https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n2p41-70
Vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
ISSN: 2179-6807 (online)
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
41
QUANDO PAULO FREIRE VIER: PEDAGOGIA DO OPRIMIDO, SANTA CRUZ
E RELIGIÃO
Emerson Sena da Silveira
1
Recebido em: 13/10/2021
Aprovado em: 20/12/2021
Resumo: Este artigo procura compreender duas obras e contextos, a Pedagogia do Oprimido
(1968), do filósofo e educador Paulo Freire, e o filme-documentário Santa Cruz (2000), do
cineasta João Moreira Salles e do jornalista Marcos Sá Corrêa. A primeira obra, critica educação
tradicional, propõe a educação problematizadora e a mudança social radical. A segunda, mostra
o cotidiano de evangélicos pentecostais na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro durante a
construção de seu pequeno templo. Elaborou-se um paralelo entre as obras e, nos contextos
sócio-históricos, tangentes. Entende-se que uma reflexão socio-crítica se faz essencial diante do
crescimento evangélico e seu forte impacto na política, educação e sociedade brasileiras. A
metodologia qualitativa-teórica, baseada em uma perspectiva histórico-antropológica, guiará a
construção discursivo-textual deste artigo. A partir da exposição resumida das obras e da
seleção de passagens-chave, buscam-se três resultados: a importância da releitura das ideias
paulofreirianas para compreender melhor o mundo contemporâneo; a crítica das abordagens
romântico-fenomenológicas e, por fim, o convite à transformação social a partir da crítica
paulofreriana à sectarização e à educação não-problematizadora.
Palavras-chave: Educação problematizadora. Paulo Freire e evangélicos. Crítica da religião.
Comunidade pentecostal.
WHEN PAULO FREIRE COMES: PEDAGOGY OF THE OPPRESSED, HOLY CROSS AND RELIGION
Abstract: This article seeks to understand two works and contexts, the Pedagogy of the
Oppressed (1968), by philosopher and educator Paulo Freire, and the documentary Santa Cruz
(2000), by filmmaker João Moreira Salles and journalist Marcos Corrêa. The first work
criticizes traditional education, proposes problematizing education and radical social change.
The second shows the daily life of Pentecostal evangelicals in the West Zone of Rio de Janeiro
during the construction of their small temple. A parallel was drawn between the works and, in
the socio-historical contexts, tangents. It is understood that a socio-critical reflection is essential
in face of the evangelical growth and its strong impact on politics, education, and Brazilian
society. The qualitative-theoretical methodology, based on a historical-anthropological
perspective, will guide the discursive-textual construction of this article. Based on the
summarized exposition of the works and the selection of key passages, three results are sought:
the importance of re-reading Paulo Freire´s ideas to better understand the contemporary world;
1
Doutor em Ciência da religião, antropólogo, professor do Departamento de Ciência da religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Brasil. E-mail: emerosn.pesquisa@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5407-596X.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
42
the critique of romantic-phenomenological approaches; and, finally, the invitation to social
transformation based on the Paulo Freire’s critiques of sectarianism and non-critical education.
Keywords: Critical education. Paulo Freire and evangelicals. Criticism of religion. Pentecostal
community.
CUANDO VIENE PAULO FREIRE: PEDAGOGÍA DEL OPRIMIDO, SANTA CRUZ Y RELIGIÓN
Resumen: Este artículo pretende comprender dos obras y contextos, la Pedagogía del Oprimido
(1968), del filósofo y educador Paulo Freire, y el documental Santa Cruz (2000), del cineasta João
Moreira Salles y el periodista Marcos Sá Corrêa. La primera obra critica la educación tradicional,
propone una educación problematizadora y un cambio social radical. La segunda muestra la vida
cotidiana de los evangélicos pentecostales en la Zona Oeste de la ciudad de Río de Janeiro
durante la construcción de su pequeño templo. Se elaboró un paralelismo entre las obras y, en
los contextos sociohistóricos, las tangentes. Se entiende que una reflexión sociocrítica es
esencial ante el crecimiento evangélico y su fuerte impacto en la política, la educación y la
sociedad brasileña. La metodología cualitativa-teórica, basada en una perspectiva histórico-
antropológica, guiará la construcción discursiva-textual de este artículo. A partir de la exposición
resumida de las obras y de la selección de pasajes clave, se buscan tres resultados: la
importancia de releer las ideas ‘paulo-freirianas para comprender mejor el mundo
contemporáneo; la crítica a los planteamientos romántico-fenomenológicos y, por último, la
invitación a la transformación social desde la crítica ‘paulo-freiriana’ al sectarismo y a la
educación no crítica.
Palabras-Clave: Problematización de la educación. Paulo Freire y los evangélicos. Crítica de la
religión. Comunidad pentecostal.
INTRODUÇÃO
Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim
descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam
Paulo Freire, epígrafe de Pedagogia do Oprimido
Neste artigo, aproximarei duas obras e contextos, Pedagogia do Oprimido
(1968/1970), do filósofo e educador Paulo Freire, e o filme-documentário Santa Cruz
(2000), do cineasta João Moreira Salles e do jornalista Marcos Corrêa. O fio que
percorre as duas obras, o livro e o média-metragem, é um: o Brasil ou Brasis, devido à
extrema desigualdade regional, socioeconômica, em dois momentos que se desdobram
em uma malha específica, que é a ascensão do capitalismo em seus momentos de
transição do industrial ao financeiro, sob a hegemonia do neoliberalismo. Por um lado,
-se a reconfiguração do Estado e da sociedade brasileira, e por outro, e dentro destes,
as mutações na educação e no campo religioso, marcadas pela emergência de um forte
reacionarismo cristão, fechado, intolerante para com outras formas de vida, amor,
família e sociedade.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
43
Em 1968, no contexto do exilo forçado pelo Golpe de Estado e Ditadura Militar
brasileira (1964-1985), o filósofo e educador pernambucano escrevia o seu mais
importante livro, Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2018), dentre outros, como ão
Cultural para liberdade (FREIRE, 1981) talvez o segundo mais importante. Em 1970
publicava em inglês. A imensa importância desse texto reside em dois aspectos
essenciais: novos caminhos teórico-práticos, realmente criativos, e a plataforma de
lançamento na língua global e em universidades estadunidenses e inglesas. Sucederam-
se edições em espanhol (1970), italiano e alemão (1971), francês e grego (1974), mas
apenas em 1975, em português. Desde aí, houve tradução e edição em japonês (1979),
tailandês (1985), coreano (2002), árabe e finlandês (2005). Talvez seja uma das obras
mais traduzidas e editadas no mundo.
Trinta anos depois, em 2000, o média-metragem Santa Cruz, com 61 minutos,
foi lançado com sugestivo título. Ele evoca uma região geográfica marcada por pobreza,
desassistência social e a religião cristã. O cineasta João Moreira Salles e o jornalista
Marcos Sá Corrêa e equipe, acompanharam durante nove meses do ano anterior a vida
de homens e mulheres evangélicos e a construção da Casa de Oração Jesus é o General
em uma ocupação clandestina (Parque Florestal) dentro do bairro Santa Cruz, zona
oeste da cidade do Rio de Janeiro. Eles procuraram entender imagética e
narrativamente os motivos da criação e multiplicação das seitas evangélicas. São duas
obras que coloco em paralelo, mas justapostas a uma estrutura sócio-histórico de longa
duração, o (s) Brasil (is), e seus dilemas. Espero iniciar uma conversa que tenha
continuidade com vocês, leitores.
A metodologia qualitativa-teórica em uma perspectiva histórico-antropológica,
guia a construção discursivo-textual do artigo a partir da exposição resumida de
passagens-chave. Espero alcançar três resultados, a releitura de ideias paulofreirianas
para melhor compreensão do mundo contemporâneo; a demonstração dos limites de
abordagens romântico-fenomenológicas ou moralizante-voluntaristas sobre o mundo
religioso evangélico e a sociedade, e, por fim, o convite à transformação social a partir
da crítica paulofreriana à sectarização e à educação não-problematizadora.
DOS CONTEXTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DAS OBRAS
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
44
No contexto anterior e posterior à redação do livro, em Santiago do Chile, em
1968, ocorreram movimentos, eventos e processos importantes. No Brasil, a Ditadura
Militar endureceu ainda mais a repressão (AI-5, fechamento do Congresso, censura,
cassação de direitos de políticos e tortura). Ocorreram, em maio do mesmo ano,
protestos estudantis-operários de esquerda-anarquista, não-alinhados com os
socialismos cubano, soviético e chinês e, ainda, as Jornadas de Maio, na França e no
Mundo. Ainda em 1968, ocorria a Primavera de Praga na antiga Tchecoslováquia, uma
das tentativas de refundar o socialismo, devolvendo a ele liberdades democráticas
amplas, mas a União Soviética esmagou essa rebelião de esperança. No mesmo ano
aconteciam dois eventos, a Conferência de Medellín, na Colômbia, que reuniu o
episcopado latino-americano em torno da teologia da libertação, apesar das resistências
conservadoras e o assassinato do pastor batista Martin Luther King Jr., uma das vozes,
junto à de Rosa Parker, do poderoso movimento antirracista pelos direitos das minorias
negras estadunidenses.
Nessas décadas também emergiam processos geopolíticos fundamentais: o auge
da Guerra Fria, com a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (1962) e Guerra do Vietnã
(1959-1975); o consenso neoliberal após a crise do Estado de bem-estar social; o acordo
China e EUA (1972); o libertarismo de direita (indivíduo em liberdade absoluta) e o
ressurgimento de movimentos reacionários na Europa, EUA e Brasil nesse caso, o
televangelismo norte-latino-americano conservador, embrião das igrejas evangélicas
midiáticas modernas e o grupo católico TFP (Tradição, Família e Propriedade). No Brasil,
ainda, aumentou a destruição dos biomas (floresta amazônica, pantanal, cerrado, de
terras indígenas). Ocorria o genocídio de milhares de indígenas, as lutas camponesas por
reforma agrária emergiam. Foram assassinados lideranças sindicais, camponeses,
padres, freiras, em especial na Amazônia e nas zonas de avanço do capitalismo sem
freios e sem regulação social. Em resposta, organismos religiosos-civis importantes
foram criados em 1971, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e, em 1975, a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) órgãos ligados à CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil), da Igreja Católica. Por outro lado, em 1976, 1977 e 1980, são fundadas
as primeiras igrejas midiático-empresariais, a comunidade Evangélica Sara Nossa Terra,
a Igreja Universal do Reino de Deus e a Internacional da Graça de Deus.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
45
Entre 1999 e 2000, no segundo governo neoliberal de Fernando Henrique
Cardoso (PSDB), é filmado o documentário Santa Cruz. São os anos do Consenso de
Washington (época Reagan-Thatcher-Wojtyla), de privatizações selvagens, perda do
patrimônio público (Rede Ferroviária Federal, Vale do Rio Doce) e desmonte da rede de
proteção, seguridade e economia social, instituída pela Constituição Federal de 1988. A
pobreza e a fome se acentuaram. Foram realizadas campanhas como a Ação da
Cidadania contra a Fome, de Betinho, (1993-2000), germe das políticas sociais vindouras
nos governos de esquerda. Houve o impeachment do primeiro presidente eleito após a
Ditadura Militar (Collor de Mello, em 1992), a Guerra do Golfo (1990-1991), o desmonte
da União Soviética (1989-1990). Nessas décadas, a realidade virtual-maquínica e as
redes virtuais (ICQ e mIRC) surgiam. Com isso, consolidava-se o pós-fordismo, a
robotização das fábricas e a precarização do emprego. Por um lado, estavam em alta os
conflitos agrários (massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996) e a luta social;
por outro a primeira marcha nacional do Movimento dos Sem-Terra, em 1997.
Cresceram os ramos neopentecostais evangélicos com fortes repercussões midiático-
políticas. Entre 1992 e 1995, o emblemático líder da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), foi preso e sofreu processo por parte do Ministério blico Paulista por
estelionato, charlatanismo e curandeirismo, mas foi absolvido neste e noutra acusação
de instigar a violência contra cultos afro-brasileiros. Em 1995, aconteceu o chute na
Santa, quando Sérgio Von Helder
2
, ex-bispo iurdiano, desferiu pontapés em uma
imagem da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, em um programa da TV
Record
3
. Cabe referência aos massacres que anunciavam a dominação criminosa das
milícias: o da Chacina da Candelária, em 1993, quando 8 jovens foram assassinados na
calada da noite por PMs e o de Vigário Geral (1993). Neste último, um grupo de homens
encapuzados, a maioria policiais militares, armados com granadas, fuzis e
metralhadoras, entraram na favela carioca para vingar quatro PMs mortos. 21 pessoas
simples, homens, mulheres, trabalhadores, jovens estudantes, foram assassinadas. Uma
família de evangélicos, com oito pessoas, foi cruelmente chacinada. Dos 52
participantes, apenas 7 foram denunciados e responderam pelo crime.
2
Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/mais-de-20-anos-apos-chutar-santa-pastor-diz-
que-e-estupido-ao-falar-da-biblia Acesso em: 12 nov. 2021.
3
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/9/17/brasil/38.html Acesso em: 12 nov. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
46
Os contextos das duas obras de que trato são de intensa violência institucional e
social, perda de direitos, expansão de um capitalismo voraz, desregulado, privatizador,
sem controle público, sem que seus efeitos negativos sejam questionados e sem que as
riquezas geradas em seu regime sejam redistribuídas para as classes e setores
fragilizados socialmente. No intervalo entre as obras e delas aos dias que correm, mais
cresceram os incômodos com a religião e a sociedade, do que decresceram as ânsias de
compreensão. Nesse sentido, “a crítica da religião é a premissa de toda crítica” (Karl
Marx)
4
.
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
O casal Paulo e Nita Freire tiveram de se exilar, às pressas, em Santiago, no Chile,
após perseguição promovido pelas Forças Civis-Militares do Golpe de 1964. O livro
Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2018) anuncia uma nova filosofia da educação como
ato político, carrega vozes plurais, é nascente e foz de múltiplas influências intelectuais
e ações sócio-políticas nutridas em perspectivas socio-filosóficas, como as de John
Dewey, Anísio Teixeira, Karl Marx, Edmund Husserl, Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon,
Simone de Beauvoir, por um lado, e, por outro, as da militância cristã (católico-
evangélica) por justiça social, encarnadas na Teologia da Libertação e nas Comunidades
Eclesiais de Base
5
. Tamanha é a quantidade de edições, comentários, debates, análises,
teses e pesquisas que é muito difícil mapear tudo o que se escreveu sobre a seminal
reflexão paulofreriana. Professor de filosofia em Recife, o educador e filósofo brasileiro
escrevia suas obras à mão. Antes de redigi-las, conversava com todos em seu entorno
sobre suas ideias. Envolveu-se em campanhas de educação popular, cultivou laços com
pesquisadores, pensadores, sindicalistas, camponeses, artistas, sacerdotes e leigos
católicos e protestantes, operários, governos do Brasil e do mundo. Conheceu Rubem
4
Texto: Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm Acesso em: 12 nov. 2021.
5
Para driblar a censura militar, houve uma operação cuidadosa para trazer os originais ao Brasil. Eles
chegaram nas mãos do conselheiro da Suíça, Jean Zigler. Mas, a obra era lida aqui entre operários e
militantes políticos a partir de cópias datilografadas ou trazidos por freiras católicas que, ao chegarem
dos EUA, arrancavam as capas do livro Pedagogia do Oprimido e metiam-lhe outras com figuras religiosas
(FREIRE, 1997).
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
47
Alves, Richard Shaul e James Cone, expoentes da teologia libertação e da teologia negra
da libertação de origem evangélica. Nos originais, segue a estrutura:
Quadro 1 Manuscrito do Pedagogia do Oprimido (mantida a grafia original)
Itens
Síntese e Trechos transcritos
Epígrafe
“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-
se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam (p. 35).
Queridos amigos
Jacques e Maria
Edy
“Gostaria que vocês recebessem estes manuscritos de um livro que pode não
prestar, mas que encarna a profunda crença que tenho nos homens, como uma
simples homenagem a quem muito admiro e estimo” (p. 37).
Primeiras
palavras
Frutos de reflexão (exílio e experiências educacionais no Brasil (cursos de
capacitação). O medo da liberdade, a consciência crítica, falas de operários,
discussão de situações concretas. Crítica forte à sectarização de direita e de
esquerda. - “Ensaio que, provavelmente, irá provocar em alguns de seus possíveis
leitores, reações sectárias” (p. 39).
I Capítulo
Justificativa da Pedagogia do oprimido. Contradição opressores-oprimidos,
superação. Situação concreta de opressão e os oprimidos. “Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho os homens se libertam em comunhão” (p.
53).
II Capítulo
Crítica da educação bancária. “Os oprimidos, como casos individuais, são
patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá-los a ela, mudando-
lhes a mentalidade de homens ‘ineptos e preguiçosos’” (p. 145).
III Capítulo
Dialogicidade e educação problematizadora. Crítica da palavra como verbalismo e
da ação como puro ativismo. Crítica da dicotomia teoria e prática. - “Sendo
fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente
tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o
que é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos
dominados. [...] Porque é um ato de coragem, nunca de mêdo, o amor é
compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de
amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação” (p. 189).
IV Capítulo
Crítica da antidialogicidade e a dialogicidade, da manipulação e invasão cultural,
teoria da ação antidialógica e da dialógica. - É preciso que fique claro que, por isto
mesmo que estamos defendendo a praxis, a teoria do quefazer, não estamos
propondo nenhuma dicotonomia de que resultasse que êste quefazer se dividisse
em uma etapa de reflexão e outra, distante, de ação. Ação e reflexão, reflexão e
ação se dão simultaneamente” (p. 305).
Fonte: autoria própria, 2021, extraído de Freire (2018).
O que se inscreve no coração dessa obra é objeto de muitas interpretações, mas
proponho uma: produzir uma conversa crítica, que fomente práticas coletivo-
participativas democráticas que ampliem os horizontes da igualdade social no presente
vivido, superem a educação bancária, as dicotomias sociais (oprimido-opressor), a
sectarização, e produzam uma sociedade mais fraterna e socialmente mais justa. Esse
processo é efetivado junto com os oprimidos ou desenraizados em busca de
emancipação teórico-prática no sentido de que não há destino irremediável, realidade
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
48
imutável ou desigualdade social inextirpável. nesse livro uma filosofia irrigadora de
práticas e visões de mundo que deseja transformação política em uma chave
emancipadora profunda, ou revolucionária. Daí nasce a educação problematizadora.
Esse processo se ergue sobre as vivências das comunidades (trabalhadores,
camponeses, migrantes e grupos sociais fragilizados) junto com grupos de educadores
críticos oriundos das próprias realidades. Assim:
Nossas afirmações, neste ensaio, ainda que não lhes demos jamais caráter
dogmático, não são fruto de meros devaneios intelectuais nem resultados,
apenas, de leituras [...]. Estão sempre ancoradas em situações concretas.
Expressam reações de camponeses, de proletários e de homens de classe
média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho
educativo. Nossa intenção é continuar com estas observações para retificar
ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio
introdutório (FREIRE, 2018, p. 43, destaque meu).
A educação popular crítica deixou de ser prioridade no projeto das esquerdas
institucionais quando estiveram no governo (2002-2015). Nesse momento, também não
o é, quando não sabem ao certo qual projeto propõe além do surrado receituário de
mitigação do neoliberalismo e de suas consequências sociais, culturais, políticas e
intersubjetivas. Sobrevivem aqui e ali alguns projetos de educação popular, mantidos a
duras penas. Pedagogia do Oprimido contrapõe-se à educação tradicional ou bancária,
em que o professor deposita conhecimento no aluno. Depois, nos exames, essa figura-
ideal, saca o valor depositado e verifica se o conteúdo foi assimilado. O processo ocorre
de forma acrítica e seccionado das vivências dos alunos e dos próprios professores, não
é liberador-emancipador, mas ajustador-conservador. A essa alienadora visão e prática,
Freire (2018) propõe a educação que problematiza e que chama atenção para os
conflitos sociais, os conflitos de classe. Por isso o livro anuncia que a pedagogia é
política, não é procedimento de alfabetização ou técnica que se aplica
independentemente de uma visão crítica de mundo. Essa visão nasce da dialogicidade
entre educando e educador nos espaços sociais mais diversos, não apenas na escola,
mas nela e além. A força do livro retorna em tempos de ascensão da extrema-direita
cristã-libertária que governa o Brasil desde 2018, ela mesma um sintoma patológico de
mal-estar e de desigualdades profundas (GHIRALDELLI, 2021; 2021 b). Por outro lado,
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
49
Ghiraldelli (2012) observa que as expressões oprimido, educação bancária, entre outras,
foram banalizadas por uma militância política engessadora. A militância de parte das
esquerdas institucionais-burocráticas, levou-as na direção contrária do ideal
paulofreiriano com a ideia de que as massas deveriam ser libertas, messianicamente
redimidas no caudal de líderes. Ghiraldelli (2012) propõe uma redescrição, baseada em
falas de Freire: o oprimido como desenraizado, arrancado de sua terra, origem, cultura,
posses e posto em situação degradante, sem que seus saberes e culturas sejam
valorizados. Não se produziram mediações - pautadas pela educação problematizadora
- entre o universo sociocultural-existencial dos desenraizados e o universo sociocultural-
existencial hegemônico. Fechamento e alienação são o resultado. No contrapé da anti-
dialogicidade, o filósofo pernambucano desferiu críticas à sectarização de direita e de
esquerda, inscrita numa ordem mitológica, ou seja, a produção de comportamentos
desconectados do pluralismo de ideias, da vivacidade da crítica e da autocrítica
produzidas na vivência coletiva e cotidiana das/com as comunidades e grupos
desenraizados ou oprimidos:
[...] fechando-se em um “círculo de segurança”, do qual não podem sair,
estabelecem ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para
construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos
homens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar êste futuro,
que ainda não está dado, como se fôsse destino, como se devesse ser
recebido pelos homens e não criado por êles. A sectarização, em ambos os
casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando-se do tempo de cujo
saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo [...].
Enquanto o sectário de direita, fechando-se em ‘sua’ verdade, não faz mais
do que o que lhe é próprio, o homem de esquerda que se sectariza-se
também se encerra é a negação de si mesmo. Um, na posição que lhe é
própria; o outro, na que o nega, ambos girando em tôrno de ‘sua’ verdade,
sentem-se abalados na sua segurança se alguém a discute. Daí que lhes seja
necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade.
Sofrem ambos da falta de dúvida (FREIRE, 2018, p. 40, destaque meu).
Talvez os olhos de Freire estivessem voltados para a direita extremista conhecida
(golpes civis-militares do Brasil e do Chile, em 1964 e 1973) e para a esquerda sem
apreço pela liberdade (stalinismo, leninismo, maoísmo, castrismo). As execuções
sumárias sem julgamento legal no início da Revolução Cubana (1959-1960) e a posterior
perseguição aos homossexuais, as chacinas de milhares de pessoas promovidas por Pol-
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
50
Pot, líder do Khmer Vermelho na guerra do Camboja (1975) ou a Revolução Cultural
Chinesa (1966), que assassinou milhares de pessoas, entre outros exemplos, mostram
um rosto monstruoso do comportamento sectário. Assim, ao criar a figura típico-ideal
do homem e mulher engajados na emancipação coletiva, ou revolucionária, Freire
(2018, p. 57) afirma: “[...] não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não
teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com êle, de que resulta o crescente
saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador
dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com êles lutar (sic)”
(grifos meus). As mediações conduzidas pela dialogicidade e criticidade em chave
coletiva, transfigura a distinção aluno-professor, desfaz a dicotomia entre teoria e
prática e se torna motor de transformação social. Que relações entre essas realidades
e as imagens de evangélicos pobres criando sua história em uma comunidade sofrida,
sem infraestrutura social, é a pergunta dirigida a nós no item a seguir.
SANTA CRUZ
Jamil Alves da Silva, metalúrgico aposentado, tornado pastor pentecostal, funda
uma igreja. Ele faz suas locomoções de bicicleta e inaugura na carente comunidade, a
Casa de oração Jesus é o General. Nas cenas, se vê uma imensa violência social exercida
sobre essa gente, os oprimidos ou desenraizados na linguagem paulofreriana,
moradores em uma ocupação clandestina. Eis a estrutura geral:
Quadro 2 Santa Cruz - Documentário
Partes principais
Sinopse
1- Santa Cruz
Um casal de idosos, ele em silêncio, e ela, Maria Noêmia, canta, titulada
como missionária. Rua em situação miserável, barracos, gente. Narrador
Marcos Corrêa diz: “longe da ordem, da lei e da proteção do Estado” (2m
45s). Construção do pequeno templo, fiéis, entorno, pastor, ajudantes,
ritual, expansão, laços sociais.
2- A história de Zezé
Zezé, fiel da igreja pentecostal “Casa de Oração Jesus é o General”, narra
suas agruras e dores. Mãe, esposa, negra, tinha pensado em se separar,
mas, dizia, para onde ir?
3- Os primeiros 3 meses
A história de Veronilsoin
Homem negro, jovem, trabalhador braçal, iletrado, reivindica ao pastor, o
aprendizado das letras. Aula de alfabetização no pequeno templo:
crianças, adultos, cadernos, lápis, quadro e giz, palavras simples
soletradas, bíblia. Mulheres fiéis, Noêmia, Rizoneide, Zezé falam sobre seu
sofrimento, de Deus, das misérias, da força religiosa.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
51
4- A missionária -
O Espírito Santo se
manifesta
História de D. Noêmia, a curadora ou xamã pentecostal. O culto
pentecostal, carregado de emoção, manifestações corporais e linguísticas
de êxtase religioso, a magia pentecostal, profetismo pentecostal.
5- Carolina, estudante -
Os 3 meses seguintes
Fiéis, reza do salmo 91, sucessão de cenas com mulheres evangélicas,
planos de expansão da igreja.
7- A história de Carmen
Carmen, revoltada com médico, orgulha-se de não querer mais recorrer a
eles. Magia pentecostal: cura e milagres.
8- Jardim Espírito Santo
O pastor tem uma revelação, dois anjos mostram onde Deus quer um novo
templo, uma filial da igreja, em outra área de ocupação clandestina.
9- A história de
Rizoneide
Paraibana, afro-índia, Rizoneide conta sua história. Rezas do salmo 91.
Aparece na cena, de relance, um assassinato em frente à igreja.
10- Os último 3 meses e
Dia do Batismo
Finalização do templo e expansão para outras áreas. Reorganização da
vida social Pintura da fachada do templo COJÉOG Casa de Oração Jesus
é o General. Ritual de batismo nas águas. Missão em vagões de trem.
Fonte: autoria própria, 2021.
Desde seu lançamento, o documentário foi objeto de análises, textos,
exposições, debates e conversas. Ele é frequentemente citado entre estudiosos com
algum grau de afinidade com o mundo evangélico pentecostal (DA COSTA; COZZER,
2020). No filme-documentário, surge o cotidiano de uma comunidade pentecostal no
meio do processo de avanço neoliberal, desmonte das políticas públicas saneameno,
educação, saúde, emprego e transferência de renda e riqueza, que segue em curso.
Miséria, desemprego, trabalho informal, analfabetismo, religiosidade emocional-
racional surgem nas cenas. Os atores são os próprios moradores, pobres, negros ou
pardos, trabalhadores braçais, imensamente sofridos, mas esperançosos. Homens e
mulheres dignos que lutam duramente para estabilizar suas famílias, subjetividades e
laços sociais. Do documentário, destacarei cenas, a elas atribuirei um número como
procedimento didático e explorarei o contexto sob uma metodologia crítico-social.
Cena 01. Casal de idosos aposentados, Maria Noêmia, missionária evangélica, e
seu marido, à porta de seu barraco precário. Ela, sem os dentes superiores, canta:
“Nesse mundo tem tristeza e muita tribulação, meu amigo, aceita Cristo, é a salvação”
(SANTA CRUZ, 2000, 1m.40s.). Corta. Aparece o templo em construção. Adiante, ouve-
se a dona de um boneto pouco frequentado. A abstinência de jogos, bebida e fumo dos
convertidos trouxe queda nas vendas de alguns produtos. “Tirando o problema de se
vender o que não se deve” [referência velada ao tráfico de drogas], diz ela, “é um bom
lugar de se viver” (SANTA CRUZ, 2000, 3m.41s.). Um bom lugar: sem saneamento básico,
lama, pobreza, miséria, fome, mas é bom, afinal, por quais motivos? Deixo em aberto
para futuras conversas. No documentário, mais destaque é dado ao Antigo do que ao
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
52
Novo Testamento. O Salmo 91 é falado o tempo todo. Há uma breve menção ao Salmo
23 e ao Evangelho de Lucas. Na tradução Almeida, o Salmo traz algumas chaves de
compreensão:
Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente
descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha
fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e
da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas
asas te confiarás; a sua verdade será o teu escudo e broquel. Não terás medo
do terror de noite nem da seta que voa de dia, nem da peste que anda na
escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia. Mil cairão ao teu
lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti. Somente com os teus
olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios. Porque tu, ó Senhor,
és o meu refúgio. No Altíssimo fizeste a tua habitação. Nenhum mal te
sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos
dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.
Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em
pedra. Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.
Porquanto tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei em
retiro alto, porque conheceu o meu nome. Ele me invocará, e eu lhe
responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o glorificarei.
Fartá-lo-ei com longura de dias, e lhe mostrarei a minha salvação
6
(destaque
meus).
Rezado no documentário para salvação da pobreza, desemprego, perigo,
doença, é ponte para a alfabetização, sua letra é apropriada em sentido mágico-protetor
e reforça o sentimento de pertença a uma comunidade eleita, divinamente protegida
de tudo (desemprego, violência, doença). São os santos, a seita que deve ser expandida,
pois seria a “vontade de Deus”. testemunhos apaixonados de retidão: num culto,
uma fiel testemunha emocionada que mandou desligar um gato (ligação ilegal de luz
elétrica), apesar das imensas dificuldades (sem dinheiro) com a Light, empresa surgida
com a privatização selvagem dos serviços públicos e que tem problemas frequentes ao
prestar serviços.
Na cena 02, a história de Zezé. Empregada doméstica negra, sem dentes
superiores e alguns inferiores, casada, mãe de três filhos um deles com severa
deficiência, reclamou do marido, ele bebia muito, e da falta de apoio dos familiares.
Pensou em separar-se. Ir para onde, se perguntou e disse, “isso foi o motivo de eu me
6
Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/91 Acesso em: 12 nov. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
53
aproximar e me aproximando da igreja” (SANTA CRUZ, 2000, 6m.35s.). Subtende-se aí,
a cruel violência doméstica e de gênero. Conheceu a igreja, o marido se converteu,
apaziguaram-se os conflitos. Segue uma sequência: fiéis e pastor rezando o salmo 91.
Em seguida, na cena 03, uma aula noturna no templo. Adultos e crianças
soletrando. Cadernos, lápis, quadro. Diz o pastor Jamil: “essa aula [...] nós criamos
através do Veronilson [...] porque ele está com dificuldades [...] no trabalho dele,
precisava de aprender um pouco e colocamos. Vê que tem muitas pessoas ali que estão
vindo é, justamente para dar um apoio a ele, pra ele nesse momento” (SANTA CRUZ,
2000, 7m.59s.-8m.06 s.). Seguem-se cenas das rotinas dos moradores.
Na cena 04, o pastor apresenta a missionaria, “a nossa irmã Maria Noêmia, ela é
a missionária e ela é enviada por Deus para fazer a obra, e como ela está aqui hoje, daqui
um tempo ela pode estar em outra cidade, abrindo obra [...] o crescimento da obra”
(SANTA CRUZ, 2000, 10m.50s.). Não é o pastor que a envia, mas Deus... [ironia]. A
condição de aposentada com proventos fixos, facilita a migração voluntária. Contrasto
essa situação com a crítica de Michel Foucault (2014) ao poder pastoral. D. Noêmia e
seu marido, sempre em silêncio, estão na frente do humilde barraco. Cercas de pau,
terra batida, sandálias de dedo, saia comprida, um pouco mais colorida. Vida sofrida,
em vias de desenvolver dependência alcoólica, se diz convertida e se oferece em missão
de curar:
eu fico aqui né, todos dia estou aqui né, é hora que as pessoa vêm me
pedindo oração e eu oro, às vez é emprego, desempregado, pede para
orar, pra Jesus abri as portas (sic) [...] a pessoa está enfermo e eu oro para
Deus cura as pessoa. Nós trabalhamos de graça pra Jesus né, porque ele deu
pra nós esse dom de graça (sic) (SANTA CRUZ, 2000, 11m.25s.-11m.31 s.)
A sensação de poder é vivida como dom, missão e posta a serviço da própria
multiplicação do modus vivendi pentecostal. Na cena seguinte, D. Noêmia diz, “Ô glória,
aleluia Jesus, amém”. O pastor, conduz a equipe de filmagem, mostra-se uma cena da
oração de cura. A missionária afirma com alegria e orgulho: “As pessoas vêm uma com
enfermidade, eu oro e eles saem dizendo que curados” (SANTA CRUZ, 2000.
11m.54-58s.). As mãos da missionária repousam sobre uma mulher, uma delas no
coração e outra sobre os ombros: “manto de mistério”, ela reza com emoção e, em
seguida, ouvem-se sons estranhos, dançantes, harmoniosas na melodia, vogais
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
54
prolongadas, consoantes guturais profundas, repetidas ou estaladas entre a língua e o
céu da boca palato ou abóbada palatina, numa bela imagem literário-científica, sílabas
sem sintaxe ou semântica, não formam frases racionais. Saem da boca desdentada com
fluidez, entrecortadas por frases em português. É a glossolalia, ou oração em línguas,
língua dos anjos no dizer mítico-simbólico da religião vivida, um dos símbolos do
pentecostalismo evangélico e católico. Ocorre aí, mas também em todas as cenas, uma
mediação simbólica complexa entre a realidade imediata do corpo, da necessidade
físico-emocional, da desigualdade social, da subjetividade e das condições de vida,
mente e razão. Trabalho, missão e vocação se confundem e são doados à igreja.
Ressalto mais três cenas. Na cena 05, Irmã Zezé, sentada, atrás de si, a rua de
terra. Bíblia no colo:
Quando eu preocupada com alguma coisa, quando alguma coisa, quero
alguma coisa, olho meu armário, está vazio ou então quero uma fralda, meu
filho está sem fralda, eu olho a bundinha dele, tá toda assadinha, né? Não
tenho fralda pro meu filho, o que vou fazer? eu geralmente eu corro muito
nesse salmo [salmo 91]. Quando você estiver assim com algum problema
também de angústia de aflição, estiver se sentindo atormentado [...] (SANTA
CRUZ, 2000, 14m.0s-15m, destaque meu).
Provavelmente, ela se refere ao filho com severa deficiência, obrigado a usar
fraldas. A Irmã Zezé responde com um sorriso, à violência inaudita perpetrada: ausência
de políticas sociais e amparo. Ela busca na relação religioso-mágica, uma forma de
sobreviver melhor. Paulo Freire (2018) falaria de uma consciência imediata a ser
problematizada por uma educação não-bancária, mas sem a ideia de depositar ou
inculcar na cabeça dos outros (anti-dialogicidade), a consciência crítica, que não pode
ser senão construída em conversa coletiva, a partir da problematização do que se vive
de imediato e com os próprios desenraizados: por que falta a fralda
7
?
Na cena seguinte, a efervescência de um culto pentecostal. O pequeno templo e
os sticos bancos de madeira explodem com aleluias, cantos, glossolalia. Jovens,
homens, mulheres, choro, tudo junto, misturado, ritualizado. Chama, atenção, no
7
É possível lembrar aqui um fato correlato: o Governo Bolsonaro, governo anti-mulher, vetou em outubro
de 2021, um projeto no Congresso que previa uma política de distribuição combate à pobreza menstrual.
O projeto previa verbas, ação em escolas públicas para mulheres de baixa renda, dentre outros aspectos
importantes. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2021/10/07/veto-de-bolsonaro-a-
distribuicao-de-absorventes-expoe-pobreza-menstrual-entenda-o-conceito-e-o-que-esta-em-jogo.ghtml
Acesso em: 09 nov. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
55
entanto, o profetismo pentecostal. Uma canção ao fundo (“tu me comprastes sobre a
cruz”) e o balbucio pentecostal coletivo. A câmara transita o foco: sai da assembleia e,
close-up em uma mulher que acabou de se levantar, cabelos grisalhos, óculos, negra,
meia-idade, olhos fechados, voz alta, gritando: “Não se preocupe mais! Sou eu que
estou contigo! [trecho em glossolalia] eis que a minha graça e a minha paz vos basta”
(sic) [trecho em glossolalia]. Durante a profecia, ela bate o e ao terminar, bate as
palmas com força uma vez e assenta-se junto aos demais. (SANTA CRUZ, 2000, p.
18m.55s.-17m.12s.). A voz da profecia, é a da divindade que age como protetora e usa
corpo/voz da fiel para dar a ver e ouvir, sua presença viva (incorporação divina).
Na Cena 07, Irmã Carmen senta-se no banco do pequeno templo e afirma:
Para ser cristã, tem que pagar um preço muito caro e tem muita gente
disposta a não pagar. A casa do Senhor está cheia de crentes. Mas cristãos,
você pode contar nos dedos... porque nós temos que abrir mão do mundo,
das vaidades, abrir mão do mundo lá fora [...] nós somos luz do mundo [...]
nós temos que mostrar para o povo fora que nós somos essenciais,
porque nós somos filhos do rei. (SANTA CRUZ, 2000, 27m.) (destaque meu)
Carmen diz ter tido um esporão no e alega ter sido desenganada pelos
médicos. Eles disseram não ter cura. Mas, ela não disse se esses médicos do mundo
falaram sobre tratamento ou alívio: “E então eu falei para o homem realmente não tem
cura, mas para o Deus que eu sirvo, estou curada, porque tudo isso é para honra e
glória do meu Senhor, para ser exaltado e glorificado” (SANTA CRUZ, 2000, 27m.55s.). E
afirma com convicção: “eu não pretendo voltar ao médico”. É amparada por uma outra
fiel mais jovem, manca e anda com dificuldade (SANTA CRUZ, 2000, 28m.10s.-
28m.41s./29m.40s.-29m.43s.). Essa irmã afirma que sairia curada quando chegar a hora
de seu batismo nas águas. Um tremendo orgulho da ignorância, formação defensiva,
narcisismo individualista-reacionário, o que mais poderia explicar, são questões abertas.
Sentir orgulho, ira e sentimentos em chave psicopolítica não é o problema (SLOTERDIJK,
2012). É problemática, no entanto, a forma como emergem os efeitos não-intencionais
dessa organização psicopolítica e sem o crivo da crítica social e autocrítica coletiva e
democrática. A reprodução orgulhosa desse comportamento anti-mundo, pode ajudar
a entender um dado: os setores religiosos que mais questionam, manifestam
dificuldades ou rejeitam o uso de máscaras e vacinas desde a eclosão da COVID-19, são
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
56
os reacionários cristãos, o mundo evangélico. Claro, há exceções, mas, esse universo é
um dos mais afetados pelo negacionismo científico
8
. também abordagens críticas e
compreensivas oriundas de analistas acadêmico-científicos, alguns deles próximos a
esse mundo religioso (ALENCAR, 2018; CUNHA, 2021). No média-metragem, quando o
filho de Rizoneide, dona-de-casa migrante (paraibana), teve de ser internado num
hospital público para tratar de uma pneumonia. Não mais adiantavam as glossolalias.
Aparece, apenas uma vez, a estrutura de direitos sociais coletivos.
No documentário, se veem cenas da humilde coleta de dízimo e ofertas, dados
com extrema fidelidade, uma obrigação moral dom e contra-dom, numa lógica
antropológica para o sustento da comunidade. Chamam atenção no documentário a
expansão para outras zonas de ocupação clandestina (o pastor planeja uma filial) e o
orgulho da Irmã Zezé ao apontar as ruas e mostrar as casas das(os) convertidas(os) e
como isso trouxe maior valorização, ordem e especulação (SANTA CRUZ, 2000, 44m.-
45m.). Os terrenos e casas vendidos num preço bem baixo passaram a ser muito mais...
Tráfico de drogas e assassinatos estão longe, em entrelinhas. Após um culto
noturno, aparece ao longe um corpo coberto por um tecido, uma vela acesa ao lado,
consternação das pessoas, burburinho. Um jovem foi assassinado em frente à igreja
(SANTA CRUZ, 2000, 38m.36s.). Em seguida, no pequeno templo, as janelas de madeira
improvisada estão abertas e, sob luz amarela bruxuleante e pervadido pelo som do
coaxar de sapos, o pastor Jamil reza o Salmo 23: “Ainda que andes pelo vale da sombra
da morte...”. Corto o resto da frase. Não se estava ainda sob o domínio mortal das
milicias e de traficantes, em associação com os poderes estatais de segurança. Muito
dessa gente se diz convertida, assume identidade evangélica e proíbe manifestações
afro-brasileiras em territórios dominados e conflagrados por disputas violentas (CUNHA,
2014). Vendem-se serviços, como segurança, que deveria ser pública, e a partir da
extorsão, explora-se gás, Internet e mercado imobiliário, tudo ilegal, mas tolerado pelo
Estado. Os que se opõem, são amaçados de morte ou assassinados, precisam se mudar,
ou ficam calados por medo ou fazem parte dessas engrenagens. Retorno ao final de
8
É preciso nomear as minorias, olhar para elas e suas lutas por justiça social dentro do mundo evangélico,
por exemplo, coletivos de mulheres evangélicas no Movimento dos Sem-Terra. Disponível em:
https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/quando-a-fe-encontra-a-luta-as-vozes-das-mulheres-
evangelicas-do-mst-parte-4/ Acesso em: 12 nov. 2021. Outro exemplo, a Rede de Mulheres Negras
Evangélicas.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
57
Santa Cruz, o batismo nas águas. Homens e mulheres, em sua maioria absoluta, vestem-
se de batas brancas e descem a um riacho. Emoção, choro. São mergulhadas pelo pastor
e ajudantes. A Irmã Carmen desce ao rio com dificuldade de andar, é batizada, pula
arrebatada dentro da água amparada, sai confiante, acerta o passo cambeta com que
vinha andando desde as cenas anteriores, pisa no chão com força. Na cena final, os
evangélicos pregam e oram em um vagão de trem. À frente deles, a Irmã Carmen.
POR CIMA, PARALELAS; EMBAIXO, MALHA APERTADA
No Brasil, os obstáculos à cultura letrada são muitos: o analfabetismo funcional,
o analfabetismo cultural, o analfabetismo político. Ainda assim, Pedagogia do Oprimido
espalhou-se, tem sido lido e relido, irrigado concepções e práticas de transformação
social, tem criado imagens de mundo mais generosas e radicais (ir à raiz dos problemas
sociais). Por outro lado, no cinema, a sétima-arte, o filme, e especificamente, o
documentário, exerce um papel fundamental como instrumento de compreensão e
imaginação. No livro, um sem-número de rostos, intelectos, afetos, ideias e vidas
dialogaram com Paulo Freire. O filósofo pernambucano costumava conversar com
muitas pessoas oriundas de universos socioculturais bem distintos, doutores e
operários, religiosos católicos e protestantes, camponeses e classe média, e, ao cabo,
escrevia.
No documentário, são eles os retratados, ou uma parte deles. Eles eram algo em
torno de 2% nos anos 1960. Nos anos 2010, último Censo Nacional, eram 22%, e nas
mais recentes projeções de 2019, são mais de 35% da população brasileira. Divididos
entre muitas famílias espirituais-religiosas históricas de migração e de missão, sem-
denominação, pentecostais e neopentecostais, concentram-se, entretanto, nas duas
últimas, mais de 50% desse imenso contingente de evangélicos espraiados Brasil. Eles
ocupam espaços políticos, sociais, econômicos, culturais e públicos em escala nacional,
regional e municipal. Por outro lado, os desdobramentos da expansão pentecostal e
neopentecostal, são infindos e têm sido analisados extensamente. Uma riqueza
metodológica e hermenêutica se faz presente nos muitos de estudos sobre o mundo
evangélico e suas pluralidades e não-pluralidade: dos métodos etnográficos e empíricos
variados (clássicos, pós-modernos, virtuais) aos sociológicos e históricos estruturais; da
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
58
geografia às ciências cognitivas, da psicologia à ciência da religião. Ora exaltam-se as
diversidade e utopias igualitárias, aumentadas com lentes românticas, ora detratam-se
as profundas raízes reacionárias, autoritárias e sectárias com cores pessimistas. Ora
enfatizam-se as principais lideranças que com suas vozes e presenças em meios
midiáticos, consumistas, classemedianos urbanos, financeiros e políticos abafam outras
vozes periféricas, ora a ênfase é dada aos anônimos evangélicos em organização coletiva
com louvores coreografados, ou nos cultos dentro de becos violentos e miseráveis,
garagens e quintais, ruas esburacadas. Análises romântico-fenomenológicas, às vezes
oriundas de teólogos, alguns pentecostais, e cientistas da religião, dificultam a
compreensão do que isso significa em perspectivas mais críticos-sociais e não menos
importantes.
Salta à vista a descontinuidade desse arcabouço teórico quando comparado às
obras Pedagogia do Oprimido e Ação cultural para liberdade (FREIRE, 2018; 1981) e com
a conjuntura político-religiosa contemporânea regada pela combinação entre as
concepções de cristandade católica, teologia da prosperidade pentecostal e
predestinação calvinista (MELO E SILVA JR., 2021) e a ascensão de doutrinas neoliberais
combinadas com os novos estágios do capitalismo financeiro-midiático (GHIRALDELLI,
2021). Numa visão romântica, haveria e curso uma verdadeira utopia religiosa, pois
engendraria, de alguma forma, bem-estar para populações desassistidas de políticas
públicas, deserdadas da riqueza nacional concentrada e desigualmente distribuída.
Mas, a romantização advém da não caracterização qualitativo-crítica do que seja
alfabetização, saúde e comportamentos gerados por essa comunidade crente para dar
respostas a uma vida de extrema penúria, ao desespero e à esperança de sobreviver ao
caos socioeconômicas e existencial. Em continuidade, retomo o termo seita, criticado
por supostamente apresentar uma caricatura ruim de movimentos religiosos em geral,
e dos evangélicos em particular. Sua semântica social pode ser relida. Mudo, então, o
que entendo por caricatura e tipo-ideal, e os recoloco como instrumentos para melhor
compreender complexas realidades. A caricatura como acentuação de traços reais para
frisar contornos ou silhuetas de algo, alguém ou situação, pode ter como resultado a
sátira, o deboche ou a poderosa imagem desconcertante, provocadora de reflexões. É
esta última a que me interessa, e dou esse passo metodológico, cujas raízes weberianas
ressalto. Não estou sozinho na empreitada, mas tomo assento sobre os ombros de
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
59
gigantes, Max Weber (2002) e Ernest Troeltsch (1987). O segundo passo metodológico
segue: sair do conceito em si evangélico, seita, oprimido e os mais para aquilo que
ele pretende apontar, o comportamento ou prática. Os tipos-ideais não são ontologias,
mas instrumentos para entender realidades fugidias, multidimensionais e cheias de
infinitos possíveis pontos de conexão e desconexão. Dentro do vasto universo do real,
elegem-se algumas ideias, exploram-se se conexões entre elas, analisa-se se essa
afinidade eletiva é forte ou fraca com base em indícios empírico-históricos e concretos
(tipo empírico) e se constrói um tipo-ideal, que sempre será provisório (WEBER, 2016).
O tipo ideal-abstrato não coincide com o tipo empírico-concreto, embora possa ocorrer
a coincidência. Dos muitos relevos, ressalto a seguinte silhueta típico-ideal do mundo
evangélico hegemônico na contemporaneidade: reacionária, intolerante, moralista ao
extremo, em parte libertária à direita (libertarian), em parte pastoril e dócil servidora.
Nessa face, estampa-se o orgulho da ignorância, ostentado como marca de eleição
(povo santo, escolhido), rigidez de concepção moral, rebeldia juvenil-hormonal e
individual contra leis e normas julgadas ímpias, iníquas ou injustas (antivacina) e
seguimento inconteste de pastores e líderes midiáticos evangélicos.
Na contraface minoritária, vemos o oposto dessas características, estudadas de
muitas formas, com muitos métodos e longamente, mas são exceção, sem poder de
fogo financeiro, político e midiático (NOVAES, 1985). A maior parte do crescimento
evangélico e seu poderio no espaço público provém do motor pentecostal e
neopentecostal e se espraia por toda política e educação brasileiras e, por sua vez, entra
em interação choque, combate, assimilação e concorrência com as matrizes
religiosas católica, afro-brasileira e indígena, por um lado, e as matrizes autoritárias,
conservadoras e libertárias oriundas da direita política e do neoliberalismo, por outro.
Na educação pública fundamental, por exemplo, cresce o contingente de
professoras evangélicas e se agigantam as crises educacionais, fruto de crises sociais e
econômicas. Como essas professoras leem o mundo e levam as crianças a lerem o
mundo? Como fazem para aplicar legislações federais que preconizam, por exemplo, o
ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena com seus personagens,
os orixás (Exu), os encantados, Tupã (Tupi-Guarani), que essas vertentes pentecostais
enxergam como o Diabo? A leitura literal-mágica aplicada à Bíblia - uma biblioteca
plural, vasta, metáfora pura, cheia de gêneros textuais, poesia erótica, cantos, reflexões
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
60
filosóficas, poéticas, morais, fatos e processos históricos complexos, questões
profundas de justiça social -, é ruim e perpetua uma educação bancária, piorada pelo
literalismo religioso. Uma leitura do Pedagogia do Oprimido implica na crítica da
qualidade da alfabetização social que o média-metragem apresenta.
André Corten (1996), recoloca questões que vieram à baila a partir de um
poderoso conjunto de fatores que vai da construção de bancadas religiosas na
Assembleia Nacional Constituinte (1986-1988) e uma frente parlamentar evangélica
nacional (2003) à ininterrupta ascensão midiática e política de igrejas e líderes
evangélicos pentecostais e neopentecostais. Corten (1996) fala das múltiplas faces do
pentecostalismo, utopia de igualdade, de amor e emoção, por um lado, mas, por outro,
arrogância e autoritarismo. Com isso, ele corrói o pedestal das categorias políticas. Amor
e igualdade entre os eleitos e convertidos... aos que não o são, não, ou se dobram à
evangelização, ou são combatidos, pois são agentes do mundo ou do diabo, a mesma
coisa para esse discurso: “Sabemos que somos de Deus e que todo o mundo está no
maligno”, uma famosa expressão bíblia sempre citada (BÍBLIA, N.T., I Carta de João, 5,
19). Ou seja, a seita é a antipolítica dos pobres (CORTEN 1996). Quanto à emoção essa
talvez seja similar, mas em chave trocada, amor para e entre os eleitos, desprezo ou
piedade aos não-conversos. A reprodução desse movimento religioso no espaço
público, é instrumentalizada por grandes igrejas-empresas e transformada em ação
junto ao Estado e sociedade. Os governos, em geral, desde a redemocratização de 1985,
foram seus aliados. Os de esquerda (Lula, Dilma, do PT) trouxeram incômodos
pactuantes para dentro da coalização política. Em troca do apoio eleitoral, aliaram-se a
grupos e deres como o Pastor Malafaia, Bispo Macedo, Apóstolo Valdomiro Santiago,
R. R. Soares e demais para angariar votos nas eleições e, em troca, barganhar concessões
de rádio e TV, verbas para comunidades religiosas terapêuticas dentre outras. Com isso,
criou-se o mito de que “não se vence eleição sem apoio evangélico”, especificamente,
os ligados aos grupos que são, de certa forma, desdobramento do fogo pentecostal.
Para os governos de esquerda (2002-2015), isso significou paralisia ou dificuldade de
implantar pautas históricas descriminalização do aborto, política antidrogas não-
punitivista, reforma agrária, casamento homoafetivo, reforma tributária progressiva,
auditoria da dívida, dentre outras. Todavia, ressalto que esse processo, eleitoral e
representativo, é diferente daquele que, consentido e pactuado pelo Estado
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
61
Republicano, permitiu a presença das igrejas cristãs (católica e evangélicas) nas áreas de
educação, saúde, assistência social. (MONTERO, 2009). E acrescento, mas também, a
dos espíritas e, em grau muito menor, a dos afro-brasileiros.
Numa leitura weberiana, Santa Cruz apresenta o sectarismo orgulhoso na chave
ascética da rejeição e fuga do mundo. Busca-se com paixão, um comportamento
disciplinado: da subjetividade (palavras e expressões), às roupas formais (cores pouco
coloridas, cinza, preta, marrom, creme, paletó e gravata, para homens, saias e meia-
longas para mulheres). Se uma identidade moderna, exclusivista, centrada no
indivíduo e sua relação pessoal com Deus e com a comunidade dos eleitos (seita),
racional por um lado (alfabetização, construção do templo, divisão de tarefas do
trabalho religioso), mas, por outro, cheia de concepções mágico-curativas-emocionais
oriundas de heranças católico-afro-indígenas: incorporações de Deus, sacudimentos e
danças, choros, orações de cura, transe e êxtase (glossolalia). Parece um desencontro e
um reencontro com nossas matrizes socioculturais, uma mistura de temporalidades
distintas, ou, para trazer à nossa conversa, um seminal texto de Pierre Sanchis (1997), a
presença dos vetores pré-moderno, moderno e pós-moderno.
Muitos insistem nas diferenças entre os pentecostais autônomos e periféricos,
como os que surgiram no documentário, e os neopentecostais midiáticos e políticos. Se
diferenças, também continuidades. Contrasto a realidade da pequena
comunidade do templo Jesus é o General com a postura de igrejas evangélicas midiático-
empresariais, como algumas Assembleias de Deus (as lideradas pelo pastor Malafaia e
pelo deputado-pastor Marco Feliciano), Igreja Mundial do Poder de Deus, IURD, dentre
outras, devedoras de milhões de reais ao fisco brasileiro
9
, embora os líderes cavalguem
fortunas. São igrejas hegemônicas e se apresentam como porta-vozes do mundo
evangélico como um todo, o que fragiliza as dissidências e as vozes críticas.
9
As igrejas não pagam impostos, mas quando atuam como se fossem empresas ou quando deixam de
recolher direitos de seus funcionários contratados, como FGTS e INSS, são multadas e passam a dever ao
fisco. Um grupo de 16 entidades religiosas evangélicas em sua maioria deve R$ 1,6 bilhão em impostos,
segundo levantamento da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). O volume de débitos
representa 81% de todas as dívidas de 9.230 instituições evangélicas, católicas, espíritas e islâmicas
devedoras em todo o país. A maioria é aliada do Governo Bolsonaro. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/28/lista-dividas-impostos-igrejas-
concentracao-80-pfgn-receita-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola Acesso em: 12 nov. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
62
O trabalho gratuito que às vezes se tende a ver com bons olhos no documentário,
se de um lado é doado, por outro, gera um efeito social não-intencional se visto de cima
e em termos estruturais, a formidável acumulação de capital (financeiro e social) para
as igrejas e seus pastores. O dízimo e as ofertas no contexto do discurso da
prosperidade, são colhidos de todas as formas, em cash, por aplicativos eletrônicos e
máquinas de cartão (crédito/débito) e torna algumas igrejas evangélicas, poderosas
máquinas financeiras, midiáticas e doadora de votos. Elas não prestam contas públicas
desse dinheiro e sua movimentação, o controle interno dos fiéis é frágil, não-autônomo
e dependente da figura do pastor ou bispo. Isso completa um cenário que interfere
negativamente, por exemplo, na laicidade do Estado.
As distinções são necessárias, mas não podem seccionar a realidade de forma
inconsequente, como se fossem partes alheias e não-comunicantes entre si. Linhas
gerais incômodas atravessam esses campos. De um desdobramento ao outro, o
sentimento de seita se transforma. O lema “nos convertemos, somos eleitos e salvos
por Deus, andamos na retidão, batemos em retirada do mundo vil e corrupto” se
transforma em “Nós, os eleitos, fomos escolhidos/ordenados por Deus para governar o
Estado e a sociedade e salvá-los da do mal e, por isso, importa usar qualquer
instrumento”. Entre a oração milagrosa de cura vista no documentário e Valdemiro
Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, vendendo feijões mágicos que,
segundo ele, curariam a COVID-19, há uma incômoda continuidade. Sabe-se que feijões
mágicos, chás e remédios como cloroquina e ivermectina não curam o novo coronavírus
e que é preciso medidas sanitárias (máscaras, vacinas), afastamento, testagem e
controle e políticas sociais e econômicas para amenizar impactos e lockdowns.
O negacionismo científico, a defesa de remédios ineficazes para a COVID-19, a
disseminação de teorias da conspiração sem fundamento é forte no meio evangélico, e
outros meios religiosos e sociais, com exceções e reações vigorosas
10
. Por isso, fazer
tangentes entre o universo de sentido, sintaxe e semântica exarado das duas obras, é
importante. Destaco a longa atuação de Freire, dez anos na Suíça, após a publicação do
Pedagogia do Oprimido, como consultor especial do CMI, Conselho Mundial de Igrejas.
10
As redes sociais, concentradas em algumas grandes empresas como o Facebook, dão guarida ao
comportamento que dissemina informações falsas em escala industrial. Há gente paga para isso também.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
63
Órgão criado em 1948, após a Segunda Guerra Mundial,
11
reúne igrejas cristãs
(Luterana, Anglicanas, Ortodoxas e outras) em uma atuação global pelos direitos
humanos, justiça social, ecumenismo e paz entre os povos. pouca participação de
igrejas pentecostais, como as que se podem ver no documentário, e das
neopentecostais. A proximidade de Paulo Freire com a Teologia da Libertação, uma
corrente de ideias e práticas religiosas que surgiu nos anos 1960, atingiu o auge em 1980
e entrou em minoria após os anos 2000 cujo ponto essencial é a luta por justiça e
igualdade social em favor dos mais pobres e marginalizados e reúne evangélicos (alguns
presbiterianos, luteranos, metodistas, batistas) e católicos. Grupos, coletivos e pessoas
embebidos com uma perspectiva de igualdade social e luta por direitos sociais e
humanos, são minoritários: teólogos, bispos, padres e religiosas católicas, pastores e
pastoras evangélicos e leigos que se espraiam em cidades, regiões, paróquias, templos
e mídias sociais. As pautas de luta dessa brava gente são antigas e novas: reforma
agrária, direitos dos indígenas à sua cultura-terra, redistribuição de riqueza, economia
solidária, direitos reprodutivos femininos (aborto legal e descriminalização), combate à
violência doméstica e de gênero, minorias sociais (negros e LGBTQIA+), laicidade do
Estado. (WEISS, 2010). Ainda é pouca a presença dessa vertente de ação entre
pentecostais e menos ainda entre neopentecostais.
Toda ordem de mundo é consonante com uma visão de mundo e traz embutida,
naturalizações, restrições, censuras, violências ocultas. Eis a crítica de Jürgen Habermas
(1987) à hermenêutica gadameriana: o processo de interpretar, se é social,
historicamente condicionado, infindável e permanente (círculo hermenêutico entre
partes e todos, eles mesmas provisórios e refeitas ao longo dos processors
interpretativos), não deixa, por outro lado, de ser marcado pelo poder socioeconômico,
pelas violências simbólicas ocultas e irrigadas por relações de poder pouco democráticas
presentes em igrejas, partidos políticos e sociedade. Por essa percepção, se um
detalhe pouco observado no média-metragem, a falta de dentes. Os desdentados
evangélicos das comunidades carentes assim continuam. Corta... Close-up no pastor
deputado paulista Marco Feliciano. Ele alegou bruxismo e gastou junto a Câmara
Federal, 157 mil reais para tratamento dentário. Mas era pura estética. O partido no
11
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/582145-70-anos-do-conselho-mundial-de-
igrejas-cmi Acesso em: Acesso em: 12 nov. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
64
qual se filiou, o expulsou após a imprensa revelar o desperdício de dinheiro público.
12
A carência de saúde bucal indica sérios problemas sociais e sanitários acumulados por
nossa história social. Atingem milhões de brasileiros em grandes e pequenas periferias
urbanas e rurais e indicam a extrema violência de nossa ordem social. Todavia, dessas
bocas emergem as aleluias, améns, gritos místicos, a liturgia de intensa participação
emocional e coletiva, por um lado, e, por outro, os laços de cuidado coletivo. Mas, as
análises, algumas delas na Ciência da Religião e Teologia, têm naturalizado esses e
outros sérios problemas socio-estruturais. Quando eles são abordados, o postos em
chave moralizante-individual e voluntarista, transferindo responsabilidade aos
indivíduos e seu contexto imediato, em consonância com o primado da visão de mundo
hegemônica, o neoliberalismo. Sua chave hermenêutica é a responsabilização do
agente, criando uma leitura anticrítica e beirando o fascismo (enquanto modo de
pensamento)
13
.
Mas, ao atuarem sobre o mundo, essas comunidades religiosas dividem-no entre
eleitos e escolhidos, não-escolhidos e não-eleitos, sendo os últimos, coitados, sem
direção, e os primeiros, aqueles abençoados, curados, felizes e com a verdadeira
direção. Ressurge a seita ou sectarização, que é da ordem do mito, como afirma Paulo
Freire (2018). Não à toa, a literatura acadêmico-científica associou processos
socioeconômicos violentos, desiguais, de cunho capitalista extrativista ou industrial e
agora, financeiro, nos mundos ocidentais periféricos, à expansão dos pentecostais e
neopentecostais. Essa ligação, apontada a bastante tempo, é sólida, embora sejam
necessárias novas leituras em consonância com o modus vivendi midiático, performático
e de subjetividade maquínica do atual modo de produção da vida social (D'EPINAY, 1968;
SOUZA, 1969). Observo que o profetismo pentecostal referido no documentário é
peculiar: Deus usa corpo e voz, se corporaliza. Eles incorporam, em êxtase, os ditames
divinos, marcados por mensagens de proteção e benção, dadas mais aos eleitos que aos
12
Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/podemos-expulsa-marco-feliciano-
pelos-dentes-de-r-157-mil Acesso em: 15 nov. 2021.
13
As leituras feitas por Jessé Souza (2019; 2018), por exemplo, as estruturas em movimento do capital e
sociedade se reduzem à bel-vontade das elites burguesas como se estas fossem as condutoras consciente-
autônomas dos processos sociais e dominassem o movimento do capital em suas mãos. Mas é ao
contrário, é no movimento do capital que elites e classes dominantes são geradas e se embalam. Se elas
são cruéis é porque o tipo de desenvolvimento do capital o é, favorecendo menos, elites mais
preocupadas com justiça social.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
65
“pobres pecadores que não aceitaram Jesus”, anunciam grandes feitos divinos,
provações, tragédias ou a chegada de salvadores e messias. Um fenômeno correlato
ocorre em processos que trazem em seu bojo, críticas sociais ao colonialismo e ao
capitalismo, como aponta Lanternari (1974). Noutra perspectiva, Ação Cultural para
Liberdade (FREIRE, 1981, p. 101) diz:
[...] Nenhuma Igreja poderá ser realmente profética enquanto seja ‘refúgio
das massas’ ou agência de modernização e de conservantismo [...] A Igreja
profética não ‘refugia’ as massas populares oprimidas, alienando-as mais
ainda, com discursos falsamente denunciantes, porque simplesmente blá-
blá-blantes. Convida-as, pelo contrário, a um novo Êxodo. A Igreja profética
não é tampouco a que, modernizando-se, conserva, ‘estabiliza-se’, adapta-
se. Cristo não foi conservador. A Igreja profética, tal qual Ele, tem de ser
andarilha, viageira constante, morrendo sempre e sempre renascendo. Para
ser, tem de estar sendo. Por isto mesmo é que não profetismo sem a
assunção da existência como a tensão dramática entre passado e futuro,
entre ficar e partir, entre dizer a palavra e o silêncio castrador, entre ser e
o ser, à qual nos referimos antes. Não há profetismo sem risco. (destaque
meu).
Passaram-se anos, a sociedade brasileira seguiu desigual. Fome, concentração
de renda e empobrecimento, no entanto, tiveram períodos de relativo alívio nos
governos de esquerda (PT/2002-2015). Mas, não foram capazes esses governos, de
reverter a desestruturação causada pelo capitalismo financeiro descontrolado,
desorganizador que com o bolsonarismo e Bolsonaro, atingem o auge (SAAD FILHO;
MORAIS, 2018; GHIRALDELLI, 2021). Infelizmente, em 2021, a grande imprensa noticiou
famílias inteiras a comer lixo ou a comprar ossos. Mas, num café da manhã, o Ministro
da Fazenda gasta centenas de reais. Infelizmente, o programa Bolsa Família, criado no
governo Lula da Silva (2002-2010), exemplo de política social, tolerado pelos mercados
financeiros, objeto de centenas de estudos econômicos e sociológicos, foi extinto e, em
seu lugar, outro programa improvisado foi criado, mas moralizante, pois joga a culpa da
pobreza no indivíduo. Um fato que condiz com a configuração de poder reacionário-
neoliberal-cristã. Ler essa situação sem cair no moralismo banal (corrupção como fonte
do mal), faz ver que as políticas públicas de transferência de riqueza e renda podem
voltar com mais prioridade e que uma educação problematizadora é possível.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
66
Seguimos em um regime neoliberal de gestão da vida que atinge seu auge na
sindemia de COVID-19 (2020-?), doença biopolítica por excelência (GHIRALDELLI, 2021
b). A doença exige uma ação biopolítica crítico-social, numa chave paulofreriana,
arrisco-me a dizer. Por isso, na perspectiva do Pedagogia do Oprimido, não situação
social vivida no documentário que não possam ser passadas pelo crivo da educação
problematizadora. Com essa educação, a consciência social da sociedade se ampliaria,
e se questionaria, por exemplo, o tripe macroeconômico, base da política neoliberal
(GHIRALDELLI, 2021). Do modo como foi gerido entre 1994 e 2021, esse tripé, somado
ao teto de gastos públicos (2016), torna difícil combater a desigualdade social. O
orçamento federal pago em 2020 girou em torno de 3,535 trilhões de reais, dos quais,
aproximadamente, 39% (1 trilhão, 381 bilhões de reais) são gastos com juros e serviços
da dívida pública, nunca investigada, debatida ou pactuada entre s. Diz Fatorelli: “o
modelo econômico [...] promove escassez de recursos [...] e concentração de renda [...]
por meio de seus principais eixos: o modelo tributário regressivo; a política monetária
suicida [...] o Sistema da Dívida e o modelo extrativista irresponsável para com as
pessoas e o ambiente”
14
. Essa dívida poderia ser rearranjada, abrir espaço para
investimentos e políticas públicas conversadas com a sociedade por meio de
mecanismos de aplicação, controle e fiscalização transparentes e democráticos. Na
perspectiva de uma educação problematizadora, se debateria coletiva e publicamente
para onde, quanto, de que maneiras e para quem uma parte dessa imensa riqueza
produzida deve voltar sob a forma de políticas de reindustrialização, educação básica e
superior, pesquisa científica, saúde, promoção de igualdade racial e de gênero, de
agricultura familiar, ecologia, saneamento básico etc. Paulo Freire, assim como artistas,
intelectuais, professores, sindicalistas, comunidades eclesiais de base, lideranças
camponesas, operários etc., fundaram o PT (Partido dos Trabalhadores com muita
esperança no futuro) em contraposição ao velho comunismo autoritário desgastado.
Uma das bandeiras originais, dentre muitas, era a auditoria das dívidas, muitas
assumidas no contexto da Ditadura Militar (1964-1985), intransparentes, sem prestação
de contas.
15
Talvez a lei de ferro, proposta pelo sociólogo weberiano Michels (1949)
14
Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/estamos-vivendo-no-avesso-do-brasil-que-merecemos-
por-maria-lucia-fattorelli/ Acesso em: 12 nov. 2021.
15
Caberia crítica à desconexão entre as bandeiras iniciais, as correntes pluralistas do PT e a cúpula de
ferro criada em torno de um grupo interno que empurra o partido para uma autossobrevivência a todo
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
67
poderia explicar como, na democracia moderna, organizações de massa, partidos e
instituições democráticas, se oligarquizam internamente, separam-se de suas bases
vivas, seccionam o pluralismo interno e, assim, fazem decair, a democracia participativa
num processo que favorece o populismo messiânico de lideranças. Urge, de fato, uma
educação problematizadora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ambas as obras acionam a sinédoque, poderosa figura de linguagem, e
constroem tipos, o crente na periferia, o oprimido, a educação bancária, o profeta
pentecostal, a educação problematizadora, a sectarização à esquerda e à direita. Os
moradores pobres evangélicos do documentário se encontram na epígrafe do livro e
constituem uma estranha religião em meio ao deserto de justiça social e dignidade de
vida. O protagonismo dos moradores, pessoas simples, negras e pardas em sua maioria,
evidencia a colossal tarefa de sobreviver em meio ao abandono social. Santa Cruz
mostra como se produziram os meios sociais e simbólicos de sobrevivência dos
esfarrapados evangélicos pentecostais e revelam os padrões valorativos característicos.
Na Pedagogia do Oprimido, o profetismo proposto é racional: migra-se da
consciência imediata para a consciência político-crítica. Pobrezas, desenraizamentos,
marginalização extrema, não são destino, natureza, castigo, ordem de divindade ou do
cosmo ou resultado inalterável do sistema capitalista ou de uma elite cruel (moralismo),
mas são construtos sociais e econômicos perpetuados por uma visão de mundo e
práticas que podem ser mudadas por um trabalho coletivo, democrático, participativo,
ombro a ombro. Mas o ajustamento individual de condutas e vidas que veem a nós na
febre do empreendedorismo (sex-shops evangélicos, “eu interior”, coachs), dos
educação e aplicativos financeiros, do narcisismo da extrema-direita constituem, sob o
crivo paulofreiriano, um ajuste conservador, pois deixa intocada, raízes de desamor e
não-fraternidade social. Declamada em versos por perspectivas religiosas e sociais, a
ideia de que a mudança individual interna, ou conversão na perspectiva evangélica,
custo. Isso o dispôs à aliança com o mercado financeiro, notadamente a partir de 2002, com a Carta aos
Brasileiros, publicada por Lula da Silva. Henrique Meirelles, deputado do PSDB de Goiás, oriundo do
mundo financeiro internacional, foi convidado e assumiu o banco Central.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
68
muda a sociedade para melhor, é incapaz de superar a desigualdade social, étnica,
sexual, econômica, regional. Ao contrário, essa prática-teoria pode mudar o mundo para
pior e produzir efeitos sociais não-intencionais distintos da ideia inicial de seus agentes,
visíveis em chave crítico-social: a especulação imobiliária, a mistura entre fé e crime nas
milícias e no tráfico, o negacionismo científico e a intolerância para com as religiões afro-
brasileiras e a ciência etc. Não se excluem, evidentemente, atitudes individuais para
melhoria do mundo, por exemplo, a luta pelo meio-ambiente ao não mais comer carne,
por exemplo. Mudanças sempre são misturas complexas do coletivo e do individual. Na
fina ironia weberiana, ao jogar com as palavras de Paulo Apóstolo, “mas aqui a ascese
era a força ‘que sempre quer o bem e sempre cria o mal’[...]. (WEBER, 2020, p. 134,
destaque meu). O concreto limite do pensamento mágico-religioso nos constrange e
questiona as abordagens românticas. São gemidos reais, na reflexão de Marx (1844),
“expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real [...] suspiro da
criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições
desalmadas”. Mas, o futuro está aberto. Como se expressou Max Weber (2020, p. 142),
não se sabe se, ao fim da marcha do capitalismo, surgirão profetas novos ou se assistirá
a um renascimento de ideais antigos, ou se haverá uma onda de petrificação e uma luta
convulsa de todos contra todos e, nesse caso, aplica-se a frase “especialistas sem
espírito, hedonistas sem coração”. Os ajustamentos, ou, para usar uma imagem
teológica cristã, remendos novos em roupas esfarrapadas, não são revolucionários,
segundo a linguagem do Pedagogia do Oprimido. Diante dos abismos de desigualdade
racial, religiosa, de gênero, de riqueza, esses ajustes oferecem um enfrentamento
provisório e insuficiente. Mas, “Se nada ficar destas páginas, algo pelo menos,
esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens, na criação
de um novo mundo em que seja menos difícil amar” (FREIRE, 2018, p. 475). É possível
esperançar e mudar radicalmente.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Protestantismo tupiniquim. Hipótese sobre a (não) contribuição
evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Editora Recriar, 2018.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
69
BÍBLIA, N. T. I Carta de João. BÍBLIA. Português. Nova Tradução Almeida.
Tradução de João Ferreira de Almeida. Disponível em:
https://www.bibliaon.com/versiculo/1_joao_5_19/ Acesso em: 15 nov. 2021.
CORTEN, André. Os pobres e o Espírito Santo. Petrópolis: Vozes, 1996.
CUNHA, Christina V. “Religião e criminalidade: traficantes e evangélicos entre os
anos 1980 e 2000 nas favelas cariocas”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 34, 1, p.
61-93, 2014.
CUNHA, Christina V. “Irmãos contra o Império: evangélicos de esquerda nas
eleições 2020 no Brasil”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, n. 39, p. 13-80, jan./jul.
2021
DA COSTA, Samuel. S. da C.; COZZER, Roney R. . “Religião, periferia e leitura
popular da bíblia: uma análise do documentário Santa Cruz à luz da pneumagiologia
pentecostal”. REPAS, Revista Protestantismo em Revista, [S. l.], v. 5, n. 5, 2020.
Disponível em: https://www.revista.repas.com.br/index.php/repas/article/view/31.
Acesso em: 1 nov. 2021. Disponível em:
http://periodicos.est.edu.br/index.php/nepp/article/view/3604
D'EPINAY, Christian Lalive. Refugio de las Masas: estudio sociológico del
protestantismo chileno. Chile: Editorial Del Pacifico, 1968
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. ed., Rio de
Janeiro, Paz e Terra. 1981.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido (o manuscrito). São Paulo: Editora e
Livraria Instituto Paulo Freire; Universidade Nove de Julho (UNINOVE); BigTime
Editora/BT Acadêmica, 2018.
GHIRALDELLI Jr, Paulo. As lições de Paulo Freire: filosofia, educação e política.
Barueri: Manole, 2012.
GHIRALDELLI Jr, Paulo. República Brasileira: de Deodoro a Bolsonaro. 2 ed. São
Paulo: CEFA Editorial, 2021.
GHIRALDELLI Jr, Paulo. Os mortos, biopoder e imunização. In: GHIRALDELLI Jr,
Paulo. A Democracia de Bolsonaro, 2018-2020. São Paulo: CEFA Editorial, 2021 b.
HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para a crítica da hermenêutica de
Gadamer. Porto Alegre: L&MP, 1987.
LANTERNARI, Vittorio. As religiões dos oprimidos. Um estudo dos modernos
cultos messiânicos, São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.
MARX, Karl. Texto: Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 1844.
Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm Acesso em:
12 nov. 2021.
MARX, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 1844. Disponível
em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm Acesso
em: 15 nov. 2021
MELO E SILVA JUNIOR, João. “Cristandade católica, teologia da prosperidade
pentecostal e predestinação calvinista: elementos epistemológicos do cristofascismo
bolsonarista”. Anais do CONGRESSO BRASILEIRO DE TEOLOGIA PASTORAL. Discernir a
pastoral em tempos de crise: realidade, desafios, tarefas. FAJE: Belo Horizonte,. 2021.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
70
MICHELS, Robert. Political Parties: a sociological study of the oligarchical
tendencies of modern democracy. New York: Free. 1949.
MONTERO, Paulo. “Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo
religioso no Brasil”. Revista etnográfica, Lisboa, maio de 2009, p.13, n. 1, p. 7-16.
NOVAES, Regina. Os escolhidos de Deus. Pentecostais, trabalhadores e cidadania.
São Paulo: Editora Marco Zero, 1985
SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil. Neoliberalismo versus democracia.
São Paulo: Boitempo, 2018.
SANTA CRUZ. Direção de João Moreira Salles e Marcos Correa. GLOBOSAT: Rio
de Janeiro. 2000, 60 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d-
PjHpahJzY&t=1031s Acesso em: 15 nov. 2021.
SANCHIS, Pierre. “As religiões dos brasileiros”. Horizonte (Revista), Belo
Horizonte, v. 1, n.2, p. 28-43, 1997.
SOUZA, Beatriz M. A experiência da salvação: pentecostais em São Paulo. Front
Cover. Beatriz Muniz de Souza. Duas Cidades, 1969.
SOUZA, Jessé. A Classe Média no espelho. São Paulo: Estação Brasil- sextante,
2018.
SOUZA, Jessé. A elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. 2. ed. São Paulo:
Estação Brasil, 2018.
SLOTERDIJK, Peter. Ira e tempo. Ensaio político-psicológico. São Paulo: Estação
Liberdade, 2021
TROELTSCH. Ernest. “Igreja e seitas”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 14.
n. 33, 1987, p. 134-144.
WEBER, Max. “As seitas protestantes e o Espírito do Capitalismo”. In: WEBER,
Ma. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002, p. 212-225.
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. 5 ed. São Paulo: Cortez;
Campinas: Editora as Unicamp, 2016.
WEBER, Max. A ética protestante e o Espírito do Capitalismo. Petrópolis: Vozes,
2020
WEISS, Fátima de J. “Uma Igreja Inclusiva na parada: religião, visibilidade e
política da/na diversidade”. Seminário Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades,
Deslocamentos, 23 a 26 de agosto de 2010.