaço horizontal de fala e escuta que deve ser cuidado e zelado pela equipe facilitadora, não é incomum o descumprimento dos combinados previamente estabelecidos pela existência da peça de fala, por exemplo. Abre-se aqui uma fissura na teoria presente da Justiça Restaurativa, que impõe ao lugar da equipe facilitadora a importância em se atentar para a condução ética do processo, que não deixe de levar em consideração, diante da espontaneidade das ocorrências que descumpram combinados coletivamente estabelecidos, a necessidade de se posicionar diante de situações que reproduzam violações ou atos agressivos através da fala. Novamente, temos diante de nós a necessidade de avaliar caso a caso, e de exercitar uma escuta que esteja em consonância com violações estruturalmente reproduzidas, como por exemplo o racismo, o machismo, ou a homofobia. Ressaltamos esse aspecto, pois ele nos coloca o desafio de que não é possível universalizar uma prática restaurativa, ter um manual a ser reproduzido totalmente. Cada caso terá a sua complexidade e territorialidade próprias, carecendo, portanto, de uma escuta ativa e criativa para a situação.
Reconhecemos o trabalho importante que algumas instituições fazem baseando-se na Justiça Restaurativa. As Escolas de Perdão e Reconciliação (ESPERE) também são historicamente reconhecidas como lugares que prezam pela prática comunitária de resolução de conflitos através da JR. Em São Paulo, temos o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo - CDHEP, uma entidade que há 40 anos produz formação e luta na região do Capão Redondo em São Paulo e que apostou nessa formação do que vem sendo chamado “cultura de paz”, uma série de propostas e narrativas sobre a violência e as formas intersubjetivas de se poder lidar com o trauma, o testemunho e o ato político do perdão.
Do que podemos destacar atualmente destas práticas é sua afirmação categórica da necessidade de superação das formas retributivas de se tratar um conflito. Ainda que possamos levantar dúvidas a respeito de sua eficácia em transformar relações sociais estruturalmente injustas, é possível reconhecer facilmente seu caráter progressista, humanitário, defensora dos direitos humanos e até mesmo abolicionistas. O ato de restituir as discussões e resoluções de um conflito àqueles diretamente envolvidos nele não deixa de ser algo notável. A horizontalidade como método, o deslocamento subjetivo da estigmatização pela culpa, a ideal abertura para formas colaborativas de reparação e o repartimento das responsabilidades da vida coletiva são todas.
Contudo, escrevemos este artigo justamente porque ainda não estamos totalmente satisfeitos com este campo. Como demonstrado na análise que fizemos sobre a justiça tradicional, acreditamos que ela é um projeto falido e que sua lógica tende a corromper outras boas práticas a ela associadas. Um de nossos incômodos é a aliança das práticas restaurativas com o sistema juspositivista, aqui, a JR aparece, em muitos casos, como uma solução para fazer “andar a longa fila de processos” ou um recurso indicado para “casos leves” (Benedetti, 2009). Nesta lógica, disputas entre vizinhos, briga de famílias, pequenas ofensas seriam endereçadas pelo sistema de justiça tradicional aos facilitadores de Justiça Restaurativa, enquanto casos de violência e injúrias maiores devem ter a resolução mais eficiente, a punição. Esta conformação apenas reforça a lógica punitivista que queremos ver ruir.
Ademais, o campo das práticas restaurativas e das formas alternativas de justiça se beneficiaria de uma maior produção de conhecimento sobre estas práticas. Há sempre que se fazer a ressalva de que o meio acadêmico é, muitas vezes, opressor e colonizador, contudo, é um espaço a ser ocupado por discursos outros já que ele permite a formalização do conhecimento e teorização sobre aspectos fundamentais de uma disciplina. Considerando que a intenção de lutar por justiça social não nos torna imunes às diversas contradições e violências veladas que existir em um sistema capitalista e colonizador de mentes impõe, a apreciação crítica e teórica é uma possibilidade de se resguardar minimamente destes impactos negativos. É um início deste esforço que faremos a seguir.
O ADOECIMENTO PSÍQUICO NAS EXPERIÊNCIAS DE INJUSTIÇA
Em nossa prática clínica, atendendo pessoas vítimas de violências políticas, podemos ver como injustiças estruturais de nossa sociedade podem afetar a subjetividade de um indivíduo. Fica evidente em nossa atuação, bem como em estudos já apontados (Rosa, 2016), a relação crônica estabelecida entre injustiça social e adoecimento psíquico intensificado, seja na mãe que perdeu seu filho assassinado pela polícia militar e assistiu o Estado validar aquele ato como legal, seja no sujeito militante que vê o fruto de muitos anos de trabalho ser destruído por um governo reacionário, entre muitas outras situações.
Dentre os sofrimentos decorrentes de injustiças sociais que encontramos na prática clínica, constatamos o frequente efeito de naturalização de violências, dinâmica na qual as instituições públicas ou privadas com as quais o sujeito se relaciona têm um papel fundamental. Estas instituições, muitas vezes, constituem um braço não-armado da violência política. Não é incomum escutarmos de mães que perderam seus filhos para uma ação policial o fato de estarem sendo medicadas com antidepressivos sem um acompanhamento psicológico ou terapêutico necessário. Ou ainda, quando o sintoma aparece ainda mais deslocado de sua origem, como uma hipertensão, essa mãe pode ser tratada por um médico clínico geral ou um cardiologista, sem qualquer correlação com a experiência de perda que teve. A mesma negligência não deixa de ocorrer através de uma instituição escolar, dessa vez com o irmão de um menino preso de modo forjado, que está enfrentando dificuldades nas aulas e sofre consequências em seu ano escolar sem maiores acompanhamentos por parte de profissionais da escola.
Além desses exemplos reunirem o lugar de familiares de pessoas afetadas pela violência policial, por exemplo, é necessário acrescentar a particularidade de que essas pessoas geralmente são negras, moradoras de bairros periféricos. Nestes casos, os sintomas da violência que sofreram são tomados de forma isolada como aquilo que deve ser, de alguma forma, tratado, modificado, adaptado. Estes sintomas, roubados de sua história, tanto de sua ontogênese (Dunker, 2005) quanto da sua, como nos mostra Fanon, sociogênese (Faustino, 2018), são o alvo de ações por parte de instituições e profissionais que muitas vezes acreditam estar fazendo o melhor para aquela pessoa enquanto que, na verdade, a alienam ainda mais em seu sofrimento, desviando o foco de sua origem.
Esses casos não são isolados, mas são exemplos da naturalização de um sofrimento psíquico impulsionado pelas lógicas da sociabilidade capitalista, que através de discursos e práticas estruturalmente calcadas no racismo, sexismo, cisheterossexismo, adultocentrismo, classismo, capacitismo, dentre outras formas de opressão hierarquizantes, reproduz a lógica binária de sujeitos marcados para sofrer (e consequentemente morrer) e sujeitos cujos direitos devem ser respeitados e garantidos. Ou o que Frantz Fanon (2020), ao analisar as relações do colonialismo entre sujeitos colonizados e sujeitos colonizadores, acertadamente nomeou de zona do ser e zona do não-ser.
Neste sentido, as hierarquizações raciais, de gênero, de classe, de sexualidade herdadas do sistema colonial escravocrata são reproduzidas estruturalmente, micro e macro politicamente através de nossas instituições e relações sociais. O sistema de Justiça vigente não foge a regra e tem em sua sustentação a violência contra os corpos mais marginalizados por essas hierarquias como norma para a perpetuação de um Direito que tem como principal foco a defesa da propriedade privada e dos sujeitos dela herdeiros e beneficiários. A violência política, fonte de sofrimento e adoecimento, surge em sua forma jurídica através de um processo que costuma ignorar a dimensão simbólica da vida (no seu âmbito moral, comunitário, estético), prestando-se apenas a analisar danos materiais. A servitude do sistema de justiça ao capital e à propriedade privada fica evidente quando vemos que nos processos tudo deve ser transmutado e computado em termos de danos materiais, tal fenômeno foi muito bem documentado no caso da construção da barragem de Belo Monte em Altamira, onde os ribeirinhos eram indenizados pelo governo e pela construtura de acordo com os bens materiais que perderiam, como sua casa, determinado número de pés de limão e manga, mas, até a formação de um conselho ribeirinho que conseguiu lutar coletivamente, não se levava em conta que aquela construção e modificação do ambiente iria destruir um modo de vida, expulsando definitivamente do rio pessoas que cresceram e viveram nele (sobre isto, ver Magalhães e Cunha, 2017, Katz e Dunker, 2019 e Obliziner, 2018).
Em outra ocasião (Vaz e Obliziner, 2019), fomos capazes de traçar um percurso semelhante na luta pela reparação quanto às violações de direitos exercidas pela ditadura militar brasileira, o recurso à indenização material foi uma das primeiras vitórias jurídicas conseguidas por pessoas que foram perseguidas, presas, torturadas ou tiveram familiares desaparecidos. Apenas com o avanço das indenizações financeiras é que se encontrou uma brecha para um reconhecimento destas violações por parte do Estado e, mais adiante, o reconhecimento de que também haviam danos não materiais que mereciam atenção, ocorrendo, neste ponto, a criação do projeto Clínicas do Testemunho[9] para promover a reparação psíquica e promoção de memória.
A psicanálise, assim como outras teorias clínicas, nos fornece ferramentas para pensar também esta dimensão para além do material que resulta em sofrimento, em desamparo e em traumas. Freud em O mal-estar na civilização (2010) localiza que o sofrimento pode vir de três fontes: da fragilidade de nosso próprio corpo; da ameaça do mundo externo e da natureza; da insatisfação que temos em nos relacionar com os outros à nossa volta. Se todo sofrimento tem uma dessas origens, nem tudo que acomete uma pessoa é necessariamente causa experiências de sofrimento, desamparo e se torna uma experiência traumática. Podemos pensar que há pessoas que passam por situações extremas, como ser vítima de um assalto a mão armada ou de um desastre natural, e continuam a viver bem sem grandes consequências. O que define se uma experiência será traumática é como ela se liga com experiências passadas daquela pessoa, muitas vezes inconscientes, é o que chamamos de ontogênese do adoecimento psíquico que Freud localiza. A isto, adicionamos as reflexões necessárias de Fanon (2020) sobre a sociogênese, ou seja, um determinado ato, como uma cena de racismo, pode ser traumático porque a sociedade criou bases econômicas e políticas para a reprodução e manutenção desta violência simbólica. Com isto, a dimensão material e a dimensão simbólica voltam a se reencontrar.
Sendo assim, já estabelecemos que, após uma situação de injustiça, os danos a serem reparados e cuidados podem ser de muitas ordens, mas resta saber o que produziria uma experiência de justiça. Neste âmbito, Denise Ferreira da Silva discute a impossibilidade da justiça, uma vez que esta, para o Hegel de Filosofia do Direito, encontra-se no campo da Necessidade, um domínio marcado pelos atravessamentos econômicos e da lei (moral). Considerando isto, ela aponta:
talvez seja difícil contemplar a possibilidade de abordar a justiça a partir de seus limites - ou seja, os elos econômicos e jurídicos presumidos pela própria - porque nem aos teóricos do social, nem aos teóricos da lei ou da moralidade tenha interessado situar o sujeito econômico, legal ou moral (Ferreira da Silva, 2019).
A autora, nesta citação, exige que pensemos o sujeito para o qual estamos pensando a justiça considerando as relações econômicas e morais, que levam em conta muitas das discussões sobre colonialismo, capitalismo e patriarcado que estamos fazendo. A estas categorias (econômico, legal e moral), teríamos que adicionar a necessidade de pensar a constituição subjetiva deste sujeito, como ele constrói ideais morais, como ele faz demandas de amor (e de justiça), como ele vivencia experiências de injustiça como sofrimento e como estas podem ou não levar à luta e a revolta[10] .
Pensamos que aqui a clínica pode ter um papel importante não só como uma forma de tratamento do sofrimento psíquico, mas também (ou, somente devido a isto), como via de desalienação do sujeito perante as opressões sociais, permitindo que este busque outras formas de existência em sua esfera pública e privada, repensando a sua forma ética de viver neste mundo. Contudo, as experiências que relatamos no começo deste subcapítulo mostram uma proximidade muito grande entre saúde mental e justiça. A mãe que perde seu filho e tem sua perda deslegitimada pode se beneficiar, sim, do acompanhamento de profissionais de saúde mental, mas ela também se beneficiaria de práticas efetivas de justiça que conseguissem reconhecer e endereçar a violência que ela sofreu.
É isto o que já pensamos anteriormente no artigo Justiça como saúde (Barão, 2018), é fato que hoje a práxis da justiça e a práxis da saúde parecem muito distantes umas das outras, no entanto, ambas lidam com conflitos tanto de ordem intrapsíquica quanto de ordem social e política. As práticas de saúde e as práticas de justiça podem se configurar como modos de enfrentamento da violência e de luta pela justiça social. Uma prática alternativa de justiça deve, sem sua melhor forma, tal qual deve ser a psicanálise quando leva em conta sua proposta radical, ser um ato revolucionário. Isto envolve a produção de vínculos e de um comum (Federici, 2019) como forma de combater o modo de vida individualizante e privatizado da sociedade capitalista, a produção de memória coletiva (Turriani, 2015) como resistência ao esquecimento e manipulação histórica e a modificação das estruturas político-econômicas da sociedade.
UM OLHAR PARA O QUE ESTÁ ADIANTE: AS MATRIZES NÃO-OCIDENTAIS DE PENSAMENTO
Gostaríamos, como último item deste texto, conjecturar um possível campo de avanço. Esta é uma ramificação incipiente da nossa pesquisa que surge da identificação de um déficit de aprofundamento, por parte da Justiça Restaurativa, sobre um campo que ela aponta como uma de suas origens e inspirações: as formas de vida e de resolução de conflitos de povos ameríndios e outras populações que resistem à predação e ao colonialismo pelas formas sociais capitalistas ocidentais. Apesar das figuras proeminentes deste campo de estudo apontarem inspirações nestes povos (Kay Pranis, 2010; Howard Zehr, 2008 e outros), estas influências, em muitos casos, não são tomadas em sentido radical, resvalando em seus usos tópico ou ainda instrumental. Assim sendo, se temos como objetivo transformar práticas hegemônicas da sociabilidade capitalista, o estudo de outros perspectivismos se mostra um terreno fértil para esta pesquisa, apontando caminhos com ganhos claros, baseados em práticas comunitárias, que resistem à re-atualização de um Estado que visa sempre garantir as formas do capital e sendo, inclusive, estudos capazes de ampliar e complexificar uma teoria de sujeito que já encontramos na psicanálise, encontro este já produzido anteriormente (Dunker, 2015).
Desde nossa vivência em um mundo capitalista, cada vez mais marcado por experiências naturalizadas e cronificadas de injustiça, vemos que estas envolvem não apenas danos provocados aos próprios seres humanos, como não menos que isso, efeitos mortíferos ao que chamamos como ocidentais de “natureza”, algo que muito bem pode ser a cultura de outros povos e seres (Viveiros de Castro, 2002). Muitos há tempos já apontam (Krenak, 2019; Acosta, 2016 e Kopenawa, 2015) da importância em escutar o que dizem populações indígenas que já resistem há muitos séculos aos efeitos danosos da modernidade, e que também já encontram nesta resistência formas em que a vida humana não cause o desequilíbrio que o modelo capitalista tem causado ao planeta. Esta possibilidade de pensar novas formas de existir, ainda mais em teorizações que falam sobre o encontro com o diferente, parecem extremamente ricas para este campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tivemos, como objetivo deste artigo, apresentar as elaborações que pudemos fazer sobre práticas de justiça que consigam fazer frente à forma dominante e ineficiente de pensar a justiça de modo despessualizado, através de ações punitivistas e submetidas ao controle do Estado capitalista que vivemos. Conseguimos, no que foi apresentado acima, demonstrar o que consideramos ser uma crítica sólida à forma tradicional de justiça e que demonstra a sua falência e que o caminho mais proveitoso é pensar uma forma outra de justiça que seja radical, revolucionária, ao invés de lutar pela reforma ou a inserção no sistema atual, ainda que tenhamos que dialogar e lidar com ele, sempre tendo em vista as contradições que isto impõe.
Vimos também que a Justiça Restaurativa, a forma alternativa de justiça mais difundida atualmente, traz considerações e diretrizes que são ricas para o início de uma construção outra de justiça, mas que ela, na forma como é praticada mais comumente, ainda é ineficaz em se apresentar como uma verdadeira cisão da justiça punitivista. Isto ocorre, em nossa visão, tanto por dificuldades práticas de aplicação (se inserir como uma real possibilidade para processos criminais, ser inteligível para o público comum, etc), mas também pela falta de uma teorização mais aprofundada sobre a sociedade, o Estado capitalista e sobre o sujeito.
Buscamos criar novas vias para a prática de justiça que sejam socialmente transformadoras, fazendo uso de uma junção de algumas boas diretrizes que a Justiça Restaurativa já possui, aliadas a uma crítica social de cunho materialista histórico, de autores e autoras decoloniais, feministas, anti-racistas, de matrizes de pensamento não-ocidentais e da experiência profissional como trabalhadores/as de saúde mental que procuram fazer ações de reparação psíquica e enfrentamento à violência política.
Tal jornada ainda está longe de ser concluída, sendo que esta pesquisa ainda está em fase de estruturação de seus alicerces e não chegou a uma experimentação mais propriamente dita de ações práticas de intervenção, o que, certamente, configurará um enorme desafio.
REFERÊNCIAS
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Revista Desenvolvimento Social, vol. 26, n. 2, jul/dez, 2020
PPGDS/Unimontes-MG
[1] É psicólogo e psicanalista, mestre em psicologia do desenvolvimento pelo Instituto de Psicologia da USP e membro do coletivo Margens Clínicas. Contato: baraovfv@gmail.com. ORCID: 0000-0001-6175-0372.
[2] É psicólogo e psicanalista, mestre em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP e pesquisador do laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP). É membro do coletivo Margens Clínicas. Contato: pedro.obliziner@gmail.com. ORCID: 0000-0002-1096-2225.
[3] É psicóloga, graduada pela Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde- PUC/SP e membro do coletivo Margens Clínicas. Contato: nitivaz@gmail.com ORCID: 0000-0001-5132-9170.
[4] Acessar o Atlas da Violência 2020 em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/08/atlas-da-violencia-2020-infografico.pdf
[5] Doravante chamada de JR.
[6] https://www.youtube.com/watch?v=mncaIit_nuM&ab_channel=NexoJornal acesso em 20/11/2020
[7] Do reconhecimento desta relação surge a anedota do filho do banqueiro que, ao notar o pleno domínio econômico de sua família das condições materiais do povo, almeja sua contraface política, não sem antes ser aconselhado pelo pai: “Meu filho, não se vá meter com o trabalho dos nossos empregados”.
[8] disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-70552012000100009. Acesso em 20/11/2020
[9] projeto vinculado à Comissão da Anistia, atrelada ao Ministério da Justiça
[10] Sobre este último tópico, consultar Luta por reconhecimento de Honneth, 2004.