https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n2p162-182
Vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
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AS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM CORDIAL E OS BESTIALIZADOS NO (NÃO)
EXERCÍCIO DA CIDADANIA BRASILEIRA
Ralph José Neves dos Santos
1
Recebido em: 27/03/2022
Aprovado em: 19/12/2022
Resumo: O tema proposto neste trabalho tratou das relações entre o Homem Cordial e os
bestializados no (não) exercício da cidadania brasileira. Desse modo, serviram como referências
as obras Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda e Os bestializados: O Rio de
Janeiro e a República que não foi (1987), de José Murilo de Carvalho. O principal objetivo do
estudo foi analisar as relações entre o Homem Cordial e os bestializados enquanto “não-
cidadãos”. O caminho metodológico percorrido foi fomentado pela pesquisa bibliográfica,
visando conceituar alguns temas relevantes como: cidadão/cidadania, Homem Cordial,
bestializados, atitude blasé, dentre outros. Destaca-se que esses foram caracterizados a partir
do conceito de “tipos ideais” de Max Weber. Os resultados alcançados foram condizentes com
as pretensões do trabalho, em especial no que tange às semelhanças entre o Homem Cordial e
os bestializados, demonstradas através do não-exercício da cidadania, visto que direitos
políticos e sociais pertenciam à minoria. Da mesma forma, foi possível entender o relevante
papel científico que a Sociologia traz às discussões acadêmicas, sobretudo quando ela foge às
tentações de alcançar a verdade absoluta, e se abre às novas reflexões e teorias.
Palavras-chave: Homem Cordial. Bestializados. Cidadão. Atitude blasé. República.
THE RELATIONS BETWEEN THE CORDIAL MAN AND THE BESTIALIZED IN THE (NON) EXERCISE OF
BRAZILIAN CITIZENSHIP
Abstract: The theme proposed in this work dealt with the relations between the Cordial Man
and the bestialized in the (non) exercise of Brazilian citizenship. Thus, the works Raízes do Brasil
(1936), by Sérgio Buarque de Holanda and Os bestializados: O Rio de Janeiro and the Republic
that was not (1987), by José Murilo de Carvalho, served as references. The main objective of the
study was to analyze the relations between the Cordial Man and the bestialized as “non-
citizens”. The methodological path followed was encouraged by bibliographic research, aiming
to conceptualize some relevant themes such as: citizen/citizenship, Cordial Man, bestialized,
blasé attitude, among others. It is noteworthy that these were characterized from the concept
of “ideal types” by Max Weber. The results achieved were consistent with the pretensions of
the work, especially with regard to the similarities between the Cordial Man and the bestialized,
demonstrated through the non-exercise of citizenship, since political and social rights belonged
to the minority. In the same way, it was possible to understand the relevant scientific role that
Sociology brings to academic discussions, especially when it escapes the temptations of reaching
the absolute truth, and opens itself to new reflections and theories.
1
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). ORCID: 0000-0003-3936-3442. E-mail:
ralphneves@yahoo.com.br
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Keywords: Cordial Man. Bestialized. Citizen. Blasé attitude. Republic.
LAS RELACIONES ENTRE EL HOMBRE CORDIAL Y EL BESTIALIZADO EN EL (NO) EJERCICIO DE LA
CIUDADANÍA BRASILEÑA
Resumen: El tema propuesto en este trabajo abordó las relaciones entre el Hombre Cordial y el
bestializado en el (no) ejercicio de la ciudadanía brasileña. Así, sirvieron de referencia las obras
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda y Os bestializados: O Rio de Janeiro y la
República que no fue (1987), de José Murilo de Carvalho. El objetivo principal del estudio fue
analizar las relaciones entre el Hombre Cordial y los bestializados como “no ciudadanos”. El
camino metodológico seguido fue incentivado por la investigación bibliográfica, con el objetivo
de conceptualizar algunos temas relevantes como: ciudadano/ciudadanía, Hombre cordial,
bestializado, actitud blasé, entre otros. Cabe destacar que estos fueron caracterizados a partir
del concepto de “tipos ideales” de Max Weber. Los resultados alcanzados fueron congruentes
con las pretensiones del trabajo, especialmente en lo que se refiere a las similitudes entre el
Hombre Cordial y el bestializado, demostradas a través del no ejercicio de la ciudadanía, ya que
los derechos políticos y sociales pertenecían a la minoría. Del mismo modo, fue posible
comprender el relevante papel científico que la Sociología aporta a las discusiones académicas,
especialmente cuando escapa a las tentaciones de llegar a la verdad absoluta, y se abre a nuevas
reflexiones y teorías.
Palabras-clave: Hombre Cordial. bestializado Ciudadano. Actitud de blasé. República.
INTRODUÇÃO
Este estudo teve como objetivo principal analisar as relações entre o Homem
Cordial de Sérgio Buarque de Holanda, conceituado no livro Raízes do Brasil (1936), e os
bestializados, do historiador José Murilo de Carvalho, apresentados na obra Os
bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi (1987).
De antemão, é importante ressaltar a distância cronológica entre essas obras.
Mesmo apresentando uma intersecção de 51 anos entre uma e outra, não é possível
afirmar que as relações entre elas inexistam. Nesse sentido, o estudo buscou
demonstrar que, ainda que a primeira obra não pudesse exercer algum tipo de
influência sobre a segunda, havia um fio condutor teórico que perpassava sobre o tema
pretendido neste trabalho.
Para tanto, primou-se por uma pesquisa bibliográfica, que envolvesse além das
duas obras supracitadas, outros autores que, em alguma medida, contribuíram para as
discussões aqui presentes, dentre eles: Simmel, Weber, Nietzsche e Jessé Souza.
Ademais foram também alvo de pesquisa algumas legislações, de modo especial àquelas
do século XIX, tais como a Constituição de 1891 e o Decreto n.º 3.029, de 9 de janeiro
de 1881, mais conhecido por “Lei Saraiva”.
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No primeiro momento do estudo, tornou-se relevante conceituar o cidadão,
buscando definir o seu papel enquanto habitante da cidade. Além disso, de modo menos
extenso, foi exposto o caminho que a palavra “cidadania” percorreu até a sua
importância atual. Torna-se necessário esclarecer que este estudo trabalhou o conceito
de cidadania na perspectiva aristotélica, que compreendia o ser humano como um ser
político, diferente da visão romana, que entendia o ser humano como o homo legalis,
cujo foco de ação é nos seus direitos e deveres.
Na sequência foram conceituados os bestializados, bem como o cenário no qual
eles viviam, e o Homem Cordial, a partir de uma fundamentação sociológica definida
por Sérgio Buarque de Holanda, e criticada por Jessé Souza. Vale destacar que tantos os
bestializados como o Homem Cordial, foram caracterizados e construídos ao longo do
texto a partir dos tipos ideais de Max Weber.
Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários
pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de
fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em
maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam
segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar
um quadro homogêneo de pensamento. (WEBER, 2006, p. 106).
Os resultados alcançados foram relevantes para que se pudesse buscar uma
resposta satisfatória ao problema verificado: Quais as relações existentes entre o
Homem Cordial e os bestializados no (não) exercício da cidadania brasileira? Nesse
sentido, para melhor entendimento e leitura, preferiu-se a ordem cronológica inversa,
apresentando primeiramente os cidadãos, em seguida os bestializados e por fim o
Homem Cordial.
O trabalho permitiu a compreensão de que as relações existentes entre o
Homem Cordial e os bestializados de fato existiram, todavia, as teorias expostas pelos
seus autores necessitam constantemente serem revisitadas, para que as verdades ditas
absolutas possam ser refutadas, e a Ciência possa cumprir fielmente o seu importante
papel.
Não foi possível (e não deve ser) eleger o Homem Cordial ou os bestializados, ou
mesmo seus autores, como “donos da verdade”, visto que os estudos sociológicos
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devem se preocupar, em primeira mão, conhecer as realidades nas quais vivem a
população brasileira. Nessa seara não o todo, mas sim as partes, e elas devem ser
analisadas à luz da ciência. O Homem Cordial não é o protótipo do brasileiro comum,
nem tampouco o povo de um estado pode ser chamado de besta, por “negligenciar” seu
papel de cidadão, mesmo esse cidadão estando privado de direitos políticos e sociais.
Tomando emprestadas as palavras de Roberto Mangabeira Unger, filósofo e
teórico social brasileiro, que prefaciaram a obra Os batalhadores brasileiros (2012), de
Jessé Souza, é preciso compreender que “Nas mesmas circunstâncias, diante de
constrangimentos e de oportunidades análogas, pessoas saídas do mesmo meio reagem
de forma dramaticamente divergente” (SOUZA, 2012, p. 15).
Não há fórmulas ou verdades absolutas quando se trata das Ciências Sociais, e o
papel do sociólogo é deixar isso evidente.
QUEM É O CIDADÃO?
No ano de 2018, em entrevista à BBC News Brasil, o ex-presidente do Uruguai,
José Mujica, declarou: “Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se
tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos” (BBC
NEWS BRASIL, 2021). À afirmativa de Mujica surgem alguns questionamentos: Quem é
o cidadão? O que ele faz? É possível defini-lo?
O dicionário, de forma objetiva, define-o como “Indivíduo que, por ser membro
de um Estado, tem seus direitos civis e políticos garantidos, tendo de respeitar os
deveres que lhe são conferidos” (CIDADÃO, 2021).
Buscando evidenciar a origem da palavra cidadania, o Dicionário Etimológico
apresenta-a como ascendente “Do latim civitas, que significa conjunto de direitos
atribuídos ao cidadão ou cidade” (CIDADANIA, 2021).
Nota-se que, mesmo de modo simplista, as definições acima denotam que o
cidadão é a pessoa provida de direitos e deveres, que vive em sociedade, devendo,
portanto, exercer a sua cidadania. Aqui, cumpre observar, que a palavra cidadania
possui uma concepção liberal, enraizada na tradição romana, pois caracteriza o ser
humano como o Homo legalis, ou seja, o homem portador de direitos e deveres.
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No entanto, vale destacar que o conceito de cidadania passou por diversas
transformações desde a sua origem, entendendo-se que os seus significados, na prática,
diferem-se bastante, especialmente entre a antiguidade e a modernidade.
Se na Antiguidade prevalecia a ideia de que o homem é um ser político e que
se encontra inserido em uma relação social onde o todo se sobrepõe às
partes, na Modernidade o indivíduo se liberta do poder absoluto de uma lei
divina ou natural, exterior a ele. Nesse momento, o Estado passa a ser
concebido como resultado da associação de indivíduos livres e autônomos,
por meio de um contrato social, de um pacto onde eles possam deixar o
estado de natureza e fugir da barbárie. (LIMA, JUNIOR e BRZEZINSKI, 2019,
p. 2.484).
Nesse sentido, diferentemente da visão do homem legal, o ser humano precisa
ser também entendido como “homem político”, no qual prevalecem como
características a liberdade, o diálogo e a persuasão, dentre outras. Nas palavras de
Arendt (2007, p. 35), “o ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido
mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência”.
Desse modo, compreende-se que o cidadão, além da portabilidade dos seus
direitos e deveres, deve também carregar consigo o entendimento de que o bem
comum é de extrema necessidade para o todo. É preciso, da mesma maneira,
compreender que o cidadão possui duas vidas, uma pública e outra privada. E saber
discernir que o “homem político” é tão ou mais importante quanto o “homem legal”,
pois ele necessita, enquanto cidadão, ter consciência pública e participação política.
O conceito de cidadania se torna então cada vez mais relevante. No Brasil, por
exemplo, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, refere-se à aludida palavra
como sendo um dos princípios fundamentais do país.
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a
dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa; V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988, art. 1º).
Entretanto, cumpre assinalar que o papel do cidadão pode e certamente vai
variar de acordo com a comunidade ou sociedade na qual ele vive. Desse modo, a
cidadania exercida pelos habitantes de um determinado local, seja cidade, estado ou
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país, poderá sofrer influências de acordo com o papel que o próprio Estado exercerá
sobre essa sociedade. Sendo assim, pode-se dizer que o conceito de cidadão ou de
cidadania no Brasil, na prática, é diferente do de outros países.
A aquisição da cidadania depende sempre das condições fixadas pelo próprio
Estado, podendo ocorrer com o simples fato do nascimento em
determinadas circunstâncias, bem como pelo atendimento de certos
pressupostos que o Estado estabelece. (DALLARI, 1998, p. 39).
Nesse sentido, não como determinar ou exigir que uma população ou
nacionalidade exerça a sua cidadania de forma mais contundente, uma vez que a
formação educacional daquela sociedade, certamente, será um dos fatores
determinantes para que a luta pelos direitos seja mais intensa, bem como o
cumprimento dos deveres também aconteça de forma plena. Nas palavras de Lima,
Junior e Brzezinski (2019, p. 2.490), “[...] para que o sujeito possa se tornar cidadão, é
necessário habilitá-lo à convivência social. Assim, a educação assume a centralidade na
discussão sobre a conquista da cidadania”.
É importante enfatizar que o exercício da cidadania não pode ser visto como
fruto da ação de um ou apenas de alguns indivíduos. É necessário que seja uma visão
coletiva, na qual todos os cidadãos possam desempenhar suas funções na sociedade,
sendo respeitados os seus direitos e exigidos os seus deveres, independente de classe
social, raça, cor, credo ou qualquer outra forma que busque classificar o indivíduo.
Assim sendo, é preciso que se compreenda que o Estado tem papel
preponderante na vida do cidadão, pois é quem oportunizará a participação dele no
exercício da cidadania, seja na criação e implementação de políticas blicas, seja no
acesso às oportunidades em todos os espaços – social, político e econômico.
[...] cidadania é a condição de acesso aos direitos sociais (educação, saúde,
segurança, previdência) e econômicos (salário justo, emprego) que
permitem ao cidadão desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a
de participar de forma ativa, organizada e consciente da vida coletiva no
Estado. (LIMA, JUNIOR e BRZEZINSKI (2019, p. 2.482)
Diante do exposto, é imperativo ponderar sobre o exercício da cidadania dos
brasileiros, de forma a não culpabilizá-los ou atribuir, de modo a generalizar,
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características culturais ou comportamentais que visem rotular o brasileiro como
desinteressado da luta de direitos ou pelo não cumprimento de deveres, elementos que
são fundamentais num país democrático.
Torna-se necessário, portanto, conhecer os contextos para entendê-los, bem
como os tempos nos quais estão sendo discutidos o papel do cidadão ou o exercício da
cidadania. É relevante pontuar que o indivíduo enquanto agente político possui,
coletivamente, poderes para transformar o local onde reside, todavia, pode não ter a
percepção acerca dos seus direitos e deveres, visto que não tem acesso aos principais
direitos sociais, apresentando assim desinteresse ou mesmo desconhecimento daquilo
que seja importante no seu papel de cidadão.
A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1996, art. 2º).
Pontua-se que a educação é hoje um dos pilares mais propalados por aqueles
que defendem o papel ativo do cidadão, sobretudo em países de regime democrático.
Mas nem sempre foi assim. Ainda que não se possa verificar a mesma importância da
educação em tempos remotos, visto que se caracterizaria como anacronismo, pode-se,
no entanto, ter a compreensão de que a sua ausência impediu, em certa medida, que
se pudesse pensar ou idealizar cidadãos não somente conscientes dos seus direitos e
deveres, mas com pensamento crítico, ou determinados a mudar os rumos da história.
Nessa esteira, surgem alguns questionamentos relevantes. Em momentos
importantes da história do Brasil, o brasileiro estava preparado para o exercício da
cidadania? Qual era o contexto no qual estavam inseridos os ditos bestializados? Pode-
se afirmar, por exemplo, que na mudança do regime monárquico para a República, em
1889, o povo brasileiro, de modo especial os habitantes do Rio de Janeiro, então capital
do Brasil, esteve alheio aos acontecimentos que culminaram no novo regime? A
população assistiu bestializada à Proclamação da República? A possível apatia em
relação aos acontecimentos daquela época seria uma característica cultural ou
comportamental predominante no brasileiro? Ou seria apenas uma atitude blasé?
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QUEM ERAM OS BESTIALIZADOS?
Com uma simples consulta ao dicionário é possível verificar que o bestializado é
aquele “que se assemelha a um animal, [...] que ficou irracional, [...] embrutecido”.
Diante de algo ou de um acontecimento o bestializado se imóvel ou surpreso, sem
nenhum tipo de reação quanto ao ocorrido. É a inação sua principal característica.
Assim, em 18 de novembro de 1889, Aristides Lobo, “o propagandista da
República”, em carta ao Diário Popular de São Paulo, referiu-se à Proclamação da
República, ocorrida três dias antes:
Por ora a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi
deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O
povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que
significava. (Carta de Aristides Lobo sobre o episódio de 15 de novembro de
1889). (PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA, 2021).
Em seu livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi
(Companhia das Letras, 2019), o autor José Murilo de Carvalho, ao referir-se à famosa
frase de Aristides Lobo, entende que há algo maior e subjetivo por trás da bestialização
do povo. “Trata-se da concepção e da prática da cidadania entre nós, em especial entre
o povo. Trata-se do problema do relacionamento entre o cidadão e o Estado, o cidadão
e o sistema político, o cidadão e a própria atividade política”. (CARVALHO, 2019, p. 6).
Nesse cenário, percebe-se que um dos problemas evidenciados pelo autor,
encontra-se no fato do cidadão não ter acesso ao sistema político, uma vez que, são
poucos aqueles que possuem o direito de voto, como apregoa o Decreto n.º 3.029, de 9
de janeiro de 1881, mais conhecido como “Lei Saraiva”, ratificado dez anos depois pela
primeira constituição republicana, datada de 24 de fevereiro de 1891.
Dentre as normas estabelecidas pela Lei Saraiva (1881), destacam-se duas:
[...] proibiu o voto de analfabetos. [...] Estabeleceu ainda que os imigrantes
de outras nações, em particular a elite de comerciantes e pequenos
industriais, e os que não fossem católicos, religião oficial do Império,
poderiam se eleger, desde que possuísse renda não inferior a duzentos mil
réis. (SENADO FEDERAL, 2021).
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Vale destacar que na primeira eleição após a publicação da Lei Saraiva,
“compareceram 96.411 eleitores, para um eleitorado de 145.296, menos de 1,5% da
população e menos de 1%, se considerados os eleitores comparecentes. [...]”. (SENADO
FEDERAL, 2021). Nesse sentido, e considerando a importância dos direitos políticos,
pode-se afirmar que pouco mais de 1% da população teve o privilégio de exercer os seus
direitos de cidadão.
É oportuno acrescentar que a população economicamente ativa do Rio de
Janeiro, nos anos 1890, era representada por 1,1% como pertencente à Classe alta
(banqueiros, capitalistas e proprietários), 27,4% como pertencente aos Setores
intermediários (profissionais liberais, funcionários públicos, profissões técnicas e
comércio) e 71,5% como Operariado e Proletariado (artistas, extração, manufatura,
transporte, serviço doméstico, jornaleiros e outros). (CARVALHO, 2019, p. 58).
Em relação ao eleitorado potencial do Rio Janeiro, a Tabela 1 traz os
quantitativos de cidadãos que poderiam votar.
Tabela 1 – Eleitorado Potencial do Rio de Janeiro, 1890
População fixa total
515.559
Excluindo menores de 21 anos, ficam
299.827
Excluindo as mulheres, ficam
174.565
Excluindo os analfabetos, ficam
118.704
Excluindo as praças de pré e frades, ficam
109.421
Fonte: (Carvalho, 2019, p. 66.)
Nesse cenário, cerca de 80% da população estava excluída do direito político do
voto, e os quase 20% restantes também não se interessavam por exercer esse relevante
direito. E por que isso acontecia, em especial no Rio de Janeiro? Uma possível explicação
é que “desde o Império, as eleições na capital eram marcadas pela presença dos
capoeiras
2
, contratados pelos candidatos para garantir os resultados” (CARVALHO,
2019, p. 67). Desse modo, votar era também considerado perigoso.
2
Pessoas que praticavam crimes, especialmente contravenções do tipo desordem, vadiagem,
embriaguez, jogo. Eram também chamados de capangas. (CARVALHO, 2019, p. 11-12).
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Consoante à exclusão dos direitos políticos da maioria da população, a
Constituição de 1891, a primeira republicana, em seu artigo 70, mostra claramente que
as condições políticas dos cidadãos permaneceriam as mesmas do Império.
São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da
lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as
dos Estados: 1º) os mendigos; 2º) os analfabetos; 3º) as praças de pré,
excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º) os
religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou
comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra
ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual. § - São
inelegíveis os cidadãos não alistáveis. (BRASIL, 1891, art. 70).
Grosso modo, o que se torna perceptível é que o papel do cidadão na sociedade
brasileira, ainda que muitas vezes enaltecido e utópico, com a esperança de que a
mudança do regime monárquico para o republicano trouxesse maior participação
popular nas decisões do país, pouco alterou. “A existência de 85,21% de iletrados,
considerando-se a população total, [...] chegavam a 82,63% se excluídos os menores de
cinco anos”, segundo Paiva (1990, p. 10), demonstra que o desinteresse pelo exercício
da cidadania é refletido na impossibilidade tanto de direitos políticos quanto sociais. É
compreensível o entendimento de que o cidadão é assim denominado por estar ou
viver na cidade. Além disso, nas palavras de Marshall (1967, p. 76) “A cidadania é um
status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade”. E entende-
se como status o mesmo conjunto de direitos e obrigações para todos, sem exceções.
Por outro lado, torna-se necessário pontuar que, apesar da educação (ou a falta
dela) ser um fator preponderante para a não participação popular no exercício da
cidadania, e ainda, que a ausência de direitos políticos também é um fator agravante a
favor da bestialização das pessoas, outros dois elementos podem caracterizar a
população daquela época como mera espectadora ou figurante dos acontecimentos.
O primeiro deles é retratado pelo próprio José Murilo de Carvalho, quando
afirma que o povo do Rio de Janeiro, “por ocasião das grandes transformações
realizadas à sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra”. (CARVALHO,
2019, p. 125). E explica, “o bilontra é o espertalhão, o velhaco, o gozador; é o tribofeiro”.
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Nessa visão, o brasileiro, de modo especial o que residia no Rio de Janeiro, não
assistia às mudanças políticas de forma desinteressada ou alheio ao que acontecia no
país. Esse cidadão, desprovido de direitos políticos e sociais, acreditava que nada havia
mudado, ou pelo menos, que nada mudaria no país. Portanto, as rebeliões, as revoltas
ou qualquer outro tipo de manifestação ocorrida naqueles tempos eram apenas reações
ou represálias provenientes de algumas tentativas do governo em aplicar as leis. O
bilontra não levava a sério o país, muito menos o surgimento da República. “O povo
sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não
era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era
o que se prestasse à manipulação”. (CARVALHO, 2019, p. 125).
E quanto à elite letrada, que possuía o privilégio de poder gozar dos direitos
políticos e sociais, era também indiferente aos acontecimentos? Basbaum (1957, p. 231)
responde: “Para a nossa intelligentsia, a República era mais um sentimento estético que
propriamente prático ou político. Era belo ser republicano, como era belo ser
abolicionista”.
Corroborando com o exposto e finalizando o seu entendimento, Carvalho (2019,
p. 54) percebe que diante das mudanças de regime, criou-se uma grande expectativa
em relação à população brasileira como um todo, na esperança de encontrar por estas
terras “[...] o cidadão ao estilo europeu, fosse ele o bem-comportado burguês vitoriano,
o jacobino de 1789, o eleitor bem informado ou o militante organizado nas barricadas”.
O segundo elemento, que pode ser atribuído ao povo do Rio de Janeiro como
característica comportamental, ocorrido no período de mudança da Monarquia para a
República, é a “Atitude Blasé”, conceituada por Georg Simmel, e que, em sua essência
[...] consiste no embotamento do poder de discriminar. Isso não significa que
os objetos não sejam percebidos, como é o caso dos débeis mentais, mas
antes que o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias
coisas, são experimentadas como destituídos de substância. Elas aparecem
à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; objeto algum merece
preferência sobre outro. (SIMMEL, 1973, p. 16).
Na visão de Simmel, a atitude blasé é caracterizada pela indiferença, pela
impessoalidade das pessoas em relação às outras e ao ambiente no qual estão inseridas.
Esse ambiente é o meio urbano, pois esse tipo de atitude é característica dos indivíduos
que vivem em grandes cidades, ocorrendo de forma distinta no ambiente rural.
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Para Waizbort (2013, p. 328), “o blasé é insensível, indiferente, fatigado,
saturado, lasso”. A insensibilidade ou indiferença diante dos acontecimentos da vida
cotidiana torna as pessoas mais objetivas, calculistas e racionais, tornando-as
socialmente mais distantes dos outros indivíduos.
Nessa perspectiva, o autor complementa:
[...] a cidade grande é um local de concentração, seja de dinheiro, de coisas
e pessoas, a qual exige do indivíduo o máximo de seus nervos. Em
contrapartida, a atitude blasé, a indiferença diante de todos e tudo, resulta
em uma desvalorização de todos e tudo e, consequentemente, no
sentimento de depreciação da própria individualidade (WAIZBORT, 2013, p.
329).
Diante desses atributos, a atitude blasé demonstra algumas semelhanças com os
aspectos comportamentais apresentados pelos autores em relação aos brasileiros ditos
bestializados, no momento de mudança da Monarquia para a República. A indiferença
ou a insensibilidade dos cidadãos no tocante aos acontecimentos políticos permite
indicar que o sentimento da população carioca era de desinteresse pelo que ocorria
naquele momento. Carvalho (2019, p. 123) concorda, salientando que “Diante dessa
situação, não era de estranhar a apatia e mesmo o cinismo da população em relação ao
poder”.
Nessa lógica, a apatia do bestializado, o cinismo do bilontra ou a indiferença da
atitude blasé, podem ser colocados no mesmo recipiente, onde certamente vão se
amalgamar, sem os riscos de um elemento repelir os demais.
No entanto, mais um elemento que pode ser adicionado nessa mistura,
proporcionando benefícios ou malefícios, dependendo da ótica na qual será analisada.
Essa nova substância, também de caráter cultural e comportamental, trata da
cordialidade do brasileiro, conceituada pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, na
figura do Homem Cordial.
QUEM É O HOMEM CORDIAL?
A expressão “Homem Cordial” foi usada pela primeira vez em data de 7 de março
de 1931, numa carta escrita por Ribeiro Couto, poeta e escritor, então funcionário do
Consulado do Brasil em Marselha, e enviada a Alfonso Reyes, embaixador mexicano no
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Brasil no período de 1930 a 1936. O objetivo da carta era cumprimentar o aludido
embaixador pela edição da revista Monterrey: Correo Literario de Alfonso Reyes. Abaixo
segue trecho da referida carta.
[...] É da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas, que
deve sair o ‘sentido americano’ (latino), a raça nova produto de uma cultura
e de uma intuição virgem o Homem Cordial. Nossa América, a meu ver,
está dando ao mundo isto: o Homem Cordial. O egoísmo europeu, batido de
perseguições religiosas e de catástrofes econômicas, tocado pela
intolerância e pela fome, atravessou os mares e fundou ali, no leito das
mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa daquela terra, a Família
dos Homens Cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por
duas características essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a
tendência à credulidade. Numa palavra, o Homem Cordial. Grifo nosso.
(BEZERRA, 2021, p. 125).
Fundamentando sociologicamente os traços do Homem Cordial de Ribeiro
Couto, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, expande o conceito do poeta,
dando um tom mais emotivo ao comportamento do brasileiro; enquanto o primeiro
ressalta os bons sentimentos do Homem Cordial, o segundo aponta que a polidez desse
“equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e
suas emoções”. (HOLANDA, 2014, p. 177).
Esclarecendo essas distintas visões, torna-se relevante reforçar que o Homem
Cordial de Holanda não é obrigatoriamente bom ou de sentimentos positivos. Nas
palavras do historiador e sociólogo “A inimizade bem pode ser tão cordial como a
amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem assim, da esfera do
íntimo, do familiar, do privado”. (HOLANDA, 2014, 241).
Desse modo, a cordialidade que vem do coração não possui necessariamente a
conotação positiva, uma vez que os sentimentos ruins, ainda que presentes no coração
das pessoas podem, conforme diz o autor, “iludir na aparência”. Assim sendo, o
brasileiro típico não expressa o que está sentindo, na tentativa de agradar os outros.
O homem cordial se apresenta, então, como o protótipo do não-cidadão, o
seu perfil não se adequa de forma alguma à esfera pública: ao fim e ao cabo
ele simboliza uma sociedade que prefere obedecer a assumir
responsabilidades, onde predominam sujeitos que são levados a concordar
em ser objetos. Grifo nosso. (GRECO, 2001, p. 74).
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Utilizando-se da máscara da polidez, o Homem Cordial esconde-se no meio da
sociedade, procurando libertar-se “[...] do pavor que ele sente em viver consigo mesmo,
em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”. (HOLANDA,
2014, p. 177).
Além disso, os adjetivos atribuídos ao Homem Cordial são formados a partir de
uma raiz cultural, onde predomina o tipo primitivo da família patriarcal. Nessa
perspectiva, os laços de sangue e de coração, são a base onde predomina a vida
doméstica e modelo de composição social entre os brasileiros.
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do
caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda
a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio
rural e patriarcal. (HOLANDA, 2014, 176).
O comportamento do Homem Cordial, baseado na família e no privado, é
também notado no trabalho, nas funções públicas e em todos os cenários de
convivência social. No Brasil, segundo Holanda, (2014, p. 175) “[...] excepcionalmente
tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a
interesses objetivos e fundados nesses interesses”.
Dessa forma, o público se mistura ao privado, e os interesses familiares ou
pessoais se tornam preponderantes na escolha dos ocupantes de funções públicas ante
a capacidade própria de cada indivíduo. E mais, o Homem Cordial renuncia ao seu papel
de protagonista, de fazer escolhas e tomar decisões, de dizer o que pensa, de viver a sua
própria vida, de gostar de si, em prol de uma vida coletiva, no sentido de que o outro (a
sociedade) reflete quem ele realmente é ou pelo menos quem gostaria de ser. Nas
palavras de Holanda (2014, p. 177) a vida em sociedade torna-se, para o Homem Cordial,
“uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-
se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”.
Ratificando o exposto, Souza (2007, p. 346) avalia que não lugar nesse
contexto “para o indivíduo abstrato e neutro”, pois “ele é sufocado por uma teia de
relações que é tecida sob o signo da cordialidade, mas sacramenta a hierarquia e a
desigualdade”.
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O Homem Cordial, em certa medida, parece abdicar-se do seu papel de cidadão,
ainda que talvez de forma inconsciente, visto que exime-se de participar da vida pública,
preferindo reduzir-se enquanto indivíduo ou mesmo esconder-se atrás de uma máscara,
mostrando-se quem de fato ele não é.
Para Holanda, o Homem Cordial reflete o tipo humano conceituado por
Nietzsche em Assim falou Zaratustra (Companhia das Letras, 2011):
Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e a vossa solicitude
exprime-se em belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é
apenas o vosso mau amor por vós próprios. É para fugirdes de vós que andais
em volta do próximo, e quereríeis converter isso numa virtude; mas pus a
claro o vosso «desinteresse». (NIETZSCHE, 2011, p. 59).
Diante disso, é possível crer que a figura do Homem Cordial, definida
sociologicamente por Sérgio Buarque de Holanda, bem como o bestializado conceituado
por José Murilo de Carvalho, tenham suas relações no que diz respeito ao exercício (ou
não) de cidadãos na vida política e social do país. No entanto, é preciso primeiramente
analisar se essas possíveis relações entre ambos estão ou foram fundamentadas em
achismos históricos ou em argumentos tendenciosos, e em seguida, trazer para a
discussão se elas podem ser evidenciadas.
Para tanto, importante se faz idealizar um diálogo entre o Homem Cordial e os
bestializados, no qual o tema principal seja o exercício da cidadania.
O POSSÍVEL DIÁLOGO ENTRE O HOMEM CORDIAL E OS BESTIALIZADOS
Não se pode negar que as três obras clássicas da Sociologia brasileira, dentre
outras tantas Casa grande e Senzala (Gilberto Freyre, 1933), Raízes do Brasil (Sérgio
Buarque de Holanda, 1936) e Os donos do poder (Raimundo Faoro, 1958), influenciaram
muitos autores brasileiros e estrangeiros nos estudos acerca da história e da cultura do
Brasil.
Nesse sentido, dizer que os bestializados de José Murilo de Carvalho em nada
tem relação ou não foram influenciados pelo Homem Cordial de Holanda, pode não ser
prudente, uma vez que, mesmo separados pelo período de 51 anos, se consideradas as
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publicações das obras, ou em torno de 45 anos se considerado o ano da Proclamação
da República e o período no qual foram desenvolvidas as ideias de Holanda.
Se fosse possível perguntar aos bestializados o que eles pensavam do seu papel
enquanto cidadãos na mudança do regime monárquico para o republicano, talvez eles
nem mesmo aceitassem o estereótipo de “bestializados”, afinal de contas, se apenas
1,5% da população possuía o direito ao voto, como pensar em mudanças ou em
participar delas num país no qual a maioria não tinha poder político? Ademais, como
exigir uma postura diferente da apatia, de pessoas sem qualquer vel de instrução ou
formação escolar, visto que 85,21% da população eram de iletrados?
Do mesmo modo, não é possível comparar o cidadão europeu com o brasileiro,
visto que a base da população brasileira, de maioria analfabeta, era composta em sua
maioria por pessoas que realizavam “serviços domésticos”. Enquanto em cidades como
Lisboa, Paris e Londres, os serviços domésticos representavam 13,5%, 11,3% e 9,5% da
população, respectivamente, o Rio de Janeiro possuía 30,3% dos seus habitantes
atuando na referida atividade. (CARVALHO, 2019, p. 60).
Percebe-se, nesse contexto, que não como reclamar do brasileiro uma
posição diferente em relação ao seu papel de cidadão, posto que as suas condições
econômicas, sociais e políticas eram demasiadamente inferiores aos dos europeus. Ao
exercício da cidadania política àquela época, Carvalho (2019, p. 68) sentencia: “[...] os
verdadeiros cidadãos mantinham-se afastados da participação no governo da cidade e
do país. Os representantes do povo não representavam ninguém, [...]”.
A pergunta a ser feita então é: O que os bestializados carregam no seu
comportamento de não-cidadãos que evidencia o caráter do Homem Cordial?
Pode-se dizer que uma das características marcantes do Homem Cordial,
conforme visto anteriormente é a sua abdicação de exercer o papel participativo do
cidadão, enxergando e apontando no outro as suas próprias imperfeições. Dessa
maneira, é possível compreender que o desinteresse pela política, por exemplo, é o
mesmo do bestializado. Entretanto, o Homem Cordial parece não assumir essa
irresponsabilidade ou negligência pela sua inação, enquanto o bestializado ou ignora as
suas possibilidades enquanto cidadão, ou se comporta como bilontra, entendendo que
o melhor é não levar a sério o que no seu entendimento não pode ser mudado.
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Nesse aspecto, o bestializado transformado em bilontra se mostra muito mais
semelhante ao blasé de Simmel, que em certa medida, usa a sua racionalidade para
compreender que algumas situações não podem ser mudadas, e assim sendo, se tornam
indiferentes. A atitude blasé, desse modo, combina-se com o “a apatia e o cinismo” da
população brasileira, apontados por Carvalho (2019, p. 123).
Outrossim, essa mesma atitude blasé conjuga-se com o Homem Cordial, visto
que a “desvalorização de todos e tudo” apontada por Waizbort (2013, p. 329) tem como
conseqüência o “sentimento de depreciação da própria individualidade”. Resumindo,
quando o cidadão demonstra desinteresse pelos seus semelhantes, ele manifesta
indiferença ou desprezo por sua própria pessoa, apontando isso no outro, em
conformidade com o pensamento de Nietzsche.
Diante de todo o exposto, é preciso também fazer algumas ponderações
relevantes quanto às características tanto do Homem Cordial quanto dos bestializados.
A primeira delas trata do determinismo que parece existir em algumas teorias e
estudiosos.
Quando refere-se à pseudo polidez do Homem Cordial, Holanda (2019, p. 177)
afirma que essa atitude “[...] é a forma natural e viva que se converteu em fórmula”. Por
se tratar de uma atitude humana, sendo assim suscetível aos mais diversos grupos de
pessoas e mesmo distinta a cada indivíduo, é arriscado tratar na Sociologia algo como
“fórmula”. Como fórmula entende-se algo rígido, rigoroso, imutável ou exato, como são
os cálculos da Matemática, Física ou Química. A fórmula da água não muda, é a mesma,
mas as atitudes de indivíduos em determinadas condições ou situações, certamente
serão diversas.
No livro A tolice da inteligência brasileira (LeYa, 2018), Jessé Souza tece críticas
relevantes em relação ao Homem Cordial de Holanda, afirmando que ele cria “um ser
genérico”, independentemente da classe social na qual o indivíduo esteja inserido.
Nessa visão, Souza (2018, p. 46), de modo objetivo, acusa Sérgio Buarque de Holanda
“[...] de não fazer o trabalho do sociólogo, que é reconstruir as precondições militares,
políticas, econômicas, tecnológicas e também culturais (sem idealizações que não se
aplicam à realidade) das relações desiguais entre classes e entre sociedades”.
Observa-se, a partir da crítica, que é comum em algumas teorias referir-se à
parte como sendo o todo. Desse modo, generaliza-se a cultura e o comportamento de
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uma população, neste caso de um país, a partir do pensamento de que todo brasileiro
possui características do Homem Cordial.
Souza (2018, p. 47) reforça sua convicção, alertando que “Transformar essa
questão complexa em um dado “cultural” prévio é ao mesmo tempo esconder e
legitimar o “dado”.”
A disseminação do pressuposto de que todo brasileiro é cordial pode também
ser notada nos bestializados, quando Aristides Lobo afirmou que o povo”, diante da
Proclamação da República, “assistira a tudo bestializado”, conforme assinala Carvalho
(2019, p. 5). Utilizando-se a lógica da crítica à generalização, “o povo” não era o do Brasil
e sim o do Rio de Janeiro.
Voltando ao Homem Cordial, Souza (2018, p. 47), em oposição aos fundamentos
sociológicos apresentados em Raízes do Brasil, insiste que o autor “[...] não leva em
conta os contextos institucionais nem os históricos da ação social, mas aparentemente
“explica” o mundo de modo tão simples e irrefutável”.
Ao fim do diálogo entre o Homem Cordial e os bestializados, é possível afirmar
que as relações entre eles não são do tipo familiar patriarcal
3
, portanto, não existe
intimidade ou proximidade entre ambos, mas sim o entendimento de que tanto um
quanto o outro, exerceram seus papeis de cidadãos, ainda que o Estado não tivesse
oportunizado a ambos condições adequadas de exercê-lo.
As máscaras por fim caíram. Os bilontras fingiram estar bestializados, enquanto
o Homem Cordial fingia ser polido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seria o fingimento uma característica básica do brasileiro? Ou um poderoso
artifício para garantir sua sobrevivência na sociedade? O dito popular “Cada um luta
com as armas que tem” parece se encaixar de modo perfeito na vida do brasileiro. Se
3
Na história da formação da sociedade brasileira, especialmente no período da colonização do Brasil, o
modelo de família que se formou foi o modelo patriarcal. O modelo patriarcal, como o próprio nome
indica, caracteriza-se por ter como figura central o patriarca, ou seja, o “pai”, que é simultaneamente
chefe do clã (dos parentes com laços de sangue) e administrador de toda a extensão econômica e de toda
influência social que a família exerce. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/familia-
patriarcal-no-brasil.htm
Veja mais sobre "Família patriarcal no Brasil" em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/familia-
patriarcal-no-brasil.htm
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não lhe são oportunizados direitos sociais como educação, saúde e segurança, ou
mesmo o direito político do voto, como ocorrera no fim do Império e início da República,
o jeito é fingir. Fingir-se besta, cordial, alheio a tudo, mas sempre com o sorriso no rosto.
No entanto, padronizar ou colocar todos no mesmo barco não parece ser a opção
mais prudente, afinal de contas os indivíduos não são iguais física, econômica ou
culturalmente. Determinar que o Homem Cordial está na essência de todo brasileiro ou
que toda inação é fruto de uma bestialização, é um erro comum de culturalização
4
. As
diferenças sociais, econômicas, culturais, educacionais e as suas devidas relações é que
permitem compreender como se dão os fenômenos e a forma que a Ciência utiliza para
tentar decif-los.
O objetivo deste trabalho foi alcançado quando a compreensão de que as
relações existentes entre o Homem Cordial e os bestializados ocorreram (ou ainda
ocorrem) na tentativa de encontrar uma resposta única e simplista para os problemas,
contraria a Ciência, que busca constantemente explicações plausíveis para as dúvidas
levantadas.
A importante obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, apesar de
todas as manifestações positivas favoráveis e do seu relevante conteúdo, apresenta
falhas, porém, não pode ser desconsiderada ou deixada ao esquecimento, visto que as
reflexões e novas teorias surgidas a partir dela é que compõem o processo natural da
Ciência. A Ciência não busca a verdade, mas explicações e argumentações que possam
ser discutidas, analisadas e evidenciadas à luz das teorias.
Desse modo, o Homem Cordial e os bestializados, e outros tantos “personagens”
da História do Brasil em seus mais diversos acontecimentos, podem sentar-se e
conversar. As relações existem e sempre existirão. O que não pode existir é a verdade
absoluta.
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