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CAPS II CAISMENTAL CENTRO: A CONSTRUÇÃO DE UM CAPS II NO PROCESSO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

Nilson Sibemberg[1]

Recebido em: 10/11/2020

Aprovado em: 22/12/2020

        

Resumo: Este texto propõe uma reflexão sobre as condições históricas da criação de um CAPS II, o CAPS Caismental Centro, de Porto Alegre nos primeiros anos da reforma psiquiátrica brasileira, na tensão entre as esferas do poder político, da administrativo e clínico. Aborda também os princípios fundantes que nortearam a estruturação de uma equipe interdisciplinar e a elaboração dos dispositivos institucionais e clínicos que viriam constituir o modo de funcionamento deste equipamento público de atenção psicossocial.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, CAPS, clínica, política, laço social.

CAPS II CAISMENTAL CENTRO: THE CONSTRUCTION OF A CAPS II IN THE PROCESS OF BRAZILIAN PSYCHIATRIC REFORM

Abstract: This text proposes a reflection on the historical conditions of the creation of a CAPS II, the CAPS Caismental Centro, in Porto Alegre, in the early years of the Brazilian psychiatric reform, in the tension between the spheres of political, administrative and clinical power. It also addresses the founding principles of structuring an interdisciplinary team and the development of institutional and clinical devices that would constitute the way of functioning of this public equipment for psychosocial care.  

Keywords: psychiatric reform, CAPS, politics, clinic, social bond.

CAPS II CAISMENTAL CENTRO: LA CONSTRUCCIÓN DE UN CAPS II EN EL PROCESO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEÑA

Resumen: Este texto propone una reflexión sobre las condiciones históricas de la creación de un CAPS II, el CAPS Caismental Centro, de Porto Alegre en los primeros años de la reforma psiquiátrica brasileña, en la tensión entre las esferas del poder político, administrativo y clínico. También aborda los principios fundacionales que orientaron la estructuración de un equipo interdisciplinario y la elaboración de los dispositivos institucionales y clínicos que constituirían la forma de funcionamiento de este equipamiento público de atención psicosocial.  

Palabras-clave: reforma psiquiátrica, CAPS, clínica, política, vínculo social.

INTRODUÇÃO

A reforma psiquiátrica brasileira, ao propor o fim do modelo manicomial de atenção à saúde mental e a restrição de leitos de internação em grandes hospitais psiquiátricos, proporcionou, no desvelamento   de vazios na assistência pública em saúde às pessoas em sofrimento psíquico, condições políticas e administrativas para que novos equipamentos de saúde mental no âmbito do SUS fossem criados. Nos primeiros tempos desse processo, que, como tal, segue em movimento, tais serviços foram nomeados como a rede substitutiva em saúde mental. Substitutiva à ordem psiquiátrica hospitalocêntrica construída na lógica da instituição total (Goffman, 1987) que vigorou de forma hegemônica no Brasil até a década de 80 do século XX.

Assim, ao longo dos anos 90, começaram a ser criados equipamentos como residenciais terapêuticos para as pessoas que, com o processo de desinstitucionalização, saiam dos grandes hospitais psiquiátricos; centros de convivência; hospitais-dia; Centros de atenção integral à saúde mental (CAISMENTAL); Núcleos de atenção psicossocial (NAPS); sendo que os dois últimos passaram a se chamar CAPS- Centro de atenção psicossocial- após a publicação da portaria n 336/GM/MS de 19 de fevereiro de 2002. 

Estes serviços, junto com os dispositivos de apoio criados no projeto da Clínica ampliada, as equipes multiprofissionais dos NASFs (Núcleo de apoio à saúde da família) e o apoio matricial[2], vieram compor a RAPS, Rede de atenção psicossocial. Rede tecida com base territorial entre os deferentes níveis de atenção à saúde (da atenção primária até os serviços especializados de nível secundário e terciário), e articulada de forma intersetorial com a educação, a cultura, a justiça e a assistência social.

A reforma psiquiátrica, que se fez na esteira da reforma sanitária, da criação do Sistema Único de Saúde, ao propor a construção de uma rede de atenção psicossocial de base territorial e buscando o protagonismo e a participação social através dos Conselhos de Saúde nas diferentes esferas de estado, pressupõe que equipamentos comunitários também possam vir a compor a complexa rede que se articula nos cuidados de promoção e assistência à saúde mental da população.

Foi no contexto da abertura democrática pós ditadura militar e que culminou na Constituição de 1988, que foi criado, em 1996, o CAPS II Caismental Centro no município de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul.

Este artigo propõe uma reflexão sobre as condições históricas de sua criação na tensão entre as esferas de poder no âmbito da política, da administração e da clínica, bem como dos princípios fundantes que nortearam a estruturação de uma equipe interdisciplinar. A ideia norteadora do trabalho era a construção de uma clínica capaz de receber pessoas e suas diferentes formas de sofrimento psíquico, e que realizasse esse trabalho de maneira intersetorial com os equipamentos da municipalidade e com a comunidade e seus dispositivos de participação social.

UM POUCO DE HISTÓRIA

A história da construção do CAISMental 8, Centro de atenção integral à saúde mental do distrito sanitário 8 da cidade de Porto Alegre, teve seu início dentro do primeiro equipamento público criado na cidade no contexto do movimento antimanicomial, a Pensão Pública Protegida Nova Vida. A PPPNV foi criada em 1990 para receber as pessoas que estavam sendo despejadas do residencial terapêutico vinculado à Clínica Pinel. Esse residencial estava rompendo o convênio que tinha com o SUS e seus moradores não tinham para onde ir. Os governos do estado e do município, alinhados com a política de desinstitucionalização da loucura, respondendo ao movimento de familiares, propôs a criação desse residencial.

A grande maioria dos moradores da Pensão tinha diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia e história de muitas e longas passagens por hospitais psiquiátricos. Os cuidados psicossociais prestados buscavam o resgate dos direitos de cidadania e a reinserção social através do estímulo à autonomia e à vida comunitária, um tanto semelhantes aos princípios das primeiras comunidades terapêuticas que surgiram na Inglaterra nos anos 60.

A equipe clínica contava com equipe de enfermagem, de serviço social, de psicologia, de terapia ocupacional e psiquiatria. No desenvolvimento do trabalho, alguns trabalhadores passaram a questionar o tipo de clínica, de escuta do sujeito, que se poderia fazer junto do cuidado comunitário. A realização daquela clínica produzia efeitos sobre parte da equipe que, a partir do encontro com o ensino de Lacan[3], passou a se perguntar sobre o lugar reservado para a singularidade na escuta daquelas pessoas e também para a escuta da demanda de outros sujeitos em sofrimento que não moravam nesse residencial terapêutico.

A demanda por atendimento em saúde mental na cidade vinha sendo acolhida majoritariamente em dois serviços estaduais, o Hospital Psiquiátrico São Pedro e o grande ambulatório psiquiátrico, com pronto atendimento, chamado Central de Psiquiatria. A existência desses dois equipamentos denotava a hegemonia do discurso biomédico e psiquiátrico para o tratamento dos “transtornos mentais”, em franca contraposição com as diretrizes da I Conferência Nacional de Saúde Mental, promovida pelo Ministério da Saúde(1987) e da Declaração de Caracas (1990), documento final da Conferência de Caracas promovida pela Organização Pan-americana  de Saúde, que indicava a reformulação do modelo de atenção à saúde mental na direção da assistência de base comunitária visando a manutenção dos vínculos sociais em contraposição ao modelo de segregação manicomial, e no resgate de direitos básicos de cidadania dos “loucos de todo gênero”[4], incluindo as pessoas institucionalizadas, moradores por anos nos grandes hospitais psiquiátricos. O Plano Municipal de Saúde de Porto Alegre na versão de 1993, elaborado a partir do relatório final da 1 Conferência Municipal de Saúde Mental realizada em 1991 acompanhava as diretrizes apontadas nos relatórios finais dessas duas conferências.

O Plano Municipal de Saúde Mental preconizava a existência de um CAISMental, equipamento destinado ao atendimento em saúde mental, ordenador da rede de atenção a saúde mental em determinado território, para cada distrito sanitário da cidade. Naquele momento, 1994/95, a cidade tinha um único CAISMental.

Nossos questionamentos entrelaçavam a diretriz política do movimento da luta antimanicomial, da reforma psiquiátrica, com uma proposta clínica que costurava conceitos e práticas da psicanálise freudo-lacaniana na interdisciplinariedade com a psiquiatria, o serviço social, a terapia ocupacional, a enfermagem e a psicologia, articulados de forma intersetorial no território, mas que precisavam de disposição política e administrativa da gestão municipal para que fossem materializados em um novo equipamento de saúde.

 A proposta de construção do CAISMental 8 contou com o apoio da equipe de planejamento da Secretaria municipal de saúde, mas necessitou de uma negociação mais ampla junto ao fórum de políticas sociais no gabinete da prefeitura.

Um dos pontos de preocupação do fórum de políticas sociais era o cuidado com a população que vivia em situação de rua. Os problemas de saúde mental fazem parte importante no complexo de variáveis que compõe a vulnerabilidade psicossocial dessas pessoas. A dependência de álcool e outras drogas ocupa lugar de destaque, mas existem também outras questões de saúde mental e as psicoses estão entre eles. A demanda do gabinete da prefeitura era de que uma das funções do novo CAIS Mental fosse de contribuir na articulação e no cuidado dessas pessoas. Concordamos em fazer o cuidado das pessoas em sofrimento psíquico para as quais a dificuldade primária não fosse a dependência química. Considerávamos que para o cuidado de pessoas com dependência de álcool e outras drogas seria necessário a criação de serviços especializados. A portaria/GM n 336 de 19 de fevereiro de 2002 do Ministério da Saúde que instituiu os CAPS alguns anos depois reservou o CAPS AD (álcool e drogas) para o atendimento dessa população. Acordamos que dentro do planejamento do novo equipamento de atenção psicossocial seria incluída a criação de uma micro-equipe que, juntamente com a atenção primária (hoje representada pelo consultório na rua) e a FASC (Fundação de assistência social e cidadania), se ocuparia dos cuidados em saúde mental para essas pessoas.

COMO FAZER O CAISMENTAL

Realizadas as negociações com o fórum de políticas sociais da prefeitura de PoA e com a secretaria de saúde do município, iniciamos um período de composição da equipe com estudos e debates sobre os princípios éticos, políticos e clínicos que viriam orientar nossas práticas de cuidado psicossocial. A montagem da equipe aconteceu de forma artesanal. Fomos buscando trabalhadores alocados em diferentes secretarias da prefeitura. O critério utilizado era de que os profissionais fossem de diferentes áreas (psicologia, psiquiatria, serviço social, terapia ocupacional e enfermagem) e que tivessem prática ou disposição de realizar um trabalho interdisciplinar em que as relações de saber e poder dentro do grupo se dessem de forma horizontal. Negávamos a repetição de práticas hierárquicas verticais dentro de nossa equipe. Todos saberes teriam seu lugar. Cada um contribuiria para a construção das novas práticas de cuidado que buscávamos através dos questionamentos e respostas que fossemos capazes de formular nas zonas de intersecção entre os diferentes conjuntos de conhecimentos e práticas.

A orientação ética da psicanálise freudiana e lacaniana teve um peso importante, ainda que nem todas os profissionais escolhidos para o trabalho tivessem familiaridade com o corpo teórico-clínico da psicanálise.

A diversidade de referenciais teórico-clínicos foi um desafio que nos propusemos trabalhar. Deveria haver um denominador comum para o início do trabalho. Os princípios da reforma psiquiátrica eram o nosso norte, assim como a construção de uma clínica que respeitasse o estatuto de verdade na palavra dos sujeitos que estávamos por atender. Uma clínica que tratasse de escutar as formações inconscientes, ou a presença do inconsciente à céu aberto nos delírios e alucinações psicóticos, não como sintomas a serem suprimidos ou controlados pelo tratamento psicofarmacológico, mas como a possibilidade que o sujeito, com sua estrutura de linguagem, como trabalhou Lacan (1997), tem de formular respostas subjetivas à demanda do Outro. Uma tentativa de cura do sujeito psicótico, como escreveu Freud (1979[1911-1913]). Portanto um cuidado clínico que não se desse contra o sintoma, que fosse capaz de se produzir com ele, modo de expressão do sujeito.

Nosso desafio conjunto era o de formular “um desenho institucional que agregando pensamentos e práticas administrativas, políticas e clínicas, apontasse a acolhida e o tratamento de sujeitos psicóticos ou com neuroses graves na direção da reabilitação psicossocial, na construção ou reconstituição de laços sociais”

Foram meses de trabalho com estudos sobre a clínica das psicoses, assim como diálogos com a gestão para propiciar os recursos humanos e materiais para que viéssemos abrir as portas e acolher a demanda da população de diversos distritos sanitários[5] da cidade em janeiro de 1996. De lá para cá se passaram 24 anos. Nesse tempo passamos por diferentes gestões marcadas por posições políticas e sanitárias distintas, a equipe foi sofrendo mudanças pontuais, os dispositivos clínicos passaram por diversas reformulações num amplo e permanente processo de reflexão sobre nossas práticas e seus efeitos, até chegarmos em 2020 com uma equipe praticamente nova. Nova e reduzida no número de profissionais para poder seguir prestando atenção integral à população das regiões Centro e Extremo Sul, entre os atendimentos individuais e os dispositivos grupais, as chamadas oficinas de expressão, acompanhar outros equipamentos da RAPS, como residenciais terapêuticos, abrigos municipais, atenção básica, escolas no território, entre tantos outros; participar das instâncias de controle social como a Comissão Municipal de Saúde e a Comissão Local de Saúde, continuar o trabalho intersetorial no atendimento às pessoas em situação de rua lá onde elas vivem; seguir com o projeto INSERE e CAPACITAR[6] acompanhando, juntamente com a equipe do GERAPOA, a colocação de alguns de nossos pacientes no mercado formal de trabalho através das vagas de PPDs, participando da articulação da RAPS no nosso território e em outro para o qual fomos responsabilizados pela cobertura por ser um território onde não há CAPS.

ENTRE A POLÍTICA E A CLÍNICA, A CLÍNICA COMO POLÍTICA

O movimento da luta antimanicomial teve, nos seus primeiros tempos, forte atuação política na defesa dos direitos de cidadania das pessoas institucionalizadas nos grandes hospitais psiquiátricos. A negação da instituição total como forma de tratamento da loucura buscou pôr fim às diversas formas de violência, negligência e maus-tratos que pessoas em sofrimento psíquico eram submetidas em nome de um suposto tratamento que as alijava do convívio social, tornando crônicas diversas formas de sofrimento e criando outras em que o corte do laço social se fazia por preconceitos morais e sociais. A pesquisa da jornalista Daniela Arbex no Hospital Colônia de Barbacena, O holocausto brasileiro (2020), revelou que não apenas os psicóticos eram internados e esquecidos dentro desses hospícios, mas que pessoas também ali eram trancafiadas por outras razões.  Homossexuais, prostitutas, meninas gravidas por patrões, mulheres que haviam perdido a virgindade antes do casamento, mulheres confinadas pelos maridos. Pessoas com deficiência intelectual também costumavam ser abandonadas pelos familiares nos grandes hospitais psiquiátricos. O aprisionamento e institucionalização dessas pessoas em condições sub humanas faz pensar que esses lugares estavam mais próximos de campos de concentração da segunda grande guerra do que de estabelecimentos destinados ao tratamento da loucura.

O corpo conceitual que orientou esse movimento tinha um autor, Franco Basaglia. Ele, junto com outros colegas italianos, criou o movimento da Psiquiatria Democrática e liderou o processo de desinstitucionalização da loucura na Itália envolvendo não apenas o campo das disciplinas técnicas, como a psiquiatria, a psicologia, entre outras, mas uma discussão nas relações de poder entre os profissionais e os pacientes, e dentro da sociedade no seu contexto mais amplo. O movimento envolveu amplo debate político que culminou com a promulgação da lei 180, em março de 1978, que deu legitimidade jurídica e legislativa para a Reforma psiquiátrica italiana.

Na primeira fase do movimento da reforma psiquiátrica brasileira a discussão política em torno dos direitos e da cidadania daqueles que eram os usuários dos serviços de saúde mental tomou conta do debate Era absolutamente urgente devolver alguma condição de vida à essas pessoas e ajudá-las na reinserção social. O debate sobre uma nova clínica para tratamento das psicoses e de outras formas de sofrimento psíquico era entendido por muitos militantes do movimento como um desvio da luta e como retorno às relações de poder exercidas pela ordem médico-psiquiátrica e até mesmo psicanalítica sobre os pacientes. Criou–se assim uma falsa polarização entre os campos da política e da clínica, como se as práticas fossem dissociadas e incidissem sobre dois sujeitos diferentes, o sujeito de direitos, o cidadão, e o sujeito psíquico com seu pathos.

Entendo que todos aspectos dessa discussão dizem respeito ao mesmo sujeito, mas na radicalidade da reforma houve um período em que os aspectos clínicos foram superpostos pela lógica de defesa dos direitos. Foi preciso um tempo para que essa discussão ganhasse outro lugar. É a própria clínica e a escuta do sujeito que fazem ver que a posição do sujeito no laço social, o que inclui as relações de poder e as diferentes modalidades de gozo aí presentes, não pode estar dissociada da leitura clínica, assim como as diversas formas de sofrimento psíquico não podem ter como único horizonte de cuidado aquele da luta política. Nesse sentido é falsa a concorrência e a exclusão entre os campos da clínica e a política. Vale, para isso, considerar que o sujeito do inconsciente se constitui no campo da linguagem, da cultura, no laço com o Outro. Outro que representa os referentes simbólicos que ordenam o laço social e que orienta as formas discursivas que compõe esse mesmo laço.

A política da clínica foi a questão que a equipe do CAPS Cais Mental Centro tomou como eixo de trabalho, tomando a posição do sujeito no laço social como norte do cuidado clínico.

É comum pensarmos a política como equivalente às disputas pela hegemonia e controle dos aparelhos de estado, bem como de sua gestão, e nesse lugar situarmos a construção das políticas públicas. No entanto, política também diz respeito ao modo como as pessoas de uma comunidade interagem entre elas no governo da polis. Propomos pensar que a gestão da clínica no campo da saúde mental não está dissociada das relações de poder que se estabelecem no laço social. É nessa direção que Gastão Wagner de Souza Campos et al (2014) trata do conceito da clínica ampliada levando em conta que o processo saúde e doença precisa ser pensado mais além dos processos biológicos do corpo, ou seja, nos condicionantes sociais, econômicos e subjetivos que marcam a vida de um sujeito. Assim, para pensar o pathos é necessário colocar na sua conta essa relação complexa e constituinte do sujeito no laço social.

Inserir a clínica do sujeito como parte das políticas públicas de saúde mental requer colocá-la nas zonas de tensão que se estabelecem nas relações de poder entre os campos da política, da esfera administrativa e da clínica.

Mario Testa (1992), sanitarista argentino, considera que o planejamento estratégico em saúde pública necessita trabalhar com as relações de poder que se estabelecem entre três campos de força e também dentro de cada um deles.

Testa considera que as disputas de poder no setor da saúde estão relacionadas com práticas e saberes de três tipos:

Esses elementos assumem um caráter clínico quando implicam a distribuição de poder e de relações do sujeito com o Outro.

O processo da Reforma psiquiátrica brasileira pode ser pensado à luz das relações complexas entre esses campos de práticas e os conhecimentos que lhes dão coerência e legitimidade.

Quando se fala em processo se diz de um tempo em movimento, de processos históricos, dos fluxos que se fazem no embate de posições entre diferentes narrativas no campo da ciência sobre os problemas psíquicos e na estreita relação que os grupos que as sustentam ocupam nos espaços hegemônicos onde se produz o conhecimento técnico e nas esferas de poder do estado.

A Emenda Constitucional 95- do Teto de Gastos - editada durante o governo Temer, e mantida na presidência de Jair Bolsonaro, congelou os gastos do governo federal com o financiamento do SUS desvinculando o gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde. Aqui temos um exemplo importante de como o poder político, instituindo novas regras administrativas, inviabiliza a expansão da cobertura do Sistema Único de Saúde. Fica evidente o desinvestimento político e administrativo na construção de novos equipamentos de saúde mental, ainda insuficientes para dar conta da cobertura populacional e com distribuição desigual nas diferentes regiões que compõe o território nacional.

Junta-se aqui outro exemplo, agora na intersecção com o campo técnico, quando tratamos das políticas públicas de saúde para o tratamento da dependência de álcool e outras drogas. A política pública de Redução de Danos foi adotada inicialmente em 1988 no município de Santos, como política de prevenção da AIDS entre usuários de drogas injetáveis. Somente em 2003 tornou-se uma política de âmbito nacional como diretriz do Ministério da Saúde. A partir do governo Temer essa política começa a sofrer reveses com a pressão de setores religiosos que administram Comunidades Terapêuticas com longo tempo de internação para pessoas com dependência de álcool e outras drogas. O estado passa a financiar essas instituições que perspectivam seu funcionamento como instituições totais. Ou seja, observamos aqui um grande retrocesso na política de desinstitucionalização que buscou se fazer hegemônica enquanto política pública de saúde mental a partir da década de 90 do século passado até o final do governo da presidenta Dilma Rousseff.

As relações entre política, administração e o ordenamento de dispositivos terapêuticos, cujas diretrizes partem das esferas de governo federal, estadual e municipal, se dão também no interior de cada equipamento de saúde. A maneira como uma equipe é composta, como lida com as diferentes disciplinas que compõe uma equipe multiprofissional, como trabalha com as diferentes escolas de tratamento dentro da mesma especialidade, como estabelece sua relação com a coordenação ( que é cargo de confiança do gestor que naquele período ocupa o lugar de poder político e administrativo), que lugar o usuário ocupa nesse jogo de posições entre os profissionais e entre os profissionais e a gestão, vai definindo a estrutura de funcionamento do serviço e configurando também a estrutura sintomática da equipe como representação institucional. Estabelece assim o lugar que o usuário ocupa nesse laço com aqueles que serão responsáveis, com ele, por conduzir seu tratamento.

A política da clínica no CAPS Cais Mental Centro é um processo em permanente construção. A figura topológica da Fita de Moebius nos serve como modelo para reunir os conceitos da clínica ampliada e o da clínica que se pode fazer a partir da ética da psicanálise. O espaço que se forma na torção da fita não delimita mais um dentro e um fora. Assim, pensar num equipamento de saúde mental que tenha uma estrutura aberta, em oposição ao modo de funcionamento fechado e normativo de uma instituição total, requer pensar em dispositivos de cuidado clínico que operem com os usuários do serviço tomando o sujeito em sua condição singular de produzir respostas às marcas inscritas na experiência do encontro com o Outro. E esse encontro é carregado não somente das marcas de sua história original, mas também das contingências psicossociais que marcaram e seguem se apresentando na vida, no território em que isso acontece.

Os cuidados clínicos com essa pessoa que sofre não são excludentes da luta por direitos de cidadania, pelo protagonismo social. A leitura clínica que formos capazes de realizar das condições de enunciação de cada sujeito assistido no CAPS, a partir de olhares múltiplos, interdisciplinares, constituí a materialidade necessária para a elaboração de um plano terapêutico singular (PTS), cuja direção de tratamento aponta para a possibilidade de cada sujeito em tecer sua própria leitura das respostas subjetivas que foi capaz de realizar no encontro com a demanda e o desejo do Outro.

Nosso guia tem mais perguntas do que respostas prontas que o conhecimento da ciência poderia nos colocar como ilusão de saber. Perguntas que são dirigidas ao sujeito, que questionam de seu desejo, de seu lugar no laço social, e cujas respostas são sempre singulares e fora das medidas normativas e hegemônicas contidas no imaginário social. E também do imaginário da equipe que o acompanha. Os trabalhadores do CAPS precisam deixar em suspenso seus ideais pessoais.

DISPOSITIVOS DE CUIDADOS CLÍNICOS E INSTITUCIONAIS

Os dispositivos terapêuticos no CAPS Cais Mental Centro foram pensados, então, na contramão   de uma prática psiquiátrica que se reduz ao enquadre nosográfico, classificatório, o campo de transtornos do comportamento humano, como orientador principal no tratamento das pessoas assistidas no serviço. Ao invés de colocarmos o conhecimento psiquiátrico como anterior à escuta de nossos pacientes, preferimos nos orientar com a ética de um pesquisador, tendo por princípio a formulação de hipóteses de pesquisa a partir dos dados que a clínica lhe propõe. Dados que serão lidos e relidos dentro de um marco referencial teórico interdisciplinar com aportes da psicanálise, da psiquiatria, do serviço social, da terapia ocupacional e da enfermagem.  No nosso caso, as hipóteses eram colocadas à prova na escuta de cada sujeito. Buscamos encontrar um modelo institucional que respondesse de forma geral ao tratamento das psicoses, mas que encontrasse essas respostas na singularidade de cada um.

Assim a equipe se engajou na tarefa de construir um corpo de conhecimentos e práticas a partir da elaboração de dispositivos que oferecessem a possibilidade do sujeito se dizer. Entendemos que esses dispositivos deveriam levar em conta formulações que colocassem em relação as dimensões do geral e do particular para chegar ao singular de cada caso.

O cuidado com a equipe se constituiu em um projeto de trabalho importante, exigindo avaliação continuada. Ele se realiza na direção de que esta equipe possa atribuir lugar e função ao que ela não sabe, e, por consequência, que esse não saber opere como ordenador do que ela pode vir a saber. Esse saber, por sua vez, tem como sujeito a pessoa que atendemos.

Para preservar essa postura clínica em que a escuta do outro tem sua prevalência, legado do método de pesquisa freudiano que permitiu a invenção da psicanálise, tivemos que desenhar alguns dispositivos institucionais. Nossa preocupação era com os sintomas que costumam se cristalizar em instituições que trabalham com psicóticos. O descrédito colocado sobre a palavra do “louco” no discurso social, e temos que levar em conta que cada um dos profissionais que trabalham no CAPS não está fora dele, tem efeito de resistência à escuta, deslizando o cuidado em direção da tutela. Na perspectiva da tutela, a palavra do sujeito não tem valor, o saber que conta é exclusivamente o do cuidador. O paciente se torna objeto das decisões desse outro.  A tutela é a marca da instituição total.

No interior de uma equipe terapêutica são estabelecidas relações de poder cujas variáveis vão do conhecimento técnico, que da consistência discursiva ao ato clínico, até o lugar de reconhecimento no imaginário social de cada disciplina. É por isso que muitas equipes de saúde mental costumam se organizar de forma vertical, tendo o discurso psiquiátrico no topo da cadeia de poder. Não foram poucas as situações na história do CAPS Cais Mental Centro em que se demandou que os psiquiatras ocupassem essa posição, ou se teceu severas críticas aos colegas quando passavam a fazer uma clínica psiquiátrica ambulatorial dissociada do trabalho de equipe.

Procuramos construir uma equipe multiprofissional que funcionasse de modo interdisciplinar. Para que a interdisciplina tenha lugar numa equipe, as relações de poder necessitam se estabelecer de forma horizontal. Cada disciplina tem seu corpo de conhecimento específico, e é nas zonas abertas pela tensão que se produz entre elas que novas perguntas podem ser formuladas e novas práticas clínicas podem ser criadas. Aqui, novamente, a escuta conduz o fazer clínico, mas agora tratando da escuta entre vários na equipe, como motor da criação artesanal, que caracteriza o ato terapêutico.  

A construção do PTS se faz em discussão dentro da microequipe, que é responsável pelas entrevistas iniciais de acolhimento, e depois ampliada com todos na “ reunião de equipe” que acontece semanalmente.

O trabalho de Ana Cristina Figueiredo: A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental (2004), ajudou muito nos ajustes desse dispositivo. As formulações da psicanálise têm lugar importante nesse trabalho, sendo que o conceito de transferência ocupa lugar central, ressaltando a importância da palavra de cada trabalhador no CAPS, dos porteiros, da cozinheira, dos técnicos de enfermagem, dos psiquiatras, psicólogos, enfermeira, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, estagiários de graduação e das residências em psiquiatria e multiprofissionais.  

A transferência como lugar de suposto saber que um sujeito endereça ao terapeuta não se estrutura da mesma maneira para cada membro da equipe. O lugar que cada profissional ocupa na estrutura funcional do serviço oferece diferentes modos de escuta para o estilo de endereçamento das diferentes demandas que um paciente pode fazer. É na leitura das relações transferenciais do sujeito que vamos fazendo nossas hipóteses, e desenhando um projeto terapêutico. Projeto entendido como um processo aberto, portanto datado e objeto de revisões sistemáticas. São as respostas que o paciente dá aos atos de cuidado, nos diferentes encontros com os trabalhadores do serviço, que vão orientando os caminhos e as reavaliações do PTS.

É importante ressaltar que não são todos profissionais do CAPS Cais Mental Centro que tem formação psicanalítica, e que isso não impediu o trabalho. Ao contrário, a discussão de caso clínico se oferece como oportunidade para que as lógicas de leitura do caso sejam construídas e compartilhadas. A estruturação do sujeito psíquico e a psicopatologia psicanalítica dialogam em tensão com os conceitos da psiquiatria, da terapia ocupacional, da enfermagem e do serviço social. É, nesse diálogo, que a equipe originária foi se estruturando e se refazendo ao longo desses anos com a saída e chegada de novos trabalhadores, alguns com outras experiências no campo da atenção à saúde mental, outros sem qualquer experiência no campo. A discussão do caso clínico foi o primeiro pilar na construção do trabalho de equipe, mas não foi o único.

Para que nossas hipóteses clínicas e institucionais fossem postas de fato a prova, era importante que estivéssemos abertos a olhares e questionamentos outros que não somente os da equipe.

O dispositivo da supervisão institucional, como prática de apoio às equipes de saúde, foi muito importante nessa trajetória. Com essa mesma intenção, durante algum tempo realizamos a apresentação pública de pacientes, com critérios éticos rígidos de funcionamento, o que permitia a discussão de casos com outros profissionais de saúde mental de dentro e fora da rede de atenção psicossocial do SUS.

Outra forma de nos depararmos com a alteridade de olhares e escutas se deu a partir do nosso desejo de transmissão da experiência na qual estávamos engajados. Abrimos campos de estágio para acadêmicos da psicologia, do serviço social, da enfermagem e da terapia ocupacional de duas universidades e para os programas de residência médica em psiquiatria e para as residências multiprofissionais.

O debate com a universidade permitiu importantes experiências, como a elaboração do lugar do Acompanhante Terapêutico na prática clínica, e a constituição do Grupo de Gestão Autônoma de Medicação, que se deu a partir de pesquisa desenvolvida na faculdade de psicologia da UFRGS.

 Participamos também, como campo da pesquisa, da CAPSUL-Avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do Brasil, desenvolvida em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas[7] e da faculdade de enfermagem da UFRGS.  

O trabalho de supervisão, assessoria, interconsultas e projetos compartilhados com outros equipamentos da RAPS na saúde, na assistência social, na cultura, nos esportes, na educação, na indústria e comércio, habitação e na justiça, também nos ajudou na leitura mais ampla do que constitui a construção do laço social no território de vida da população que assistimos. Junto com a prática interdisciplinar, o trabalho intersetorial é fundamental nas ações de um CAPS.

Entendemos que uma instituição, uma vez estabelecidas suas práticas, tende a burocratizar seu funcionamento instituído e desenvolver modos de defesa contra mudanças. Daí a importância de chamarmos olhares estrangeiros para desestabilizar nossas construções, para não permitir que nos acomodássemos em falsas certezas.

Na relação com o fazer cotidiano da instituição, sustentada entre todos esses dispositivos, interrogamos se na instituição total que é o manicômio, a psiquiatria ocupava (ou será que ainda ocupa?), o lugar de agente organizador das produções discursivas, sustentando com sua prática as razões da tutela. Para que isso aconteça, sabemos, o agente (discurso psiquiátrico) precisa do reconhecimento do outro, ou melhor, dos outros. No caso do discurso psiquiátrico manicomial, ele vai encontrar esse reconhecimento nos demais membros do estafe institucional, nos familiares e no discurso social, que lhe demanda e autoriza esse poder, de buscar confinar a loucura dentro dos limites demarcados pelos muros da instituição.

Basaglia propôs o movimento da psiquiatria democrática justamente para questionar o quanto de gozo existe nessa relação de poder, do poder da tutela. E o quanto a luta conservadora para a preservação da lógica manicomial é uma luta por preservação do gozo que esse lugar reserva ao amo.  

Nominé (2018) nos ajuda quando diz que, para enxergar o produto de um discurso, é preciso mudar de discurso. “A verdade de um discurso somente pode ser apreendida por outro discurso” (p.62).

Foi assim como as histéricas de Charcot, que ao questionar com seu sintoma os cânones da ciência médica no ínicio do século XX, deixando à vista sua falta a saber, seu saber não todo, colocaram o jovem neurologista Sigmund Freud num outro campo de pesquisa que resultou na invenção da psicanálise.

Foi assim também com o discurso da Psiquiatria Democrática que, ao negar a ordem manicomial (1985), abriu caminho para a reforma psiquiátrica italiana e se tornou referência para a reforma psiquiátrica brasileira.

No entanto, para o grupo que se ocupou com a construção do CAPS Cais Mental Centro, não bastava a negação e a denúncia da ordem repressiva, estigmatizante e segregacionista existente no grande hospital psiquiátrico. Era preciso dar voz às pessoas em sofrimento e também produzir um cuidado diferente com elas. E como fazê-lo?

Dar voz ao sujeito significa valorizar sua forma de expressão, escutar seu sintoma como modo de subjetivação e não apenas como um signo codificado na nosografia médica. A redução da expressividade do sujeito a um discurso que lhe é estrangeiro acaba por assujeitá-lo. Não obstante à crítica de uma prática psiquiátrica reducionista, que se resume ao diagnóstico e a prescrição psicofarmacológica, é importante afirmar que não se trata de negar a importância do conhecimento construído por esta disciplina. Pelo contrário, a psiquiatria tem lugar relevante, tanto quanto as outras especialidades, na tessitura interdisciplinar dos conhecimentos que sustentam o cuidado clínico.

Para que a palavra do louco tenha ressonância é preciso que ela encontre um lugar de endereçamento, uma escuta que dê testemunho da verdade do sujeito.

As oficinas de expressão se tornaram o eixo de nosso fazer clínico. Da oficina de beleza, passando pela música, pelo ateliê de escrita, pelo jornal, pela expressão corporal, pela circulação nos espaços comuns da cidade, pela oficina de vídeo, pelo cinema, fotografia, expressão plástica, do convívio, pela culinária, assembleia, e tantas outras, fomos buscando proporcionar, nos encontros em torno de fazeres, a expressão de atos de fala, manifestações de subjetividade, de como cada um se coloca no laço, ou mesmo na ausência dele, com seus outros. Os efeitos desses encontros de falas podiam ser escutados nos atendimentos individuais da psicologia, da psiquiatria, do serviço social, da enfermagem, da terapia ocupacional e dos ATs.

Muitas oficinas foram se modificando ao longo do tempo. A montagem delas costuma ser efeito do planejamento anual do serviço e se dá no encontro entre o desejo dos proponentes e o quanto esse desejo é capaz de mobilizar o interesse dos pacientes. Emprestar esse desejo não deve servir para alienar os participantes a ele, mas dar um ponto de partida para que eles possam se colocar nesse laço de trabalho com os outros, construindo um espaço de fala de si e de compartilhamento de experiências de vida.

Para muitos o trabalho se constitui como valor simbólico que propicia lugares de trocas sociais e de pertencimento a outros grupos que não somente os familiares. Programa de trabalho assistido, o Insere, com cursos de preparação para o trabalho oferecido por empresas para as vagas de pessoas com deficiência, assim como as oficinas de trabalho cooperativo de outro equipamento da RAPS, o Gerapoa, se tornaram estratégias terapêuticas importantes para muitos. Porém, é preciso dizer, o trabalho como estratégia de inserção social, não pode se impor para todos.

Aliás, a clínica tem nos mostrado como os imperativos produzidos pelo desejo pessoal de terapeutas podem desencadear crises psicóticas, inibições neuróticas e resistência ao tratamento. Por isso ressaltamos a importância do plano terapêutico singular. As estratégias clínicas são variadas e devem ser apresentadas no caso a caso. O desejo do terapeuta precisa estar em causa, mas como lugar vazio, força motriz para viabilizar o desejo daquele que buscamos escutar.

Todo trabalho inicia na qualidade de acolhimento. Acolhimento que é feito tanto na instituição, com escuta feita por dois profissionais de diferentes especialidades, que vão desdobrar a escuta da demanda, e indicar quem irá compor a microequipe que se ocupará de seguir a escuta do sujeito, situando por quais caminhos poderá seguir o acolhimento terapêutico, como pode ser feito no território em que muitas pessoas vivem, na rua. Nesse segundo caso, a equipe que faz o acolhimento inicial é composta de forma interdisciplinar e intersetorial, com trabalhadores do CAPS, do consultório na rua e da FASC.  

Acolher, para nós, é um ato de hospitalidade. Receber o sujeito com sua demanda, ou na falta de demanda, criar um espaço acolhedor para que ela aconteça, é o primeiro passo na construção de uma relação de trabalho terapêutico.

O CAPS foi concebido para ser um equipamento substitutivo à lógica de tratamento das psicoses baseada em internações hospitalares e acompanhamento psiquiátrico ambulatorial. Para isso precisa construir dispositivos clínicos capazes de receber o sujeito em crise, quando o cuidado muito próximo e diário se faz necessário. Para isso criamos o CAD, centro de atenção diária, contando com um profissional de nível superior como referência, junto com a equipe de enfermagem e o pessoal de apoio da portaria, da limpeza e da cozinha, para acompanhar os pacientes que necessitam passar um ou dois turnos diários no serviço.

No momento inicial onde a ideia de um CAISMental começou a circular como possibilidade de construir um serviço de clínica das psicoses alternativo à internação psiquiátrica, que pudesse dar continuidade ao tratamento após a saída da crise, tendo como orientação a reabilitação psicossocial, pensamos numa estrutura semelhante à de um hospital-dia. No entanto logo desistimos dessa ideia. Era preciso uma mudança radical de paradigmas de cuidado, onde a imagem e as metáforas ligadas à hospitalização e a institucionalização fossem um objeto a ser evitado. Uma hospitalização breve pode até ser necessária para alguns casos em que vidas correm risco de ter fim e não há estrutura social que possa dar cuidado constante para aquele que sofre. Mas, um hospital psiquiátrico, não constitui um ambiente acolhedor para o sujeito. Por isso optamos por criar um ambiente de cuidado hospitaleiro, capaz de receber e dar suporte ao sujeito no momento da crise, e, depois, seguir acompanhando-o no trabalho com as marcas que uma crise produz.

Há outros dispositivos importantes nesse trabalho, como o grupo de familiares, a assembleia dos usuários do serviço, a constituição da CLIS (Comissão local de saúde), a escolha do terapeuta de referência. É importante sublinhar que há um elemento comum entre todos eles. Esse elemento é o pressuposto ético que aponta a direção do tratamento do sujeito no laço social. No território onde a vida acontece. Na polis. Sem que seu sofrimento fique alienado em uma demanda de normatização da vida ou identificado de saída com uma impotência para cuidar dela.

PARA FINALIZAR SEM CONCLUIR

No aniversário de dez anos do CAPS Cais Mental Centro editamos uma revista com artigos que diziam do nosso processo de pesquisa, aprendizagem e construções ao longo desse tempo. Escrevemos, eu e a saudosa Maria Cristina Carvalho da Silva[8], o texto Notas de um percurso inacabado, e usamos como epígrafe uma frase de Oswald de Andrade (1995): Que é a História, senão um contínuo revisar de ideias e de rumos?

Em 1995, há exatos 25 anos, realizamos um ciclo de seminários promovido em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e a Associação Psicanalítica de Porto Alegre, chamado Convivendo com a Loucura. Ano em que essa equipe de trabalhadores da SMS-PoA se colocou a estudar e implementar os primeiros passos que resultaram na criação do CAISMental Centro.

De lá para 2020, a composição da equipe foi mudando e muitas formulações foram revisadas. Quando mudam os atores em cena, novas ideias aparecem, interagem com as iniciais, e geram outras construções. Gestões municipais foram passando, cada qual com sua política de saúde, de relação com o funcionalismo público, de estimulo ou descrédito à participação popular nos Conselhos de Saúde, ou seja, com diferentes posições frente aos princípios do SUS. As mudanças políticas na esfera federal também têm sido decisivas nesse ponto. Vivemos um momento histórico em que o Ministério da Saúde subverte a política pública no campo da saúde mental, redirecionando a lógica de financiamento da reforma psiquiátrica, que era destinada prioritariamente para a construção da RAPS, para o caminho oposto, aumentando os gastos com pagamentos de leitos de internação em hospitais psiquiátricos e promovendo o financiamento de Comunidades Terapêuticas,  entidades de cunho religioso que propõe internações de longa duração como tratamento para a dependência química. O Estado volta a investir em instituições totais. E isso acontece dentro do período de contingenciamento nacional de verbas que financiam duas das principais políticas de Estado, a saúde e a educação. Municípios passam a investir em parceria com entidades privadas para a ampliação da rede de saúde. A rotatividade de trabalhadores dos equipamentos de saúde aumenta, assim como a insegurança de muitos deles na continuidade de um trabalho que agora depende de gerentes que fazem gestão com a lógica administrativa do capital.

São novos tempos, novas conjunturas políticas e administrativas que incidem sobre a clínica e que exigem respostas e ações a sua altura.

Não obstante à necessária renovação das práticas políticas e clínicas, é preciso a preservação de uma ética de cuidado. Foi assim que, quando tivemos que mudar a designação de CAISMental para CAPS II, resolvemos manter o nome anterior, mas ressaltando seu significado como metáfora. Um Cais, um ancoradouro, um lugar para chegar no momento da crise, mas também, como cantou Milton Nascimento, um lugar para quem quer se soltar. No ir e vir das marés, no espaço onde a vida acontece, precisamos seguir construindo muitos CAISMentais, lugares em que se pode aportar com a demanda de cuidados, mas também um lugar de onde se sai para a vida com os outros.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1995.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Rio de janeiro: Intrínsica, 2020.

BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. I Conferência Nacional de Saúde Mental. Relatório final. Ministério da Saúde, Brasília, 1987.

______. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS n 336, de 19 de Fevereiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília (DF),9 de fev. 2002.

CAMPOS, Gastão Wagner se Souza, et al. A aplicação do método Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. In: Interface 2014; 18 Supl 1: 983-95

FIGUEIREDO, Ana Cristina. A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. In: Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, vol.7, n 1, São Paulo, 2004.

FREUD, Sigmund. ]. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia Paranoides) (1911). In: ____, Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: As psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

NOMINÉ, Bernard. Sobre identidade e identificações. São Paulo: Blucher, 2018.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE 1990. Organização Mundial da Saúde. Declaração de Caracas. Caracas.

SIBEMBERG, Nilson; SILVA, Maria Cristina. Notas de um percurso inacabado. In: Revista 1 do CAIS MENTAL CENTRO, nov. 2006, Porto Alegre, p. 10.

TESTA, Mario. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

Revista Desenvolvimento Social, vol. 26, n. 2, jul/dez, 2020

PPGDS/Unimontes-MG       


[1] Médico psiquiatra, psicanalista, trabalhador no CAPS CaisMental Centro- Porto Alegre, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

[2]  O apoio matricial é uma ferramenta estratégica da Política de Saúde Mental para garantir o princípio da integralidade das ações em saúde. Ele se dá a partir da oferta de saberes-fazeres técnicos especializados às equipes da Atenção Básica, a fim de que possam incluir as demandas de saúde mental em suas ações.

[3] Naquele momento trabalhávamos com o Seminário 3- As psicoses, e com o texto Questões preliminares a todo tratamento possível da psicose.

[4] Loucos de todo gênero é a expressão usada na lei n 3.071, artigo 446 do Código Civil de 1916 que regulava a interdição dos direitos da vida civil para as pessoas com sofrimento psíquico. Elas deixavam de ter o direito de responder por suas escolhas e seus atos.

[5]  Naquele momento, como só havia um CAIS Mental na cidade além do nosso que estava abrindo, ficamos responsáveis pela cobertura da população em um território bem mais amplo do que da região centro, território do qual hoje o serviço é responsável pela cobertura.

[6] O projeto INSERE tinha como objetivo a inserir alguns pacientes no mercado de trabalho formal através das vagas reservadas para deficientes mentais. Ele foi realizado em parceria com o SENAC e com as empresas que se dispuseram em receber nossos pacientes. Os pacientes realizavam curso preparatório para o trabalho, faziam estágio e, se aprovados, depois podiam ser contratados. Esse projeto acabou sendo ampliado para toda rede de atenção psicossocial na cidade, passando a se chamar CAPACITAR. Os pacientes são acompanhados pela equipe que os assiste desde a preparação para o trabalho e também no exercício do mesmo. Esse acompanhamento se faz em parceria com o setor de recursos humanos das empresas contratantes.

[7] http:/www2.ufpel.edu.br/feo/capsul/capsul.php

[8] Maria Cristina Carvalho da Silva, psicanalista, falecida em 2012, ocupava a coordenação das políticas municipais de saúde mental na prefeitura de Porto Alegre quando começamos a conversar sobre a possibilidade de criar um CAISMental. Ela, não só defendeu o projeto, como acabou por ocupar o lugar de coordenadora da equipe entre os anos de 1997 e 2009.