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RODA TERAPÊUTICA DAS PRETAS: UMA PROPOSTA DE ESCUTA CLÍNICO-ÉTICO-POLÍTICA PARA MULHERES NEGRAS PERIFÉRICAS[1]

Ana Carolina Barros Silva[2]

Recebido em: 12/11/2020

Aprovado em: 22/12/2020

Resumo: A Roda Terapêutica das Pretas, desde a sua fundação, no ano de 2016, carrega em sua existência e resistência uma denúncia: o adoecimento psíquico do povo negro, pobre e periférico é um projeto político. Escolhemos escutar, cuidar e acolher mulheres negras moradoras de bairros periféricos da cidade de São Paulo como um posicionamento clínico, ético e político. O mesmo posicionamento perpassa também as decisões acerca da composição do nosso corpo clínico: somos psicólogas negras implicadas na luta antirracista que compreendem o afeto, o cuidado e a atenção à saúde mental como questões políticas, pautas de luta e militância diária, além de ferramentas de produção de novos horizontes possíveis para o nosso povo. Nesse sentido, a Roda Terapêutica das Pretas acredita que para construir outros sentidos e lógicas de dinâmicas sociais, precisamos estar, ao mesmo tempo, comprometidas com a clínica, bem como com a luta política por transformação social e igualdade radical.

Palavras-chave: Clínica. Política. Racismo. Adoecimento. Saúde Mental. População Negra.

THERAPEUTIC CIRCLE OF BLACK WOMANS: A PROPOSAL FOR CLINICAL-ETHICAL-POLITICAL LISTENING FOR PERIPHERAL BLACK WOMAN

Abstract: Since its foundation in 2016, the Therapeutic Circle of the Black Womans has carried in its existence and resistance a denunciation: the psychic illness of the black, poor and peripheral people is a political project. We chose to listen to, care for and welcome black women living in peripheral neighborhoods of the city of São Paulo as a clinical, ethical and political position. The same positioning also permeates the decisions about the composition of our clinical body: we are black psychologists involved in the antirracist struggle who understand affection, care, and attention to mental health as political issues, agendas of struggle and daily militancy, as well as tools to produce new possible horizons for our people. In this sense, the Therapeutic Circle of the Black Womans believes that to build other senses and logics of social dynamics, we need to be, at the same time, committed to the clinic, as well as to the political struggle for social transformation and radical equality.

Keywords: Clinical. Politics. Racism. Illness. Mental Health. Black Population.

RUEDA TERAPÉUTICA DE LAS NEGRAS: UNA PROPUESTA DE ESCUCHA CLÍNICO-ÉTICA-POLÍTICA PARA LAS MUJERES NEGRAS DE LA PERIFERIA

Resumen: Desde su fundación en 2016, la Rueda Terapéutica de los Negras ha llevado en su existencia y resistencia una denuncia: la enfermedad psíquica de los negros, pobres y periféricos es un proyecto político. Elegimos escuchar, cuidar y acoger a las mujeres negras que viven en los barrios periféricos de la ciudad de São Paulo como una posición clínica, ética y política. El mismo posicionamiento también impregna las decisiones sobre la composición de nuestro cuerpo clínico: somos psicólogos negros involucrados en la lucha antirracista que entienden el afecto, el cuidado y la atención a la salud mental como cuestiones políticas, agendas de lucha y militancia diaria, así como herramientas para producir nuevos horizontes posibles para nuestro pueblo. En este sentido, la Rueda Terapéutica de las Negras cree que para construir otros sentidos y lógicas de la dinámica social, necesitamos estar, al mismo tiempo, comprometidos con la clínica, así como con la lucha política por la transformación social y la igualdad radical.

Palabras-clave: Clínica. Política. Racismo. Adoecimiento. Salud mental. Población negra.

Nos abraçamos como se laços ancestrais nos unissem. Nos reconhecemos sem nos conhecer. Sabíamos, antes de saber, o exato motivo que havia nos levado até ali. Naquele dia nossos desejos estavam alinhados. Sabíamos para onde a nossa bússola iria apontar. Queríamos algo dentro da nossa profissão que não nos ensinaram a fazer na graduação, como discutir questões sociais de forma responsável e política, como raça, classes sociais e gênero e todos os entraves destas construções referente ao acesso à esta ciência, como o adoecimento resultante destas condições sociais e formas de pensar a diminuição desta desigualdade posta. Queríamos algo que a sociedade nos ensinou que era errado. Movidas única e exclusivamente pelo nosso desejo e nossa convicção política, queríamos criar um dispositivo de atendimento terapêutico ousado, novo e que pudesse estar sempre em movimento e em ação. Nos parecia extremamente urgente, pertinente e necessário. Queríamos, enquanto psicólogas pretas, cuidar, em grupo, de outras mulheres pretas, que estivessem em estado de adoecimento psíquico. Naquele momento era o que sabíamos. A certeza era aquela do nosso desejo. E foi através desse desejo que construímos o que hoje chamamos de Roda Terapêutica das Pretas.[3]

A Roda Terapêutica das Pretas, desde a sua fundação, no ano de 2016, carrega em sua existência e resistência uma denúncia: o adoecimento psíquico do povo negro, pobre e periférico é um projeto político. Escolhemos escutar, cuidar e acolher mulheres negras moradoras de bairros periféricos da cidade de São Paulo como um posicionamento clínico, ético e político.

O mesmo posicionamento perpassa também as decisões acerca da composição do nosso corpo clínico: somos psicólogas negras implicadas na luta antirracista que compreendem o afeto, o cuidado e a atenção à saúde mental como questões políticas, pautas de luta e militância diária, além de ferramentas de produção de novos horizontes possíveis para o nosso povo. Nesse sentido, a Roda Terapêutica das Pretas acredita que para construir outros sentidos e lógicas de dinâmicas sociais, precisamos estar, ao mesmo tempo, comprometidas com a clínica, bem como com a luta política por transformação social. Nessa perspectiva, temos que a dimensão política da clínica ganha tons estruturantes para a mesma.

O corpo clínico da Roda Terapêutica Das Pretas presta atendimento psicológico em grupo para mulheres negras residentes em territórios periféricos. Fruto de mais uma decisão política, os atendimentos são realizados na periferia e não no centro da cidade. Esse aspecto territorial, bem como as dimensões raciais, de gênero e de classe constituem marcadores importantes para nossa escuta clínica e para a forma como compreendemos o sofrimento psíquico: não como algo que se desdobra de uma dinâmica exclusivamente intrapsíquica (como muitas leituras psicologizantes podem nos levar a pensar), mas sim como algo produzido em uma dobra entre os campos sociais e subjetivos, de maneira interdependente e constitutivas entre si.

Cabe ressaltar que nossa escolha pelo atendimento grupal também não se deu de forma aleatória, mas sim com os mesmos atravessamentos sócio-políticos. Diante de uma sociedade que é estruturalmente organizada de forma a segregar territorial, racial e economicamente, espaços que promovam a possibilidade de nos vermos, nos reconhecermos e nos escutarmos se transformam em possibilidades com imensas potências terapêuticas. Pois, nesses espaços, é comum presenciarmos um rápido esfacelamento de sentimentos como, por exemplo, de solidão, culpa, inferiorização e baixa auto-estima, muito frequentemente experienciados pelas pessoas negras historicamente oprimidas e marginalizadas por um país de histórico colonial e escravocrata.

Dando consequência para essa perspectiva, consideramos também que centralizar a dimensão relativa ao auto-cuidado (ou auto-amor) – para as profissionais negras que atendem e as pacientes negras que são atendidas – tem um carácter primordial para o processo psicoterapêutico, para além de se constituir como forma de produção de luta política.

No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros. (HOOKS, 2006 p. 250)

Para Hooks (2001), com quem nos alinhamos, a luta por uma total emancipação, uma sociedade libertária, radicalmente igual e justa, anticapitalista e anti-colonial, só é possível se passarmos a compreender o amor como forma de revolução. Mais do que isso, para a autora o amor é um projeto político. O amor, ainda segundo Hooks (2001), tem relação com uma lógica de anti-dominação, com deslocamentos éticos necessários para o bem-viver em comunidade.

Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou de outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo, racismo, classismo. [...] Muitas vezes, então, o anseio não é para uma transformação coletiva de sociedade, para um fim da política de dominações; mas simplesmente para o fim do que sentimos que nos machuca. É por isso que precisamos desesperadamente de uma ética do amor para intervir em nosso desejo autocentrado por mudança. (HOOKS, 2006, p. 243)

Para a Roda Terapêutica das Pretas a ética do amor proposta por hooks (2006) vai ao encontro dos nossos pressupostos de atuação clínica responsável, principalmente quando apostamos que não há, em última instância, uma clínica possível sem uma ética radical da escuta (Silva, 2019), ou seja, sem que seja possível promover, dentro do percurso terapêutico, a possibilidade de garantir um lugar de fala e de escuta, ou ainda, um lugar de existência.

Quando trazemos a ideia básica e fundadora de escuta clínica, estamos objetivando resgatar o seu princípio original, aparentemente deturpado ao longo das últimas décadas nas práticas psicológicas. Escutar como forma de, retroativamente, produzir um lugar desde onde se possa falar, ser e sentir.

Um lugar de existir que, em uma dinâmica político-econômica geradora de privilegiados e detentores do poder, é reiteradamente ameaçado de aniquilamento, silenciamento, esvaziamento, extinção.

Uma existência que, por meio de uma escuta (levada às últimas consequências), pode ser sublinhada, marcada, contornada, legitimada, reconhecida. Uma escuta que, assim, pode ser promotora de deslocamentos subjetivos importantes, como, por exemplo, o que aproxima uma pessoa de si mesma, de suas próprias potências e desejos. Proporcionar espaços de fala/escuta onde esses deslocamentos sejam possíveis ao longo de um processo psicoterapêutico grupal é o principal objetivo ético, clínico e político da Roda.

Tomando como um direcionador clínico a ética radical da escuta (Silva, 2019), a Roda Terapêutica das Pretas opta por uma não-hegemonia de abordagem teórico-clínica. E esse é outro posicionamento que podemos também denominar de político. Acreditamos que oferecer um espaço de escuta que promova deslocamentos subjetivos importantes é uma responsabilidade ética de qualquer profissional, de qualquer abordagem clínica que se comprometa de forma responsável com a saúde mental daquele grupo de pessoas atendidas. Seja uma psicanalista, seja uma esquizoanalista, seja uma psicóloga humanista, para ser integrante do corpo clínico da Roda Terapêutica Das Pretas é preciso estar profundamente comprometida com os princípios políticos que formam nosso arcabouço de posicionamentos. É por esse lugar ético-político que nos alinhamos enquanto grupo de psicólogas que atuam atendendo mulheres negras na periferia.

Isso não significa dizer que relegamos as abordagens teórico-clínicas uma dimensão secundarizada no nosso fazer. Ao contrário, elas são nosso ferramental, o enquadre da nossa escuta, a técnica utilizada no acompanhamento dos processos grupais vivenciados. E, por isso, todas as psicoterapeutas da Roda precisam estar atentas a alguns pilares que entendemos como “compromissos éticos” enquanto integrantes desse coletivo. São eles: A formação e estudo teórico constante, a supervisão/intervisão dos casos atendidos e a análise/psicoterapia individual.

A nossa metodologia de trabalho, porém, foi se uniformizando. E foi sendo construída, com o passar do tempo, coletivamente, com constantes avaliações, ponderações e aprofundamento dos manejos a partir das situações concretas vividas clinicamente. A Roda atua hoje em regiões periféricas da zona oeste, leste, norte e sul da cidade de São Paula e também em alguns de seus arredores (Osasco, por exemplo). Em todas essas regiões, os grupos psicoterapêuticos funcionam segundo uma mesma metodologia que se propõe respeitar alguns pontos, quais sejam: os grupos possuem até 12 participantes (que residem na mesma região em que são atendidas), são conduzidos por duas psicoterapeutas (que, de preferência, residam na mesma região que atendem), em locais preferencialmente públicos (disponibilizados por meio de parcerias firmadas ao longo do tempo). Esses grupos psicoterapêuticos funcionam em ciclos, que possuem começo, meio e fim. Geralmente, em um ano, são realizados de 1 a 2 ciclos de atendimentos. De forma que existe um período específico de divulgação de vagas e inscrições e, após esse momento, os cadastros são encerrados.

Cada dupla de psicoterapeuta possui supervisora que acompanha todo o processo conjuntamente. Tanto supervisoras quanto psicoterapeutas estão cuidadas e olhadas por uma coordenação clínica que promove todos os diálogos e trocas necessárias.

O que nos leva a contar também um pouco sobre nosso funcionamento interno: a Roda está organizada por uma espécie de “núcleos temáticos” que chamamos de coordenações. Essa foi a maneira encontrada de compartilhar as inúmeras tarefas que o projeto demanda. Dessa forma, temos pessoas responsáveis pelo setor de secretaria, financeiro, articulação política, produção acadêmica, formação, eventos, clínica, comunicação e mídias, entre outros.

Todas as psicoterapeutas da Roda atuam de forma voluntária e os fomentos já recebidos por meio de editais de incentivo, ao longo desses anos, foram destinados à estruturação das condições básicas para oferecimento dos atendimentos. É importante marcar que o orçamento existente pela via dos editais de fomento são essenciais para a manutenção do projeto, justamente porque trabalhamos com um grupo populacional muito específico que, por razões históricas e estruturais, raramente possuem condições mínimas de, por exemplo: chegar até o local do atendimento ou contar com um lanche.  

Sermos psicólogas negras e atendermos mulheres negras na periferia, muitas vezes, pode demandar manejos que estão para além dos enquadres tradicionais/ocidentais. Entendemos que, muitas vezes, tais enquadres sequer foram pensados a partir dessas vivências ou para essas pessoas. E, por esse motivo, nos vemos, em diversos momentos, face à necessidade de reinventar modos de fazer que façam mais sentido e sejam mais pertinentes para nós e para as pessoas que estamos atendendo. Pensar nesses termos, nos leva a um questionamento importante e polêmico: pessoas negras só podem ser escutadas por pessoas negras? Para a Roda Terapêutica das Pretas essa resposta não é tão simples e, para chegarmos em algumas considerações, precisamos levantar pontos importantes.

O primeiro deles é que vivemos em uma sociedade estruturalmente racista, de maneira que o racismo é um elemento constituinte do nosso modo de funcionar, organizar, ver e nos relacionar. Ninguém está ileso, infelizmente. Por isso, acreditamos na importância de um comprometimento de fato (e não apenas nos discursos) com a luta antirracista, em especial quando falamos de profissionais que pretendem acolher e escutar pessoas negras em processo de adoecimento psíquico.

Compreendemos e legitimamos a demanda de pessoas negras por um acompanhamento psicológico feito por profissionais negros. Para nós, parece uma maneira (ainda assim, infelizmente, não garantida) de tentar evitar maiores danos, sofrimentos e violências. Esse movimento que podemos chamar de aquilombamento é uma forma de produzir barreiras protetivas diante de histórias de vida muito marcadas por agressões, deslegitimações, não-reconhecimento, objetificações, desumanizações, não-raro perpetradas por pessoas brancas.

Enxergar em uma profissional negra alguém que poderá escutar, cuidar e acolher, para nós, é um movimento cada vez mais adotado pela população negra na busca por atendimento psicológico, principalmente, devido ao histórico de experiências malsucedidas com profissionais não-negros.

Mesmo assim, entendemos a complexidade do contexto e o quanto ele pode ser contraditório. Sabemos que nem todos os profissionais negros garantirão a escuta procurada. Assim como sabemos também que nem todos os profissionais brancos serão autores de atos racistas dentro de um setting psicoterapêutico.

Face a este cenário, podemos afirmar que, para nós, o lugar de profissionais não negros precisa ser o de comprometimento na discussão constante acerca do racismo e de seus desdobramentos subjetivos para as pessoas negras. Principalmente porque, se olharmos a formação em psicologia que temos no Brasil, iremos perceber que pouquíssimas realmente preparam o egresso para a compreensão mínima de questões étnico-raciais e suas implicações psíquicas.

Devido ao período de governos progressistas que vivemos no Brasil, a entrada de pessoas negras, pobres e periféricas no ensino superior aumentou - dada uma série de políticas afirmativas implantadas. Porém, sabemos que ainda estamos muito distantes do que seria o cenário ideal.

Mesmo com esses avanços, ainda temos uma estrutura universitária (em especial pública) bastante embranquecida e burguesa. Nos cursos de psicologia, não é nada diferente. Por isso, o que temos é uma massa de profissionais da psicologia constituída majoritariamente de pessoas não negras e de condições financeiras razoáveis. Pessoas essas que, comumente, saem da graduação sem nunca terem passado por uma aula sobre racismo. Sem nunca terem tido um/a professor/a negro/a. Sem nunca terem parado para pensar acerca das implicações psicológicas de viverem em um país estruturado pelo racismo, que escravizou pessoas negras por séculos.

É bastante comum que esses profissionais saiam da faculdade com visões bastante estreitas sobre questões sociais e políticas, o que faz com que dentro de seus consultórios (em geral localizado nos bairros centrais e ricos da cidade), possam cobrar verdadeiras fortunas por uma sessão de psicoterapia, atendendo pessoas do mesmo círculo social (não negras e pertencentes a elite) e, assim, apenas promovendo a manutenção das segregações, do abismo socioeconômico, das desigualdades de acesso e da invisibilização de imensos problemas, onde o racismo figura em apenas uma parte da lista.

Esse cenário nos leva para uma outra dimensão muito importante acerca da Roda Terapêutica Das Pretas: a formação de laços e redes entre as próprias profissionais. Entendemos que fazer parte da Roda também é um processo de ressignificação para quem atua profissionalmente no projeto. Ser parte da Roda demarca, também para nós, esse lugar de quem estudou, se formou, se qualificou e pode escutar e sustentar uma clínica, com ética e responsabilidade.

Pode parecer óbvio, mas não é. Garantir esse lugar, mesmo depois de graduadas, é um processo que, muitas vezes, está permeado de dores, sentimentos de inferioridade, exclusões, sentimento de incapacidade, medos e inseguranças. Estarmos juntas, nesse sentido, também é uma forma de nos potencializarmos, nos reconhecermos, costurarmos uma rede profissional e de afeto.

Pelos mesmos motivos estruturais e históricos já discutidos anteriormente, profissionais negras da psicologia vivenciam, cotidianamente, uma série de agressões, silenciamentos, falta de oportunidades, menor remuneração e precarizações no seu trabalho. Frequentemente somos convocadas, por exemplo, a trabalhar de forma voluntária, mas, poucas vezes o mesmo convite é feito para sermos remuneradas pelo nosso trabalho.

Vamos percebendo que o lugar do “trabalho gratuito” e da manutenção de uma “lógica da servidão” atravessa, ainda hoje, o fazer profissional de pessoas pretas e, com o nosso trabalho, não é diferente. Por isso, juntas, elaboramos estratégias para fazer frente a esse tipo de demanda, com vistas a cuidar também da nossa saúde mental.

Nos atentamos, por exemplo, ao fato de que no meio acadêmico, tanto nas graduações quanto nas pós-graduações, passamos por uma série de desafios colocados pela própria estruturação, muitas vezes racista e colonial, da universidade como a conhecemos tradicionalmente, da própria forma como esses espaços compreendem a produção de conhecimento e saberes, devido a própria dinâmica de relações de poder, de rivalidades, de exclusões que sustentam essas instituições.

Reconhecemos, ao mesmo tempo, a importância de ocuparmos cada vez mais esses espaços, da mesma maneira que também não desejamos que essas sejam experiências traumáticas e de sofrimento (como são na maior parte dos casos, infelizmente, ainda). Apostamos em uma transformação social que inclua as mudanças estruturais e radicais que instituições como a universidade precisam. E sabemos que esses enfrentamentos são parte da luta antirracista com a qual a Roda Terapêutica Das Pretas está profundamente comprometida, tendo chegado, inclusive, a promover espaços e grupos psicoterapêuticos dentro de universidades para acadêmicas negras.

E, assim, voltamos à constatação da urgente e necessária existência de um projeto como a Roda Terapêutica Das Pretas. Projeto que, só por existir, denuncia que há algo muito errado no funcionamento e na organização da nossa sociedade como um todo. Algo que exclui, segrega e adoece sistematicamente grupos que, não coincidentemente, apresentam as mesmas características: pretos, pobres e periféricos.

O adoecimento dessa população não é um simples acaso e essa discussão também é cara para nós. Assim como não nos parece aleatório o insistente ataque e desmonte do Sistema Único de Saúde. Esses são tentáculos da necropolítica, da política da morte: desinvestir o único acesso à saúde mental que a maior parte dessa população tem. O que significa isso? O que significa você retirar de alguém em situação de extrema vulnerabilidade o único acesso que essa pessoa teria para se manter viva frente a qualquer acometimento de ordem física ou mental?

O adoecimento psíquico também mata. Não só pode matar o corpo físico, como pode matar, lentamente, os sonhos. A possibilidade de apostar em outros futuros possíveis. O que é isso se não uma ótima manobra política? Uma pessoa adoecida mentalmente tem dificuldades de se enxergar como alguém potente, como autor da própria história, como ator social e político, como alguém capaz de mobilizar pessoas em prol de uma causa, como alguém capaz de lutar e resistir, por si mesmo e pelos seus. Uma população adoecida psiquicamente é muito mais manobrável e, por isso, pode interessar muito mais à quem está nos lugares de poder. Pessoas saudáveis, que podem curar e cicatrizar suas feridas, que podem cuidar de si e dos seus, podem se tornar ameaças para esse sistema de opressões.  

É por esse motivo que acreditamos que, quando há escuta e, por isso, possibilidade de deslocamentos, elaborações, ressignificações, há também margem para um processo que – assumindo as complexidades do termo – pode ser curativo de dores atuais e ancestrais. E, essas feridas que um dia sangraram, latejaram, deprimiram, apequenaram, podem ser propulsoras de um processo crítico, de apoderamento de si e da própria história.

Sabemos o quanto é comum, ao nos depararmos com o sofrimento advindo do racismo, da pobreza e das mais diversas opressões, lidarmos com cicatrizes profundas, sofrimentos enraizados, estilhaços de uma história quebrada ao longo do caminho de uma existência. Por isso mesmo, escolhemos apostar na potência da escuta, do cuidado, do acolhimento, do afeto que podem estancar as feridas, reunir e colar alguns dos estilhaços, promover novos sentidos e ressignificar traumas.

Para além disso, como no caso da Roda Terapêutica Das Pretas, esse processo pode resultar em um projeto que intervém concretamente e diariamente na realidade de inúmeras pessoas. Pode fazer ressonâncias a ponto de reunir um número cada vez maior de profissionais em torno de uma mesma proposta, de um mesmo horizonte e de um só ideal. A dor que é curada, cicatrizada, escutada para de repetir/reproduzir as mesmas feridas, gerações após gerações e pode vir a ganhar um lugar de imprimir marcas de diferença, como, por exemplo, na militância e na luta política por justiça social e igualdade radical, como é o nosso propósito último.

REFERÊNCIAS

HOOKS, bell. All about love: New visions. Harper Perennial, 2001.

______, bell. Salvation: Black people and love. Harper Perennial, 2001.

______, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243–250. 

SILVA, Ana Carolina Barros. Por uma utopia para as crianças africanas: a incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola. 2019. 249 f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Linguagem e Psicologia, Universidade de São Paulo / Université Paris VIII, São Paulo, 2019.

Revista Desenvolvimento Social, vol. 26, n. 2, jul/dez, 2020

PPGDS/Unimontes-MG       


[1] A autora deste artigo representa, na escrita do mesmo, o posicionamento do corpo clínico da Roda Terapêutica Das Pretas.

[2] Psicóloga, psicanalista, especialista em psicanálise com crianças pelo Instituto SEDES Sapientiae. Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e pela Université Paris VIII. Coordenadora-geral da Casa de Marias. Integrante da Roda Terapêutica das Pretas. E-mail: anacarolinabarrossilva@gmail.com 

[3] Trecho de carta destinada à Roda Terapêutica das Pretas, no ano de 2017, de autoria de Ana Carolina Barros Silva.