https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n2p118-129
Vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
ISSN: 2179-6807 (online)
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
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ANALFABETISMO E EXCLUSÃO SOCIAL: APONTAMENTOS A PARTIR DO
DIÁLOGO COM FREIRE, ARROYO, MARTA OLIVEIRA E ANTÔNIA
Andréia Luciane Sol Souza
1
Alexandre Gonçalves
2
Resumo: Este texto marca o lugar da alfabetização como um “bem social” distribuído
desigualmente na sociedade, na qual, as classes populares são desfavorecidas (FREIRE, 2008).
O presente trabalho estabelece um diálogo” entre Paulo Freire, Miguel Arroyo, Marta Oliveira
e Antônia mulher negra, trabalhadora e não alfabetizada. Este texto aponta a relação
existente entre o analfabetismo e a exclusão social analisando o contexto e a vida da Antônia,
em suas conexões com a educação de jovens e adultos e na implicação dos desafios teóricos-
metodológicos para tratar desse tema. Um diálogo entre a educanda Antônia, sua trajetória de
vida inseridas no contexto mais amplo do analfabetismo e as ações de educação popular.
Assim, trazer elementos que possam contribuir com a compreensão das situações colocados às
pessoas adultas não alfabetizadas ao lidar com ocasiões que são necessários o uso dos códigos
de leitura e escrita. Neste sentido, convidamos aos (as) leitores (as) a refletir sobre a história
de Antônia não como uma história individual, mas como uma história coletiva, que apresenta a
realidade de muitas/os pessoas adultas não alfabetizadas.
Palavras-chave: Analfabetismo. Exclusão social. Freire. Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Antônia.
ILLITERACY AND SOCIAL EXCLUSION: NOTES FROM THE DIALOGUE WITH FREIRE, ARROYO,
MARTA OLIVEIRA AND ANTÔNIA
Abstract: This text marks the place of literacy as a social good” unevenly distributed in
society, in which the popular classes are disadvantaged (FREIRE, 2008). The present work
establishes a “dialogue” between Paulo Freire, Miguel Arroyo, Marta Oliveira and Antônia
black, working and illiterate woman. This text points out the relationship between illiteracy
and social exclusion, analyzing the context and life of Antônia, in its connections with youth
and adult education and in the implications of theoretical-methodological challenges to deal
with this theme. A dialogue between student Antônia, her life trajectory inserted in the
1
Mestre em Educação e Inclusão Social (FAE/UFMG). Especialista em História e Culturas Políticas
(FAFICH/UFMG). Graduada em História (PUC/MG). Pesquisadora colaboradora: “Homeopatia tecnologia
social das famílias agrícolas e ambientes: formação de agricultores (as), transição agroecológica e
contribuições à Educação do Campo” (Faculdade de Educação /UFV). Atua como assessora na
Associação Estadual de Defesa Social e Ambiental de Minas Gerais (AEDAS/MG). E-mail:
andreiasoll@gmail.com - ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5857-7564.
2
Doutorando em Antropologia Social (UFMG), Mestre em Administração na linha de pesquisa Gestão,
Ambiente e Desenvolvimento (UFLA). Graduado em Agronomia (UFLA). Atua como agente da Comissão
Pastoral da Terra. E-mail: alexandrecpt@gmail.com - ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6157-9648.
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broader context of illiteracy and popular education actions. Thus, bring elements that can
contribute to the understanding of situations placed to illiterate adults when dealing with
occasions that require the use of reading and writing codes. In this sense, we invite readers to
reflect on Antônia's story not as an individual story, but as a collective story, which presents
the reality of many non-literate adults.
Keywords: Illiteracy. Social exclusion. Freire. Youth and Adult Education (EJA). Antonia.
ANALFABETIZACIÓN Y EXCLUSIÓN SOCIAL: NOTAS DEL DIÁLOGO CON FREIRE, ARROYO, MARTA
OLIVEIRA Y ANTÔNIA
Resumen: Este texto marca el lugar de la alfabetización como un “bien social” distribuido de
manera desigual en la sociedad, en la que las clases populares se encuentran en desventaja
(FREIRE, 2008). El presente trabajo establece un “diálogo” entre Paulo Freire, Miguel Arroyo,
Marta Oliveira y Antônia - mujer negra, trabajadora y analfabeta. Este texto señala la relación
entre analfabetismo y exclusión social, analizando el contexto y la vida de Antônia, en sus
conexiones con la educación de jóvenes y adultos y en las implicaciones de los desafíos
teórico-metodológicos para abordar este tema. Un diálogo entre la estudiante Antônia, su
trayectoria de vida insertada en el contexto más amplio del analfabetismo y las acciones de
educación popular. De esta forma, aportar elementos que puedan contribuir a la comprensión
de situaciones que se plantean a los adultos analfabetos cuando se enfrentan a ocasiones que
requieren el uso de códigos de lectura y escritura. En este sentido, invitamos a los lectores a
reflexionar sobre la historia de Antônia no como una historia individual, sino como una historia
colectiva, que presenta la realidad de muchos adultos analfabetos.
Palabras clave: Analfabetismo. Exclusión social. Freire. Educación de Jóvenes y Adultos (EJA).
Antonia.
INTRODUÇÃO
Mesmo que se possa conceituar o analfabetismo como uma questão de
escassez educacional, insuficiência ou inexistência de escolaridade, é esta
uma dentre as várias formas possíveis de definir o analfabetismo. Porém, é
mais que isso. É sobretudo, um fenômeno de exclusão social e de subtração
do gozo e dos benefícios sociais e dos direitos civis; de expressão da cultura
erudita e paralelamente de desvalorização do popular e de seu próprio
patrimônio cultural. (LEWIN, 1995).
A alfabetização no Brasil, só foi amplamente difundida no transcorrer do século
XX. Para se ter uma ideia, no ano de 1900 as taxas de analfabetismo no país giravam
em torno de 65,3% do total da população. Carregando, desde o início, a marca da
desigualdade e da negação de direitos, acumulamos uma dívida com homens e
mulheres que não tiverem o acesso ao “bem social” da escrita (BARRETO, 1998).
Marcando o lugar da alfabetização como um “bem social”, um bem distribuído
de forma desigual entre as pessoas, prejudicando as classes populares, consequência
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de uma ordem social injusta, conformando-se, portanto, como uma questão de
exclusão social (FREIRE, 2008).
Uma das facetas que expõe a complexidade da questão do analfabetismo pode
ser verificada se olharmos para os dados que apresentam os índices do analfabetismo
no mundo e no Brasil. A população atual do planeta é de aproximadamente 7,8 bilhões
de habitantes. Entre eles, 774 milhões não são alfabetizados, isso representa,
aproximadamente, 20% da população adulta, segundo dados da Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) divulgados em 2014.
No Brasil há aproximadamente 212 milhões de habitantes, deste total, segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em 2018
cerca de 11 milhões de pessoas que não sabem ler e escrever. Se a educação é um
campo marcado por desafios, no caso da Educação de Jovens e Adultos (EJA)
3
, mesmo
com as inúmeras conquistas garantidas através da mobilização e da luta de educadoras
(es) e educandas (os), essas adversidades são ainda mais marcantes.
A EJA é vista como uma forma para fazer frente à situação de exclusão e
desigualdade social, sendo considerada como fundamental para a construção de uma
sociedade mais justa e democrática. É também uma forma de assegurar os direitos
humanos, a participação cidadã e a valorização da diversidade cultural.
Se a EJA ainda é vista, por muitos, como uma forma de possibilitar o acesso à
Educação escolar àqueles que não tiveram a oportunidade de ir para a escola na
infância ou que por algum motivo, tiveram que interromper seus estudos
prevalecendo a ideia de uma atividade compensatória (SOARES, 1987), infelizmente,
perpetua-se um discurso estigmatizado tanto em relação à problemática do
analfabetismo quanto à pessoa não alfabetizada.
É urgente e necessário repensarmos a forma como tratamos a questão do
analfabetismo no Brasil, compreendendo suas origens históricas e a conjuntura
política, econômica e social que colocou treze milhões de pessoas na condição de
3
Educação de Jovens e Adultos (EJA), para além de uma modalidade de ensino, é um campo político, que
carrega consigo o rico legado da Educação Popular. “Os educadores e educadoras de pessoas jovens e
adultas, assim como seus educandos (as), são sujeitos sociais que se encontram no cerne de um
processo muito mais complexo do que somente uma modalidade de ensino.” (SOARES; GIOVANETTI;
GOMES, 2011, p. 7)
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sujeitos não alfabetizados, os quais, além de não saber ler e escrever encontram-se à
margem de seus direitos.
QUEM SÃO AS PESSOAS ADULTAS NÃO ALFABETIZADAS NO BRASIL?
A presente reflexão tem como foco analítico a condição das pessoas adultas
não alfabetizadas, que compõem uma categoria social abrangente, a qual merece ser
mais bem analisada e compreendida no contexto brasileiro.
Nos últimos anos, muitas pesquisas foram realizadas com o intuito de conhecer
as especificidades da EJA e das pessoas que a compõem. Conhecer quem são estas
pessoas é uma forma coerente para propor uma educação contextualizada que sirva
realmente aos interesses das classes populares. Redimensionar os rumos da EJA para
além de uma modalidade de ensino é conhecer as especificidades dos sujeitos
concretos históricos que vivenciam os diferentes tempos da vida, assim avançar para
superar visões restritivas (ARROYO, 2011, p. 22-23).
Pobreza e analfabetismo não se dissociam e a situação brasileira afirma isto, o
Brasil apresenta uma das piores distribuições de renda entre ricos e pobres, segundo
dados do Mapa do Analfabetismo no Brasil, (2003):
Em um País onde a renda dos 20% mais ricos é 32 vezes maior que aquela
dos 20% mais pobres, a distribuição de educação e do analfabetismo não
poderia ser diferente”. (...) Enquanto a taxa de analfabetismo nos
domicílios cujo rendimento é superior a dez salários mínimos é de apenas
1,4%, naqueles cujo rendimento é inferior a quase 29%. (BRASIL, 2003, p.
11).
Para contribuir com a identificação destes sujeitos, Marta Oliveira (2009)
reitera em seus estudos sobre aprendizagem e conhecimento, a importância de
conhecer os jovens e adultos da EJA. Segundo a autora, ao trabalhar com as temáticas
que envolvem esses sujeitos, é necessário saber que não é apenas uma questão de
faixa etária, mas de compreender as especificidades culturais que os cercam, sendo
necessário estar ciente sobre a distinção entre esses sujeitos e os demais. Ela aponta
que eles são, geralmente, pessoas que trazem em sua história quase nenhuma
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instrução escolar, na maioria das vezes são filhos e filhas de pais não alfabetizados e
que chegam como migrantes às grandes metrópoles:
O adulto, para a Educação de Jovens e Adultos, não é o estudante
universitário, o profissional qualificado que frequenta cursos de formação
continuada ou de especialização, ou a pessoa adulta interessada em
aperfeiçoar seus conhecimentos em áreas como artes, línguas estrangeiras
ou música, por exemplo. Ele é geralmente o migrante que chega às grandes
metrópoles provenientes de áreas rurais empobrecidas, filho de
trabalhadores rurais não qualificados e com baixo nível de instrução escolar
(muitos frequentemente analfabetos), ele próprio com uma passagem
curta e não sistemática pela escola e trabalhando em ocupações urbanas
não qualificadas, possuem experiência no trabalho rural na infância e
adolescência, que busca a escola tardiamente para alfabetizar-se ou cursar
algumas séries do ensino supletivo. (OLIVEIRA, 2009, p. 197-198).
Em consonância com Marta Oliveira (2009), entendemos neste trabalho a
importância de apresentar quem são as pessoas da EJA e qual o lugar social que
ocupam em nossa sociedade. Como aponta Arroyo,
não é qualquer jovem e qualquer adulto. São jovens e adultos com rosto,
com histórias, com cor, com trajetórias sócio-étnico-raciais, do campo, da
periferia (...) são jovens e adultos trabalhadores, pobres, negros,
subempregados, oprimidos e excluídos” (ARROYO, 2006, p. 01).
Diante da realidade constatada na distribuição de renda, ainda que se
destacar a disparidade entre os números de pessoas não alfabetizadas moradores do
campo e da cidade. Nas áreas rurais, “(...) um em cada quatro brasileiros com 15 anos
ou mais, que vive no campo não sabe ler e escrever um bilhete simples.” (GALVÃO; DI
PIERRO, 2013, p.63).
Ciente do lugar de exclusão que marca a trajetória dos sujeitos da EJA, Brandão
(2009) nos convida a retomar o sentido e o papel da educação popular e a realizar
ações de fortalecimento das iniciativas populares, considerando a diversidade e a
particularidade dos envolvidos para enfrentar as opressões e as restrições a eles
impostas.
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ADULTOS NÃO ALFABETIZADOS: PESSOAS DE APRENDIZAGEM E CONHECIMENTO
Corroborando com a afirmação “adultos não alfabetizados são sujeitos de
aprendizagem e de conhecimento” (OLIVEIRA, 2009, p. 137), apresentamos aqui
importantes estudos realizados acerca do processo de aprendizagem de pessoas
adultas e propomos o diálogo com pesquisadores que se debruçam sobre esta
temática.
Paulo Freire (1996) é referência para o trabalho na alfabetização de adultos.
Compartilhamos com ele a ideia de que, antes mesmo de ler a palavra, os adultos
fazem a leitura do mundo, homens e mulheres são confrontados o tempo todo com a
necessidade de aprender e cada um constrói, de acordo com seus estímulos, às
aprendizagens que lhes cabem, sendo mediados pelo mundo e pelo outro. Para Freire,
“aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que
meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar
para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.” (FREIRE,
1996, p. 77).
As primeiras experiências de Freire na alfabetização, a exemplo de Angicos,
proporcionaram os círculos de cultura, espaços educativos e de diálogo, que
promoviam o debate e a problematização sobre temáticas do cotidiano. Mais do que a
pura decifração dos códigos da escrita, esperava-se que os sujeitos fossem capazes de
ler a realidade em que estavam inseridos e, a partir daí, se mobilizassem para
transformá-la. Era fundamental, nesse processo, que o sujeito criasse a consciência de
que ele não era o responsável pela situação de exclusão e pobreza em que se
encontrava e que o analfabetismo era um dos reflexos dessa situação. Freire
preconizava ser necessário “tomar a alfabetização como consequência de uma ordem
social injusta e, portanto, uma questão de natureza social e educacional” (BARRETO,
1998, p. 79).
Sujeitos em processo de alfabetização, quando orientados pela proposta
freiriana, são motivados a ressignificar suas experiências e trajetórias com o intuito de
dar um novo sentido aquilo que formatava sua experiência de vida, relacionando-a
com amplos aspectos do mundo, criando, recriando e integrando-se às condições do
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seu contexto, respondendo aos seus desafios. Esse movimento lança homens e
mulheres ao domínio que lhe é exclusivo: o da história e da cultura.
Outra importante estudiosa dos processos cognitivos de adultos das classes
populares é Oliveira (2009). Ela ressalta que as pesquisas sobre o desenvolvimento da
aprendizagem e da construção do conhecimento por adultos apresentam uma
limitação considerável, já que os estudos sobre os processos cognitivos, em geral,
estão muito voltados para as categorias da infância e juventude.
Sobre os processos de aprendizagem de adultos, a autora mostra que o fato de
eles estarem inseridos no mundo do trabalho e desenvolverem diferentes relações
interpessoais, diferentemente das crianças e dos adolescentes, faz com que tragam
consigo uma história mais longa e muitas vezes mais complexa, além de uma maior
capacidade de reflexão sobre o conhecimento e sobre seus próprios processos de
aprendizagem (OLIVEIRA, 2009, p. 200-202).
Em estudo realizado sobre as competências cognitivas utilizadas no cotidiano
por alunos da EJA, residentes numa favela de São Paulo, Oliveira mostrou que as
pessoas aprendem a atuar cognitivamente nos ambientes específicos onde elas vivem
e é nesses ambientes que elas desenvolvem tarefas importantes para seu processo de
aprendizagem. Sobre isso, a autora nos revela que:
É no interior de um determinado meio doméstico e social que os seres
humanos, quaisquer que sejam suas experiências prévias de aprendizagem
e seu potencial biológico, tornam-se de fato capazes de operar
cognitivamente em respostas às demandas desse meio particular e de
acordo com o treinamento específico aí obtido. (OLIVEIRA, 2009, p. 105).
Essa constatação é importante, pois corrobora com a ideia de que adultos não
alfabetizados são capazes de elaborar e articular os conhecimentos construídos para
lidar com as situações cotidianas que a vida lhes impõe. Mas, diante de uma sociedade
tecnológica e letrada, são expostos muitos desafios devido à sua condição de não
alfabetizados.
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DESAFIOS VIVIDOS POR ADULTOS NÃO ALFABETIZADOS
Isturdia fui no posto.
Pro dotô tirá um inzame, passei ôto vexame
Cum vergonha de novo,
Tava todo o povo
Cum os zoião desse tamãe
Butecado pra riba deu
Só pruque esse besta dizia quinda num sabia
Assiná de caneta.
Tô me sintino um lixo,
deferente de todo mundo,
com esse dedo breado.
(Jota Neris, 2005)
Pessoas adultas não alfabetizadas são expostas diariamente a diferentes tipos
de desafios quando estão diante de situações que necessitam do uso da leitura e da
escrita e essas situações desafiadoras são agravadas devido à condição social que
pertencem: são pobres, negros, mulheres, moradoras/es das periferias, vilas e favelas
dos grandes centros urbanos; migrantes; camponesas/es, trabalhadoras/es que
ocupam os cargos mais baixos hierarquicamente, entre outros aspectos.
Para muitas/os adultas/os que não sabem ler e escrever, o analfabetismo não é
compreendido como um processo de exclusão social ou como violação de direitos, mas
como “uma experiência individual de desvio ou fracasso, que provoca repetidas
situações de discriminação e humilhação, vividas com grande sofrimento e, por vezes,
acompanhadas por sentimento de culpa e vergonha.” (GALVÃO; DI PIERRO, 2013, p.
15).
A ideia errônea de que as pessoas não alfabetizadas são seres “de menor valia”,
pode ser ilustrada através do trabalho realizado em momentos de formação do
Programa Brasil Alfabetizado (PBA), onde Galvão e Di Pierro (2013) propuseram um
desafio aos alfabetizadores do programa: elas pediram que os alfabetizadores do
programa que participavam da formação registrassem a forma como viam as pessoas
não alfabetizadas e o resultado recolhido pelas pesquisadoras foi o seguinte:
“(...) incapaz, incompleto, dependente, perdido, manobrado, cego, coitado,
sofredor, despreparado, desumanizado, isolado, alienado, massa amorfa,
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aquém da sociedade, desinformado, fome, pobreza, classe dominada,
exclusão, segregação, sem a acesso a direitos, discriminação, Brasil,
preconceito.” (GALVÃO; DI PIERRO, 2013. p. 9)
Diante de situações que demandam o uso da leitura e da escrita, muitos
adultos não alfabetizados, temendo serem expostos à situações constrangedoras,
acabam por viver de forma resignada e não associam criticamente o fato de não serem
alfabetizados, a uma situação histórica de negação de direitos e exclusão social,
sentindo-se muitas vezes responsabilizados socialmente pela sua condição.
Portanto, conhecer quem são estas pessoas nos convida a propor uma
educação contextualizada que sirva realmente aos interesses das classes populares.
Redimensionar os rumos da EJA para além de uma modalidade de ensino é conhecer
as especificidades dos sujeitos concretos históricos que vivenciam os diferentes
tempos da vida, avançando para superar visões restritivas (ARROYO, 2011, p. 22-23).
Diante dessa grave situação e contexto, e da imprescindibilidade das pessoas
envolvidas, trazemos para o texto a história de Antônia.
ANTÔNIA
Quem lida com alfabetização sabe qual é a importância do nome para aqueles
e aquelas que estão aprendendo a ler e escrever. Muitas vezes, é o desejo de assinar o
próprio nome que faz com que homens e mulheres retornem aos estudos. Mais do
que assinar e abandonar o constrangimento de “sujar o dedão”, saber escrever o
próprio nome é uma forma de refletir sobre sua existência no mundo.
Antônia é mineira, nasceu no município de São Sebastião do Maranhão,
mulher, negra, viúva, mãe de quatro filhos, cedeu este relato quando era educanda de
uma turma de alfabetização do Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA), na
época estava com 53 anos. Ela relata que teve a infância marcada pelo trabalho
doméstico; vivenciou a falta de acesso à moradia, à escola, saúde e transporte; teve
sua vida marcada por tragédias e inúmeros reveses econômicos. Ela inicia seu relato
trazendo à memória a infância vivida ao lado dos pais e sete irmãos, vida marcada pelo
trabalho duro na lavoura e nos afazeres domésticos. Sobre esta passagem ela relata:
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“Meu pai trabalhava a semana toda, mexia com lavoura, e minha mãe
ajudava ele a trabaiar. (...) Eu, com sete anos, tomava conta de três irmãos.
Roupa eu não lavava porque não dava conta. Buscava água de tina. Fazia a
comida. Dava banho nos meninos. Buscava fubá numa fazenda perto.
Fubá de moinho. Arrumava a casa toda. Minha mãe ficava feliz. (Antônia)
Antônia conta que na região todos comentavam que ela era uma menina
“trabaiadeira” e isso atraiu até sua casa um fazendeiro de Sete Lagoas que a convidou
para ir embora com ele. De acordo com suas memórias:
“Aí bateu na porta. Eu abri e era uma pessoa de Sete lagoas. (…) Aí ele falou
assim: você seu nome???? pros outros? Dou. Sua mãe está em casa?
Minha mãe trabaiando, só a noite que ela em casa. ele falou assim:
“Ocê quer ir embora com a gente? Eu tô procurando uma menina daqui pra
morar comigo em casa, ficar lá, tomando conta, pra ser babá. eu pensei
na minha mãe.. longe da minha mãe não vai dar. ele falou assim: Eu te
dou tudo: sapato, roupa, escola. Aí, quando foi a noite, ele veio e falou com
minha mãe. Aí minha mãe falou assim: “Óia! Essa menina é trabaiadeira, ela
é responsável, ela que cuida dos meninos pra mim, pra eu poder trabaiar”.
Aí, já tinha o juiz de paz da minha cidade, um tal de Augusto Ribeiro, que
era o juíz de paz que tinha naquele tempo, e esse homem tava ajeitando
tudo pra me tomar da minha mãe. [choro]. Aí, eu não sabia não. Como
minha mãe era separada / viúva eles tomavam os meninos da mãe, uns
fugiam, outros iam embora, mas eu não tive como escapar…Eles
aumentaram minha idade. Eu tinha dez anos, eles pôs doze. Pra mim foi a
maior tristeza do mundo. Porque eles me tiraram da minha mãe e eu nunca
mais vi ela”. [choro]. (Antônia)
Relata que o que aconteceu na casa dessas pessoas foi bem diferente do que
foi prometido, “(...) eu não gostava de ficar com esse pessoal porque eles eram ruins
demais, eles me dava comida, roupa e mais nada”. A situação de Antônia reflete a
de muitas outras crianças filhas das classes populares, que, espalhadas pelo Brasil, são
privadas do convívio familiar e levadas a realizar todo tipo de trabalho. Enquanto
“morava” com a família de fazendeiros em Sete Lagoas, ela chegou a ser matriculada
em uma escola, mas disse que não conseguia aprender e nem se concentrar nas aulas,
devido a separação dos pais e por causa do cansaço diário impingido pelo trabalho
doméstico. Esse acontecimento acarretou em sua vida uma série de sofrimentos e
traumas, inclusive, ela relaciona esse fato ao motivo de não ter conseguido se
concentrar na escola e não ter conseguido se alfabetizar, segundo Antônia:
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Eu fui...[para a escola] mas não conseguia concentrar mais. Eu tinha dez
anos. Então, mas eu nunca consegui concentrar na escola, minha cabeça
não firmava. Eu via as letras, mas eu ficava com aquela coisa na minha
cabeça... devido à separação da minha mãe. Não consegui aprender a ler
não. Até hoje a minha cabeça fica assim confusa. [tristeza]. Eu cheguei a ir
na escola, eu cheguei a estudar aqui no bairro, um outro bairro que eu
morava... mas eu não cheguei a aprender”.
Antônia revela que durante toda sua vida, teve o desejo de aprender a ler e a
escrever, porém sua condição o favoreceu para que isso acontecesse. Ela destaca
que a condição de pobreza em que vivia com sua família, fez com que ao invés de
frequentar a escola, teve que se dedicar ao trabalho doméstico e da lavoura. Relata
também que ao se casar, ainda muito jovem, não teve o apoio do marido para
frequentar a escola, o que mostra que o caso de Antônia não é um caso isolado,
que, muitas mulheres são impedidas pelos homens de estudar.
Olhar para as/os educandas/os da EJA considerando suas trajetórias de vida e
não apenas suas trajetórias escolares, é um apelo que o educador Miguel Arroyo tem
feito aos que lidam com a educação, por isso o apelo para que o relato de Antônia não
seja entendido apenas como uma história individual, mas como uma história coletiva,
que representa a realidade de muitos (as) mulheres e homens, sujeitos da EJA desse
País.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Adultos não alfabetizados são expostos diariamente a diversos desafios por não
serem alfabetizados, esta situação é agravada devido a condição social, a qual
pertencem - são pessoas negras (os), moradoras (es) das periferias, trabalhadoras (es)
informais, migrantes etc. Muitas vezes, essas pessoas são invisibilizadas socialmente e
os diferentes saberes que possuem são desvalorizados. As pessoas adultas não
alfabetizadas não dominam os códigos da leitura e da escrita, mas mostram
habilidades, conhecimento e saberes que são construídos ao longo da vida.
O caso da Antônia aqui analisado demonstra uma complexa relação entre a não
alfabetização e a sua trajetória de vida. O contexto das pessoas não alfabetizadas, suas
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trajetórias e as condições de sobrevivência controversas, devem compor não o
campo de pesquisa acadêmica, mas serem usados para problematizar os processos de
construção do conhecimento nos espaços da EJA. Criando processos contextualizados.
Críticos e com capacidade de propor mudança sócios políticas.
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