https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n1p247-266
Vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
247
UTOPIA E HETEROTOPIA: ANÁLISE DA NORMATIZAÇÃO E DAS
RESISTÊNCIAS DOS CORPOS E ESPAÇOS
Marcelo Brito
1
Ildenilson Meireles
2
Iuri Simões Mota
3
Aprovado em: 18/10/2022
Resumo: O artigo tem como objetivo debater sobre o corpo enquanto um espaço heterotópico,
tomando por base a noção definida por Foucault, O Corpo, as heterotopias. Nesse sentido,
propomos compreender como os corpos dissidentes da cisnormatividade podem ser entendidos
como um espaço heterotópico na medida em que se mostram como um instrumento de
resistência às formas de normalização e normatização de si mesmos e do espaço físico. O
significado de corpo em nossa análise aponta para um espaço de luta, de disputa de sentidos
entre os sujeitos e de embate de diferentes relações de poder que atravessam os indivíduos e
suas vivências. Propomos pensar as pessoas trans a partir da ideia do corpo como uma
heterotopia, tanto pelo seu caráter de resistência aos processos de normatizações, como pelo
processo de apropriação que essas pessoas fazem da sua identidade, constituindo-se como
sujeitos dos seus desejos e subjetividades. Os corpos dissidentes são considerados como um
espaço heterotópico na medida em que estão gravados na constituição do mesmo uma série de
processos de significações e construções socioculturais, mas ao mesmo tempo esse corpo,
enquanto espaço heterotópico, resiste e subverte o processo, as imposições binárias e o
discurso cisnormativo, criando em si mesmos um espaço heterotópico.
Palavras-chave: Utopia. Espaços Heterotópicos. Corpo. Cisnormatividade. Pessoas Trans.
UTOPIA AND HETEROTOPY: ANALYSIS OF NORMATIZATION AND RESISTANCE OF BODIES AND
SPACES
Abstract: The article aims to discuss the body as a heterotopic space, based on the notion
defined by Foucault, The Body, the heterotopias. In this sense, we propose to understand how
the dissident bodies of cisnormativity can be understood as a heterotopic space insofar as they
show themselves as an instrument of resistance to the forms of normalization and regulation of
1
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros. Mestre e doutorando pelo Programa
de Pós-graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes.
Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes. E-mail:
professormarcelob@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5692-0883
2
Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da
Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes. E-mail: meirelesildenilson@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0528-727X
3
Bacharel em Direito e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes
Claros/Unimontes. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Santo Agostinho de Montes
Claros. E-mail: iurimota@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8521-251X
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
248
themselves and the physical space. The meaning of body in our analysis points to a space of
struggle, of dispute of meanings between subjects and of clash of different power relations that
cross individuals and their experiences. We propose to think about trans people based on the
idea of the body as a heterotopia, both for its character of resistance to the processes of
normalization, and for the process of appropriation that these people make of their identity,
constituting themselves as subjects of their desires and subjectivities. Dissident bodies are
considered a heterotopic space insofar as a series of processes of sociocultural meanings and
constructions are engraved in its constitution, but at the same time this body, as a heterotopic
space, resists and subverts the process, the binary and the cisnormative discourse, creating in
themselves a heterotopic space.
Keywords: Utopia. Heterotopic Spaces. Body. Cisnormativity. Trans People.
UTOPÍA Y HETEROTOPÍA: ANÁLISIS DE NORMATIZACIÓN Y RESISTENCIA DE CUERPOS Y
ESPACIOS
Resumen: El artículo tiene como objetivo discutir el cuerpo como espacio heterotópico, a partir
de la noción definida por Foucault, El Cuerpo, las heterotopías. En este sentido, nos proponemos
comprender cómo los cuerpos disidentes de la cisnormatividad pueden entenderse como un
espacio heterotópico en tanto se muestran como instrumento de resistencia a las formas de
normalización y normalización de mismos y del espacio físico. El significado de cuerpo en
nuestro análisis apunta a un espacio de lucha, de disputa de significados entre sujetos y de
choque de diferentes relaciones de poder que atraviesan a los individuos y sus vivencias.
Proponemos pensar a las personas trans a partir de la idea del cuerpo como heterotopía, tanto
por su carácter de resistencia a los procesos de normalización, como por el proceso de
apropiación que estas personas hacen de su identidad, constituyéndose como sujetos. de sus
deseos y subjetividades. Los cuerpos disidentes son considerados un espacio heterotópico en la
medida en que en su constitución están grabados una serie de procesos de construcción y
significados socioculturales, pero al mismo tiempo este cuerpo, como espacio heterotópico,
resiste y subvierte el proceso, el discurso binario y cisnormativo, creando en mismas un
espacio heterotópico.
Palavras-clave: Utopía. Espacios Heterotópicos. Cuerpo. Cisnormatividad. Personas Trans.
INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva discutir sobre o corpo enquanto um espaço heterotópico,
com fundamento na noção definida por Foucault (2013). Nesse sentido, propomos
compreender como os corpos dissidentes das pessoas trans podem ser entendidos
como um espaço heterotópico na medida em que se mostram como um instrumento de
resistência às formas de normalização e normatização de si mesmos e do espaço físico.
O corpo pode ser compreendido como lugar que abriga inscrições, produções ou
constituições das diferentes relações que o ser humano pode estabelecer com o outro
e consigo. Nesse sentido, a utopia se constitui como uma relação que tenta apagar os
corpos em um processo de enquadramento. A fabulação de um corpo utópico pode ser
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
249
pensada para eliminar o corpo possível, pois o enquadramento estabelece significações
sociais, a maneira como os corpos devem ser vistos e como podem ser lidos.
O significado de corpo, em nossa análise, aponta para um espaço de luta, de
disputa de sentidos entre os sujeitos e de embate de diferentes relações de poder que
atravessam os indivíduos e as vivências deles. Assim, pretendemos pensar o corpo das
pessoas trans como uma heterotopia, tanto pelo caráter de resistência aos processos
de normatizações, quanto pelo processo de apropriação que essas pessoas concebem
da identidade delas, constituindo-se como sujeitos de desejos e subjetividades.
Portanto, analisaremos as pessoas trans sob a perspectiva da vivência de gênero delas
e da construção de um espaço subjetivo heterotópico e como este reflete na produção
do espaço físico.
Optamos por utilizar a expressão “pessoas trans” por compreendermos que a
categoria pessoas transexuais engloba as construções sociais de gênero não
binária/cisnormativa. Reiteramos que a normatização dos espaços também está
presente e se impõe ao uso do corpo. As normas sociais reiteram o binômio
cisgeneridade/heterossexualidade como forma adequada de utilização dos corpos,
relegando às margens aqueles que não correspondem a esse binômio.
A homogeneidade pretendida e imposta tanto ao gênero, quanto ao espaço é
subvertida na vivência da subjetividade e na apropriação dos espaços físicos,
potencializando a transformação do corpo e espaço em heterotopia.
A imposição da cisgeneridade como algo natural confronta-se com a diversidade
de gênero e de vivências que não se amoldam ao discurso. Do mesmo modo, a produção
do espaço não fica adstrita ao concebido, abstrato, mas se diferencia e se concretiza na
medida em que as pessoas se apropriam dele.
Neste aspecto, discutiremos a noção de heterotopia desenvolvida por Foucault,
refletindo sobre como o corpo das pessoas trans pode ser entendido como um espaço
heterotópico e como isso tenciona na apropriação do espaço físico.
A pesquisa objetiva a análise teórica do conceito de utopia e heterotopia em
Foucault e sua aplicação ao corpo e espaço. A partir da noção do corpo como espaço
será possível compreender os processos de enquadramento impostos aos corpos, assim
como os movimentos de resistência, afirmando-os como espaços heterotópicos. É
justamente nessa interação entre utopia e heterotopia que se analisará o corpo, não
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
250
apenas no sentido físico, mas em sua dimensão subjetiva e social. Assim, é possível
afirmar o corpo como um espaço heterotópico, lugar de significação, de produção de
sentido e que também se apresenta como lugar de resistência às formas de poder que
tentam o enquadrar cotidianamente.
UTOPIA E HETEROTOPIA: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS DE FOUCAULT
O conceito de utopia é polissêmico e pode ser interpretado de acordo com o
contexto histórico no qual se enquadra. Para Gregory Claeys (2013ª, p. 10), utopia é
sinônimo de uma “ideia”, um conjunto de aspectos repetidos e recriados ao longo dos
séculos e que ora assume tendência filosófica; ora apresenta-se como uma narrativa e
aproxima-se dos elementos literários; ora esvazia-se de parâmetros elaborados e reitera
a síntese ingênua de “lugar feliz” ou “sonho impossível”; ora, ainda, dependendo do
lugar discursivo ocupado pelo pesquisador, torna-se um conceito sociológico,
psicológico, arquitetônico, entre outros.
Na perspectiva da cidade e dos seus espaços também é possível identificar a
utopia, sendo muitas vezes empregada a partir de determinada racionalidade na forma
e usos. Nesse sentido, “imaginar racionalmente torna-se, pois, um recurso para garantir
a verossimilhança e expressar, com precisão, o projeto de vida exemplar e ideal – isto é,
utópico. Cidade e espaços geográficos compõem uma verdadeira poética inerente ao
fazer utópico (e distópico)(BECKER, 2017, p. 52).
O conceito de heterotopia que utilizamos é extraído do livro “O Corpo Utópico –
as Heterotopias”, obra que rne duas conferências proferidas por Foucault, em 1966,
para um grupo de arquitetos e o posfácio de Daniel Defert, intitulado “Heterotopia:
tribulações de um conceito entre Veneza, Berlim e Los Angeles”, organizados em livro
no ano de 2013. Foucault aborda o conceito de heterotopia em oposição e forma de
contestação das chamadas Utopias – lugares sem uma localização real, fora de todos os
lugares (SILVA, 2018).
As Heterotopias (hetero = outro e topia = espaço) surgem para referenciar os
lugares que atuavam em condições não hegemônicas, como “espaços absolutamente
outros”, “contra espaços” ou “espaços de alteridades”. Eles ocorrem em meio a
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
251
múltiplas camadas de significação e complexidade, não podendo ser mapeados longe
de variações e funcionalidades do tempo e da cultura (FOUCAULT, 2013).
Percebemos que heterotopia e utopia são conceitos distintos, porém, estão de
várias formas imbricados. Não existe uma heterotopia isolada. Ela está sendo ligada a
outro lugar, sempre uma aproximação de um lugar ao outro, uma zona cinzenta.
Nesse sentido, expõe Foucault (2013, p. 98):
Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer
civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na
própria instituição da sociedade, e que são espécies de contra
posicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os
posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem
encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados,
contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os
lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por
serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles
refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de
heterotopias.
É justamente nessa interação utopia e heterotopia que acrescentamos o corpo,
não apenas no sentido físico, mas em sua dimensão subjetiva e social. É possível
defendermos o corpo como um espaço heterotópico a partir dos apontamentos de
Marinho que o afirma como lugar de significação, de produção de sentido e que também
se apresenta enquanto lugar de resistência às formas de poder-saber que o subjetivam
cotidianamente. É nesse sentido que Marinho (2015, p. 11) afirma:
É possível, também, pensar o corpo heterotópico dentro da sua perspectiva
de resistência, como sendo uma forma de estética da existência, contra a
disciplina, o controle, a biopolítica etc. O corpo heterotópico resiste como
realização de obra de arte, uma estética da existência, atualização do
cuidado de si como prática de liberdade. (MARINHO,2015, p. 11).
Passamos a compreender o corpo como um espaço heterotópico na medida em
que estão interiorizados na formatação dele uma série de processos de significações e
construções socioculturais, e, ao mesmo tempo, esse corpo, enquanto espaço
heterotópico, resiste e subverte o processo.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
252
DISCURSOS TRANSGÊNEROS E CISGÊNEROS: A CONSTRUÇÃO DO CORPO
HETEROTÓPICO
A constituição do corpo não se sem as utopias que são criadas por nossa
sociedade por meio dos discursos e nem sem o atravessamento das heterotopias.
Podemos afirmar que é a partir do discurso que ocorre a formação do corpo ou a ideia
que se tem do que é o corpo.
Ao abordar corpo, é preciso apontar sobre qual corpo se fala. Aqui, para além do
corpo biológico, interessa-nos, também, o que chamamos de corpo discursivo. Segundo
Milanez (2009, p. 215-222), para estarmos diante de um corpo discursivo não basta nos
depararmos com práticas do fazer do nosso dia a dia. Precisamos salientar a existência
material desse objeto que denominamos corpo, em consonância com suas formas e
carnes por meio da representação sob a qual o identificamos. Para tanto, faz-se
necessário considerar esse corpo a respeito do qual falamos, colocando em evidência a
existência histórica e o status material dele, reafirmando o questionamento
foucaultiano: “quem fala?”.
Foucault (2007), no decorrer dos trabalhos dele, tece uma profunda reflexão
acerca do discurso. Entre tantos outros temas, ele buscou compreender a constituição
dos discursos tendo como objeto a sexualidade, a loucura e o sistema prisional.
Um ponto importante para o desenvolvimento de nosso argumento está na
percepção do autor para além do enunciado, englobando a posição do sujeito que
assinala, ou seja, não é o que se diz que constrói o discurso, mas quem diz. É nesse
sentido que Foucault (2007, p. 203) afirma:
Se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser
considerados “enunciados”, não é porque houve, um dia, alguém para
proferi-los ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas sim
na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Descrever uma
formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre
o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em
determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser
sujeito.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
253
Embora Foucault diga que o corpo é o contrário de uma utopia, não podemos
negar que a forma como o vemos liga-se à forma como incorporamos o discurso-corpo
ao nosso corpo (FOUCAULT, 2009). Percebemos, com essa questão, o quanto nosso
olhar é constituído do olhar do outro e, mais do que isso, da questão do social que
constrói os discursos. É nesse contexto que passamos a analisar criticamente as
construções histórico-culturais dos conceitos de transgênero e cisgênero.
Convencionalmente, a expressão transgênero/transexual é geralmente utilizada
para se referir à pessoa que tem outra identidade de gênero que não aquela atribuída
ao nascimento e que deseja ser reconhecida, podendo ou não, para isso, submeter-se a
uma cirurgia de redesignação sexual (antigamente chamada de “cirurgia de mudança de
sexo”) ou outras intervenções cirúrgicas e/ou de tratamento hormonal.
As pessoas trans lidam de formas variadas e em diferentes graus com o gênero
com o qual se identificam, sendo essa uma das questões que perpassam pela sua forma
de interagir e vivenciar no mundo. A percepção da identidade de gênero pelo indivíduo
não passa necessariamente pela sua genitália, não esgota a subjetividade dele e nem se
restringe a estereótipos de gênero.
É importante destacarmos que a construção da ideia de gênero, tal qual a de
sexualidade, é um processo sociocultural e nada tem de natural. Ao contrário, busca-se
atribuir uma naturalidade a um processo de normalização e normatização de gênero
que tenta impor um padrão hegemônico de identidade.
Desse modo, as identidades de gênero são socialmente estabelecidas e
codificadas, por uma rede de poder de determinada sociedade. O binarismo de gênero
(homem ou mulher) é socialmente construído e faz com que as pessoas sejam
encaixadas dentro de uma percepção e obrigadas a se identificar com o gênero que lhe
foi atribuído ao nascer em razão do seu genital (DESLANDES, 2018).
Não é demais frisarmos que as pessoas que estabeleceram o padrão de
identidade de gênero como “normal” e “natural” são exatamente as mesmas que se
beneficiam sob múltiplos aspectos, inclusive socialmente, das regras convencionadas.
Assim, faz-se necessário problematizarmos essas categorias de gênero para não
referendarmos automaticamente verdades criadas para os corpos humanos,
evidenciando que o corpo ganha significado no discurso no contexto das relações de
poder. Neste sentido, compreender os processos através dos quais se produz a
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
254
naturalização de alguns corpos e autoidentificações de gênero é notar como “os limites
do ‘real’ são produzidos no campo da heterossexualização [e+ou cisnormatização]
naturalizada dos corpos, em que os fatos físicos servem como causas” (BUTTLER, 2002,
p. 137).
É sob esse aspecto que destacamos o corpo discursivo, social como uma
construção e a resistência a um padrão hegemônico como um espaço heterotópico,
buscando a liberação das formas enrijecidas de normatização. Nesse contexto, cabe
problematizarmos a própria designação transgênero/transexual que surge como uma
tentativa de determinar um gênero em não conformidade, desviante do natural,
assumindo durante muito tempo um caráter patológico.
Com base nesse discurso é que a própria medicina classificava a transexualidade
como um distúrbio relacionado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM-III). O diagnóstico médico carregava elementos patológicos para
caracterizar a situação como sendo “presença de desconforto extremo com a genitália
e desejo intenso de modificá-la” (MANOLE, 1989).
Ao interpretar a diversidade de gênero como patologia, a ciência médica
chamava para si a responsabilidade da “cura” ou tratamento que geralmente se dava
por meio das cirurgias de readequação de gênero.
Mais uma vez faz-se necessário analisarmos as relações de poder estabelecidas,
nesse caso específico em relação à ciência da saúde, na condição de instância legitimada
para diagnosticar as identidades de gênero “transtornadas”, controlando e
normatizando viabilidades existenciais de corpos e gêneros e restringindo autonomias
(VERGUEIRO, 2016).
A questão das cirurgias, por exemplo, não pode ser compreendida como parte
essencial da sua identidade ou como cura para a transexualidade. Nem toda pessoa
trans deseja submeter-se a procedimentos cirúrgicos, pois a mudança corporal não
necessariamente faz parte da vivência de gênero dela.
O diagnóstico e a cirurgia partem do pressuposto da inadequação da pessoa que
se encontra, biologicamente, no gênero errado. Entretanto, não reflexão sobre a
normatização de gênero que é aceita como fixa e imutável. Não se coloca em pauta se
essas normas produzem sofrimento intenso e desconforto, se impedem algumas
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
255
pessoas de desempenhar suas funções, ou se geram sofrimento para algumas pessoas
ou para muitas delas (BUTLER, 2009, p. 117).
A diversidade de gênero não é uma questão na maioria das vezes, mas o não
enquadramento é, revelando um tensionamento, pois, segundo Butler (2002), ao
mesmo tempo que esses corpos não importam em razão da inadequação deles, por
outro lado, são imprescindíveis socialmente, pois as fronteiras da normalidade
podem ser claramente demarcadas a partir da instituição desses “corpos abjetos”.
Assim, o padrão de normalidade circunscreve-se a partir da fixação desses territórios de
abjeção, estreitamente vinculado ao não-humano.
Nestes espaços absolutamente outros, como bem definiu Foucault (2013),
encontramos pessoas que questionam as normativas de gêneros, bem como de padrões
de comportamentos e de sexualidades esperados pela sociedade. Destacamos que é
nesse espaço outro, ou não lugar que se estabelece a tentativa de reconhecimento e de
negação da condição humana. Assim, Butler (2019) expõe como algumas pessoas
correm o maior risco de serem tratadas como menos humanas ou aquelas vidas que
passam a não valer a pena para grande parte da sociedade normatizadora. A partir da
análise interseccional de raça e classe social, entrecruzamento de marcadores sociais da
diferença, é possível compreender os mecanismos de vulnerabilização e invisibilização
de determinados corpos. A desumanização parte da redução do sujeito a sua “verdade
biológica” e os corpos que escapam do “normal” acabam escapando também do
humano.
Na perspectiva de como o discurso influencia na construção do corpo/lugar,
ressaltamos a trajetória da construção das expressões “transexualismo”,
“transexualidade”, “transgeneridade” e depois a compreensão do lugar da
“cisgeneridade”.
É interessante observarmos que até meados da década de 1990 não havia uma
designação para as pessoas que não eram transgênero. Certamente a omissão estava
calcada na ideia de que o contrário de transgênero era o “normal”, “natural” e, por isso,
não categorizado. Porém, nas disputas epistemológicas e de narrativas, a comunidade
transgênera internacional cunhou a expressão cisgênero.
Segundo Dumaresq (2014), a palavra cisgênero é hoje um caso bem-sucedido de
ocupação epistêmica, pois foi adotada por diversas pessoas transgêneras, travestis,
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
256
mulheres transexuais e homens trans para designar aqueles que não são tratados como
transgêneros pela sociedade. A importância da categorização está exatamente no fato
de marcar que a identidade cis também é um processo de construção social, perpassado
por uma série de privilégios construídos historicamente. O próprio conceito de
cisgênero passou por modificações ao longo do tempo, sendo, inicialmente, mais
próximo do jargão biomédico que trouxe alguma aceitação social e que definia o trans
para definir o cis. Tratava-se de uma tentativa de expressar alteridade, mas ainda muito
preso ao aspecto corpóreo. O viés identitário da expressão veio posteriormente e,
sobretudo, a consciência da importância política de descentralizar a narrativa de um
grupo dominante e colocar o cisgênero/cissexual como uma alternativa e não como uma
norma que pauta a definição e categoriza.
Aos poucos o conceito de cisgênero foi ganhando uma dimensão analítica da
construção desse gênero, assim como se utiliza heterossexualidade para as orientações
sexuais, ou como branquitude para questões raciais. Nesse sentido, a cisgeneridade
ganha todo o contorno político/social/jurídico de privilégios historicamente construídos
que a colocam como natural, como essencial, como padrão. A nomeação desse padrão
pode permitir que se olhe de outra forma, deslocando dessa posição naturalizada, da
sua hierarquia superiorizada, hierarquia posta nesse patamar superior em relação com
as demais identidades de gênero (DUMARESQ, 2014).
Reconhecer a cisgeneridade significa, sim, o reconhecimento das assimetrias,
pois a pessoa que é percebida como cis e mantém status cis em documentos oficiais não
é passível de análise patologizante, nem precisa ter seu gênero legitimado, nem lutar
por reconhecimento de direitos civis. Busca-se o efeito político de elevar o status de
pessoas cis ao mesmo das pessoas trans: se pessoas trans são anormais e doentes
mentais, pessoas cis também o são; da mesma forma, suas identidades não são “reais”.
Porém, se pessoas cis são normais e suas identidades naturais, pessoas trans também
são normais e suas identidades tão reais quanto (DUMARESQ, 2014).
Destacamos, dentro desse contexto, a analogia do espelho realizada por
Foucault, com intuito de demonstrar que os espaços utópicos e heterotópicos estão em
interação e se sobrepõem.
Segundo Foucault (2009, p. 122):
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
257
O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu
me vejo onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente
atrás da superfície, eu estou longe, onde não estou, uma espécie de
sombra que me dá a mim mesmo minha própria visibilidade, que me permite
me olhar onde estou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma
heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente, e que tem, no
lugar que ocupo, uma espécie de efeito retroativo; é a partir do espelho que
me descubro ausente no lugar em que estou porque eu me vejo longe. A
partir desse olhar que de qualquer forma se dirige para mim, do fundo desse
espaço virtual que está do outro lado do espelho, eu retorno a mim e começo
a dirigir meus olhos para mim mesmo e a me constituir ali onde estou: o
espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna esse
lugar que ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo
absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e
absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar por
aquele ponto virtual que está lá longe.
Enquanto misto de utopia e heterotopia, o espelho é capaz de proporcionar
experiências únicas aos sujeitos. Utópico quando nos mostra em um lugar onde não
estamos, quando mostra uma imagem irreal (não material) de nós, quando nos
possibilita olhar a nós mesmos num lugar onde não estamos. Mas é enquanto
heterotopia que o espelho leva o sujeito a uma experiência consigo mesmo, a uma
atitude ética de subjetivação (AZEVEDO, 2018).
É interessante refletirmos sobre a analogia do espelho trazida por Foucault na
experiência das pessoas trans. O espelho não precisa ser necessariamente o objeto físico
que reflete a imagem, mas também como a sociedade estabelece (como espelho) esse
lugar e não lugar da forma como o indivíduo constitui a si mesmo.
Nesse sentido, destaca-se a fala de Dumaresq (2014, p. 14) no texto Ensaio de
Epistemologia Transgênera, sobre sua percepção de gênero como socialização e
cidadania e a designação de sexo imposta.
Eu não fui designada mulher ao nascer. Então eu tive que romper a
continuidade do meu desígnio. Fiz isso quebrando normas, é verdade. Mas
como já mostrei, se por um lado, as normas jamais servirão para me validar.
Por outro lado, qualquer comportamento pode servir de justificativa para
negar-me, pois sou eu quem está “atacando” o sistema biomédico. O ônus
da prova é todo meu, mas minha vivência e comportamento não
testemunham por mim. É um jogo injusto, mas é este que jogamos com o
Estado por nossa cidadania.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
258
Percebemos que a referida autora relata um processo de subjetivação, o corpo
enquanto lugar heterotópico, e que, ao mesmo tempo, apresenta a narrativa social e
estrutural que nega esse processo de afirmação. Nesse sentido, Dumaresq (2014, p. 16)
segue o raciocínio afirmando que a imposição e tutela do Estado e da Medicina acabam
por tornar as pessoas trans ininteligíveis, pois a subjetividade não é levada em
consideração e as palavras são esvaziadas.
Quando pensamos na inteligibilidade, vemos como o sistema não resolve os
problemas das pessoas transgêneras: ainda que autorizem cirurgias e
tratamentos hormonais que necessitamos; que retifiquem em nossos
documentos o nome e o sexo; jamais nos devolverão a inteligibilidade. E o
pior, a necessidade de tutela em cada um destes passos nada mais é que a
afirmação da nossa não inteligibilidade. Isto é o mesmo que negar e
interditar nossa parrésia; de falar abertamente sobre nós. Da ousadia de
negar um desígnio pétreo, nos punem interditando nossa afirmação que
originou todo o processo (DUMARESQ, 2014, P. 16).
É no corpo, por meio de um processo de subjetivação, que as pessoas trans
subvertem o discurso cisnormativo e criam um espaço heterotópico.
NORMATIZAÇÃO E PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO PELAS PESSOAS TRANS:
CRIANDO ESPAÇOS HETEROTÓPICOS
Podemos compreender os espaços heterotópicos como espaços de oposição aos
demais lugares normativos da sociedade. Assim, a pessoa trans, seu corpo
discursivo/social apresenta-se enquanto grande heterotopia, por abrigar situações de
dissidências e resistência. Afirmamos que esse corpo heterotópico também produz
impacto na produção do urbano, recriando novos espaços heterotópicos.
A homogeneidade pretendida e imposta tanto ao gênero, quanto ao espaço é
subvertida na vivência da subjetividade e na apropriação dos espaços físicos,
potencializando a transformação do corpo e espaço em heterotopia.
O espaço urbano é marcado por intencionalidades na sua construção tanto física
quanto simbólica, sendo projetado para permitir a reprodução das relações de produção
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
259
próprias do capitalismo. Assim, o espaço é normatizado com objetivo de estabelecer
ordenamento e moralidade para que seu uso esteja adequado ao planejamento
realizado.
O raciocínio desenvolvido aproxima da ideia de espaço abstrato trazida por
Lefebvre (2006) que concebe os espaços dentro de uma lógica capitalista como sendo
um conjunto de coisas-signos, com suas relações formais. Pode-se compreender que
primam pela racionalidade estética e pela força do símbolo, das imagens.
O espaço abstrato, formal e quantificado, é simultaneamente homogêneo (o
que vai na direção da negação das diferenças, sem, contudo, jamais eliminá-las por
completo), fragmentado (pulverizado pela propriedade privada, funcionalmente
segregado) e hierarquizado (organizado em termos de relações centro-periferia de
dominação). Ocupado, controlado e orientado para a reprodução das relações sociais
de produção, ele consolida uma lógica burocrática de controle e repetição. Espraia-se,
portanto, por todo o planeta, negando as diferenças espaciais: as que provêm da
natureza e da história, assim como aquelas originárias do corpo, das idades, dos sexos,
das etnias (BASTOS, et. al, 2017).
Esse espaço hierarquizado, estanque, consubstancia-se no espaço concebido
que é a representação de um saber técnico (não por isso menos ideológico), fruto de
uma racionalidade capitalista que vê no espaço um produto, um valor de troca.
um tensionamento entre o espaço concebido/abstrato que tenta negar as
diferenças espaciais, impondo relações sociais orientadas pela homogeneização,
fragmentação, hierarquização e o espaço onde as pessoas marcam sua resistência a esse
projeto.
Nesse sentido, Bastos (2017) afirma que as tensões provocadas pelo espaço
abstrato fazem surgir o espaço diferencial cuja produção acontece a partir da completa
imbricação entre uma vida cotidiana profundamente transformada e uma prática da
diferença espacial. Trata-se de um contraprojeto e visa a restituir os diferentes usos
possíveis do espaço, isto é, a possibilitar a apropriação espacial contra a
homogeneização patogênica de um espaço racionalizado, coercitivo, hierárquico,
comandado pela lógica capitalista e estatal, ou seja, a criação do que podemos chamar
também de espaço heterotópico.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
260
De acordo com Foucault (2013), as heterotopias podem ser classificadas em duas
principais categorias. A primeira seria as Heterotopias Biológicas de Crise lugares
sagrados e interditados, voltados às pessoas que não satisfazem as expectativas de uma
determinada sociedade, como os adolescentes, os idosos e as mulheres grávidas
atribuindo-lhes outros espaços sociais.
Há, ainda, uma segunda categoria denominada de Heterotopias de Desvio. Para
Foucault, tais heterotopias “seriam lugares que a sociedade dispõe em suas margens,
nas paragens vazias que a rodeiam, são antes reservados aos indivíduos cujo
comportamento é desviante ou relativamente à média ou à norma exigida”. Estes
espaços – não mais de crise biológica, mas de desvios sociais – fazem referência às casas
de repouso, aos asilos, às prisões e às clínicas psiquiátricas.
No que diz respeito às pessoas trans, a presença delas (sobretudo as travestis)
no espaço urbano subverte o espaço pensado para ser homogêneo, pois
anteriormente e/ou simultaneamente, essas pessoas subverteram a imposição de
gênero estabelecida socialmente. É assim que o deslocar pelas ruas da cidade
representa, ainda, um ato de transgressão da ordem imposta e ao mesmo tempo de
apropriação do espaço e da autodeterminação. Utilizamos da teoria de Foucault para
afirmar que se trata do corpo heterotópico que produz espaços heterotópicos.
Nesse sentido, destacamos o relato de Aranuna (2018, p. 23), mulher trans,
sobre a experiência dela de andar pelas ruas e se deparar com os olhares dos outros:
Faz parte da textura da cidade o barulho, os olhares perdidos e trocados, as
conversas rápidas e atrasadas; e para mim, enquanto travesti, ser tomada
por alguns sentidos me fez mover e refletir minha identidade de gênero. Eu
me recordo, de maneira viva, o cansaço e esgotamento que sentia - logo no
início da transição, quando minha androginia se fazia esquisita para as
pessoas cisgêneras - ao sair para o mundo externo para realizar meus
estudos e trabalho, e acabar colhendo pelo caminho alguns olhares de susto,
de repulsa, de vergonha e até de riso. Sim, com o tempo, eu consegui decifrar
cada um deles. Eu tinha a sensação de que minha caminhada não era nunca
inocente e fortuita, e que meu corpo não permitia que os olhares de
transeuntes se dissipassem e se perdessem pelo espaço, mas, pelo contrário,
ele parecia uma marca que direcionava e organizava pupilas alheias.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
261
Quando Aranuna afirma que a caminhada dela nunca era “inocente e fortuita”
revela o impacto que produz na ordem imposta em um espaço não planejado para a
diferença. O corpo dela constrange um espaço marcado pela violência com as diferenças
e por uma imposição de gênero; a existência dela constrange o espaço, criando uma
heterotopia.
Nesse sentido, a partir da experiência da circulação nos espaços públicos
Mombaça (2016, p.9) descreve que “da minha própria perspectiva, como uma bicha
racializada, gorda e não binária, oriunda da periferia do Nordeste brasileiro, é impossível
negar o impacto dessa distribuição da violência como ameaça na minha vida diária”. A
autora revela a dificuldade de andar pelas ruas, em razão da sua presença ser lida como
ofensiva apenas pelo modo como ela age e aparenta. “O risco de tornar-se parte das
horríveis estatísticas de violência anti-bicha (e anti-trans, anti-nordestina, anti-preta,
etc.) é uma constante e não é justo que somente nós que assumimos como ética da
existência a desobediência à normalidade social (...) tenhamos de lidar com esse risco”
(MOMBAÇA, 2016, p. 9).
Ao mesmo tempo que a experiência pode ser de embate e constrangimento é
também de apropriação do espaço, pois a presença dela rompendo com a
homogeneização pretendida faz daquele um espaço heterotópico. Essa apropriação é
tão importante que faz parte do próprio processo de significar o que é uma pessoa trans,
transformando o espaço em espaço relacional. Nesse sentido afirma Aranuna (2018, p.
15):
A restrição em que estive me fez entender o principal objetivo desta
pesquisa: a necessidade do Outro e do mundo “lá fora” para me constituir.
Eu não queria mais estar disponível aos olhares, questionamentos e
violências próprios da dinamicidade urbana cotidiana, mas, ao mesmo
tempo, sei que vivenciar tudo isso faz parte de uma socialização travesti.
Lidar com a presença da transfobia constantemente na minha rotina cria a
travesti que sou. E entender esse processo é bastante doloroso. A solidão
que me tomou pode ser interpretada, para este artigo, como um resguardo
da cidade; como uma proteção de um campo amplo, totalmente aberto para
conflitos e trocas. Eu também vejo os meus dias de solidão e de isolamento
como consequências das esgotantes e cansativas experiências que reuni ao
estar exposta à urbe e a suas relações calcadas na transfobia.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
262
Compreende-se os desafios enfrentados por essa dupla subversão das pessoas
trans, sendo primeira a subversão do modelo naturalizado e hierarquizado de gênero e
depois da subversão de se fazer presente em um espaço homogeneizado nas regras dos
papéis que devem ser desempenhados e até mesmo do ponto de vista estético.
Nesse sentido, Aranuna (2018, p. 19) relata que a experiência de estar em lugares
públicos pode ser mais ou menos impactante de acordo com a aproximação ou
distanciamento do corpo dela dos caracteres físicos femininos.
Alguns desses “assuntos” são silenciosos e pressupõem um conjunto de
regras cisnormativas e sexistas, como, por exemplo, uma coerente
disposição dos símbolos de gênero presentes nos corpos das pessoas.
Dependendo da presença ou ausência de alguns desses signos, pode-se ter
uma trajetória travesti tranquila ou uma mais tensa. E um dos lugares em
que eu pude notar meu manejo com esses códigos de gênero foi o banheiro
coletivo (ARANUNA, 2018, p. 20)
As experiências da autora em relação ao rompimento dos padrões de
homogeneidade deixam claro o quanto sua presença marca a subversão de espaços
ainda não criados para a diversidade de gênero. Nesse sentido:
A contraposição simbólica entre acusação-desejo que circundam o corpo das
travestis e mulheres transexuais se efetiva numa espécie de desejo sexual
proibido. Uma repressão da sexualidade que acaba por fetichizar a figura de
uma mulher com pênis e localiza as práticas sexuais dessa população no
âmbito da marginalidade. O imaginário coletivo dessa relação acusação-
desejo é perceptível sobretudo nos dados de que o Brasil é o país que mais
consome pornografia envolvendo travestis e mulheres transexuais
(PORNHUB INSIGHTS, 2016), em contraponto à posição de primeiro lugar
entre os países onde mais se assassina pessoas trans (TRANSGENDER
EUROPE, 2016) (ARANUNA, 2018, p. 24).
A homogeneidade pretendida e imposta tanto ao gênero, quanto ao espaço é
subvertida na vivência e na apropriação dos espaços. A imposição da cisgeneridade
como algo natural esbarra-se na diversidade de gênero e de vivências que não se
amoldam ao discurso. Da mesma forma, a produção do espaço não fica adstrita ao
concebido, mas se diferencia e se concretiza na medida em que as pessoas se apropriam
dele, transformando também em um espaço heterotópico.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
263
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão central desse artigo foi sobre o corpo discursivo/social das pessoas
trans como um espaço heterotópico, utilizando os estudos de Foucault (2013). Assim,
propusemos pensar o corpo das pessoas trans como uma heterotopia, tanto pelo seu
caráter de resistência aos processos de normatizações, como pelo processo de
apropriação que essas pessoas fazem da sua identidade, constituindo-se como sujeitos
dos seus desejos e subjetividades.
A construção de um espaço subjetivo heterotópico pelas pessoas trans reflete
na produção do espaço físico que passa a ser também heterotópico.
A produção do espaço urbano é abordada por Lefebvre como uma construção
de um espaço abstrato, concebido, idealizado pelo modo de produção capitalista. Para
que sirva a esses propósitos o espaço deve ser homogêneo, hierarquizado e
normatizado.
No que diz respeito ao gênero, percebe-se que, também, há uma normatização
estabelecida que tende impor um padrão naturalizado e hierárquico de vivência e
comportamento. As identificações de gênero que não se enquadrassem eram tidas
como desviantes e, posteriormente, foram categorizadas como transgênero.
A transgeneridade foi criada como categoria para enquadrar as pessoas que não
se identificavam com o sexo biológico, apresentando uma inadequação nesse raciocínio.
Assim, a transexualidade foi patologizada e colocada como uma forma não “natural” da
vivência de gênero.
A normatização de comportamento e vivência do gênero ignoraram durante
muito tempo que a percepção dessa identidade pelo indivíduo não passa
necessariamente pela genitália dele, não esgota a subjetividade e nem se restringe a
estereótipos de gênero.
Da mesma forma, apenas a categoria transgênero era explicitada como se os não
trans fossem uma versão normal do gênero. Esse panorama começa a mudar quando
na década de 1990 cria-se a categoria cisgênero. O movimento de categorizar as pessoas
cis parte da percepção da necessidade de problematizar o status que essa normalidade
teve ao longo da história, criando assimetrias socioculturais.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
264
O reconhecimento da diversidade de gêneros é um ponto de partida para a
compreensão das pessoas trans e o reconhecimento do direito à autodeterminação. Da
mesma forma que a transgeneridade representa um rompimento com a normatização
dos corpos e existências, a presença das pessoas trans nos espaços também concretiza
uma subversão do espaço abstrato.
O espaço pensado dentro dos moldes de produção de valorização do capital
tende a ser hierarquizado, homogeneizado, rígido em padrões de conduta e
comportamento. Porém, a presença de pessoas transgênero nesse espaço o subverte,
pois ele não foi pensado para acolher a diversidade.
Ao mesmo tempo que a experiência pode ser de embate e constrangimento, é
também de apropriação do espaço, de um espaço que não é mais apenas abstrato, pois
sua presença rompendo com a homogeneização pretendida faz daquele um espaço
diferencial. Esse espaço diferencial é aberto, em construção e em disputa, pois a
presença das pessoas trans o faz ser repensado sob uma lógica diferente da negação e
segregação.
A dupla subversão produzida pela ocupação desse espaço demonstra a
importância da presença dos corpos dissidentes das normativas, como as pessoas
trans/travestis, exercitando uma liberdade individual de autodeterminar-se e de
determinar mudanças no espaço urbano.
O corpo está na centralidade da análise realizada, pois é sobre ele, não apenas
na dimensão física, mas também subjetiva e social que recaem as inscrições e
enquadramentos que a utopia tenta projetar. No caso das pessoas trans a utopia se
apresenta como o enquadramento cis/heteronormativo que se impõe nas relações de
poder e que se estabelecem com o Estado e a sociedade. Porém, esses corpos resistem
e subvertem as imposições binárias e o discurso cisnormativo, criando em si mesmos
um espaço heterotópico. O espaço heterotópico possui caráter transgressor, fronteiriço,
resistente aos processos de enquadramento, sendo capaz de criar outros processos e
realidades.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
265
REFERÊNCIAS
ARARUNA, Maria Léo Fontes Borges. O direito à cidade em uma perspectiva
travesti: uma breve autoetnografia sobre socialização transfeminina em espaços
urbanos. Salvador, n. 8, v. 1, nov.2017-abr. 2018.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual de Diagnóstico e Estatística de
Distúrbios Mentais DSM III-R. São Paulo: Manole, 1989.
AZEVEDO, M. P. Corpos em resistência: um olhar sobre a noção de heterotopia
de Michel Foucault. Revista Colineares, Mossoró, v. 05, n. 02, p. 03-17, Jul/Dez, 2018.
BASTOS, Camila Diniz. et, al. Entre o espaço abstrato e o espaço diferencial:
ocupações urbanas em Belo Horizonte. Rev. bras. estud. urbanos reg. (online), RECIFE,
V.19, N.2, p.251-266, MAIO-AGO. 2017.
BECKER, Caroline Valada. Inscrições distópicas no romance português no Sec.
XXI. Tese (doutorado) Programa de Pós-Graduação em Letras (PUCRS), 180 f, 2017.
BUTLER, Judith. “Cuerpos que Importan” Sobre os límites materiales y
discursivos del “sexo”. 2002. Buenos Aires/Barcelona/México: Paidós. P.173.
BUTLER, J. Desdiagnosticando o gênero. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de
Janeiro, v. 19, n. 1, p. 117, 2009.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n1/v19n1a06.pdf>.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência Trad. Andreas
Lieber. 2019. Belo Horizonte: Autêntica. 189 pp.
DESLANDES, Keila (Coord.). Homotransfobia e direitos sexuais: debates e
embates contemporâneos. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
DUMARESQ, Leila. 15/12/2014. O cisgênero existe. Disponível em:
http://transliteracao.com.br/leiladumaresq/2014/12/o-cisgenero-existe/.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos III: estética: literatura, pintura, música e
cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
FOUCAULT, Michel. O Corpo utópico – As heterotopias. São Paulo, 2013.
CLAEYS, Gregory. “The origins of dystopia: Wells, Huxley and Orwell”. In: The
Cambridge Compagnion to Utopian Literature. Edited by Gregor Claeys. Cambriedge
University Press, 2010.
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio
Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000).
Primeira versão: fev.2006.
MARINHO, C. M. Corpo heterotópico como resistência aos processos de
subjetivação identitária: algumas questões filosófico-educacionais. [S.l.]: Foucault et alii,
2015. Disponível em: http://www.michelfoucault.com.br/?textos,37. Acesso em 20 de
junho de 2021.
MILANEZ, N. Corpo cheiroso, corpo gostoso. Unidades corporais do sujeito no
discurso. In: Acta Scientiarum. Language and Culture. Universidade Estadual de Maringá,
v. 31, n. 2. Maringá: Eduem, 2009, p. 215-222.
SILVA, Luciana Codognoto; JUSTO, José Sterza; PERES, Wiliam Siqueira. Psicologia
e Heterotopias: Um Estudo sobre a Prostituição de Mulheres Adultas em um Município
do Interior do Estado de Mato Grosso do Sul. Revista Latino Americana de Geografia e
Gênero, v. 9, n. 1, p. 7287, 2018. ISSN 21772886.
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
PPGDS/Unimontes-MG
266
VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de
gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como
normatividade / Viviane Vergueiro. - 2016. 244 f.: il. Orientador: Prof. Dr. Djalma Thürler.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2015.