https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n1p3-7
Vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ
FUTEBÓIS, DISSIDÊNCIAS E RESISTÊNCIAS
Cláudia Samuel Kessler1
Enrico Spaggiari2
Aprovado em: 13/08/2022
Nas duas últimas décadas, os estudos sobre futebol, assim como a ciência, num
geral, expandiram uma visão antes limitada somente às práticas hegemônicas. Os
debates considerados mais interessantes, até então, eram aqueles que envolviam
temáticas econômicas, políticas ou sobre identidade nacional (DAMATTA, 1982),
envolvendo o que se entende como futebol-espetáculo, principalmente as estruturas e
dinâmicas relacionadas, por exemplo, aos clubes, torcidas e competições realizadas por
homens e promovidas por entidades esportivas, como a Copa do Mundo da FIFA e o
Campeonato Brasileiro Série A da CBF. É um futebol bastante restrito, tanto do ponto
de vista dos profissionais que conseguem ascender até este nível como também em
relação às pessoas que dispõem de recursos financeiros para acompanhar as partidas
nos estádios ou comprar produtos licenciados.
A capa escolhida para este dossiê, de autoria de Cassimano, fotógrafo paulista e
com olhar sensível às expressões periféricas, seja na arte, no esporte ou na música,
carrega muito do que queremos trazer à luz. O trabalho de Cassimano captura a
potência de corpos invisibilizados no cotidiano e que reivindicam espaços no cenário
urbano e cinzento. A exemplo disso, escolhemos a fotografia de uma peneira de março
de 2019, em que diversas garotas disputaram para representar a equipe Jardim
2Mestre e Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de
Estudos em Antropologia da Cidade (GEAC-USP), LabNAU (Laboratório do Núcleo de Antropologia
Urbana-USP) e do LUDENS - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas
(USP). Fundador e editor do Site Ludopédio. Email: enricospaggiari@gmail.com. ORCID:
0000-0002-7078-3827.
1Doutora em Antropologia Social pela UFRGS. Professora na Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: jornalista24h@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1292-6914.
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Jaqueline, na Taça de Favelas. Enquanto alguns vêem a favela como sinônimo de
violência ou de algo indesejado, o olhar mais apurado percebe que as vidas que
circulam nesse espaço, onde os campos não são verdes e bem cuidados (mas sim
áridos, arenosos e com irregularidades), trazem vida a ele, com desejos e sonhos que
muitas vezes não imaginamos.
Na fotografia da capa percebe-se a representatividade de mulheres na prática
esportiva. Se pode ver um campo sem grama donde o chão batido serve como terreno
para apresentar a força da bola chutada, enquanto homens que estão ao redor do
campo torcem, admiram ou até mesmo criticam as práticas ali apresentadas. São
corpos de mulheres jovens, de classes trabalhadoras, de pele não branca, que podem
ser magras ou gordas e que podem subverter a sexualidade normativa, causando
reações por ocupar o espaço público.
A visão mais voltada ao financeiro e ao rendimento, por vezes cega o olhar para
os diversos futebóis existentes, para a diversidade que existe naquilo que se costuma
classificar de maneira simplificada como o futebol”. Dentre os possíveis futebóis,
pode-se citar aquele que é praticado nas várzeas e que não é apenas sinônimo de
sociabilidade e de lazer, mas também oportunidade de ganhos para alguns jogadores
ou jogadoras, seja simbólica ou financeiramente.
O texto de Roberta Pereira da Silva aborda "A importância do futebol de
várzea para a população negra de São Paulo (SP)" com um viés que traz a questão da
racialidade a partir da fundação do Negritude Futebol Clube, equipe varzeana criada
em 1980 por seis jovens negros. Roberta traz à luz um futebol que serve como potência
e como resistência, inclusive como ambiente de luta pelo direito à cidade e seus
campos, como revela o texto produzido por Alberto Luiz dos Santos, Aira Bonfim e
Enrico Spaggiari, intitulado "Mapeamento do futebol de várzea de São Paulo (SP):
reflexões para processos de proteção ao patrimônio". Neste texto, a várzea é trazida
como lugar de reivindicação das camadas populares por um espaço citadino que em
muitos momentos lhes é negado. Espaços onde possam circular, expressar-se e serem
valorizados pela potência dos seus corpos e de suas performances.
A mesma várzea que demanda e aciona diversos mecanismos de preservação
nas grandes cidades, busca também reproduzir alguns preceitos mercadológicos do
circuito espetacularizado. Com o passar do tempo, este futebol hegemônico foi
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formatado para tornar-se um produto altamente rentável não apenas para jogadores,
mas também para empresários, clubes e empresas que associam suas marcas a
jogadores ou a clubes de futebol. O artigo de Marina de Mattos Dantas, intitulado
"Jogadores-peça, jogadores-produto e jogadores-empresa: elementos para a
compreensão de diferenças geracionais nas categorias de base de futebol" apresenta
as diferenças entre as gerações futebolísticas e critica o futebol ligado meramente a
questões mercadológicas, que se tornaram tão importantes para este esporte que
movimenta um potente mercado de circulação de corpos. Extrapolando a paixão
clubística (DAMO, 2007), a perspectiva da rentabilidade é bastante questionada por
Marina, que a lógica empresarial e a racionalidade neoliberal como algo que afasta
do lúdico, da paixão e da resistência.
A resistência observada em diversos espaços futebolísticos também foi
encontrada na inserção das mulheres em ambientes inicialmente pensados e
constituídos por homens e para homens. A dificuldade de mulheres entrarem nesta
área esportiva é trazida por Enny Vieira Moraes, Nivalda Pereira Coelho e Felipe
Eduardo Ferreira Marta no texto "A importância da oralidade para os estudos sobre a
mulher no futebol baiano: revisitando memórias". A partir do relato de duas atletas
que atuaram no futebol de mulheres do interior baiano em meados das décadas de
1970 e 1980, são apresentadas histórias marcadas pela precariedade financeira e pela
busca de recursos para continuar realizando uma prática que conferia às mulheres de
camadas populares alguma visibilidade e reconhecimento social.
De fato, o futebol é um espaço que no Brasil é muito ligado à expressão das
masculinidades, como mostra o artigo de Eric Seger de Camargo e Guilherme Gomes
Ferreira, intitulado "Inteligibilidade e hegemonia: diálogos com o futebol na relação
com a cis-hetero-normatividade". Este texto questiona a cisheteronorma como
parâmetro que organiza a vida esportiva, trazendo reflexão sobre a imposição de
adequação a corpos que desafiam a norma, tais como as identidades não binárias, as
travestis e intersexo. É um futebol que subverte e que tem se organizado também em
grupos de jogadores de futebol trans (CAMARGO, 2020) que reivindicam espaço no
campo esportivo.
Não apenas marcado pela binariedade e por uma masculinidade tradicional,
assim como os diversos outros esportes, o futebol é também um reduto de expressão
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de uma heteronormatividade. No artigo "A Coligay dentro da pedagogia do torcer", os
autores Gustavo Bandeira e Luiza Aguiar dos Anjos apresentam uma torcida
organizada vanguardista, que com assiduidade marcava presença nas partidas do
Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Era composta por homossexuais que se
apresentavam de maneira considerada muito animada, original e afeminada. Esta
torcida era denominada por muitos como "corajosa", pois apresentava sexualidades
dissidentes em plena época de Ditadura Militar.
Por fim, dentro de um futebol regido não por lógicas financeiras e
heteronormativas, mas também por discursos tecnocientíficos que idealizam corpos
adornados e sarados, a gordura corporal pode ser percebida como algo incômodo.
Neste sentido, Cláudia Samuel Kessler e Viviane Teixeira Silveira escrevem em
"Dobras incômodas: entre corpos gordos e práticas esportivas" sobre a influência da
cultura na análise dos corpos esportivos. Enquanto alguns profissionais do futebol
foram duramente criticados por apresentarem corpos com excesso de gordura, esse
mesmo excesso de massa corporal pode ser considerado positivo em outros esportes,
tais como jiu-jitsu e handebol. As autoras apresentam figuras esportivas que
demonstram potência em suas apresentações e que fazem com que se repensem
parâmetros biomédicos muito reproduzidos em nossa sociedade. Esses parâmetros,
muitas vezes atrelados a discursos da área da saúde, pouco representam o bom
funcionamento dos corpos e sequer alcançam a complexidade de cada particularidade
corporal.
Percebe-se, assim, que os textos reunidos para este dossiê buscam, a partir de
um esforço interdisciplinar e transregional, não descrever a profusão de circuitos
futebolísticos (DAMO, 2018) no Brasil, mas também revelar como essa diversidade de
formas de se viver e jogar atravessa recortes, temas e contextos que não estão restritos
somente ao universo esportivo. Embora não possa ser tomado como um balanço
totalizante do que se tem produzido nas universidades brasileiras, os sete artigos
abrangem um conjunto difuso e heterogêneo de práticas dissidentes, cujos arranjos
criativos rejeitam e subvertem os mecanismos reguladores e purificadores das
configurações convencionais, desvelando intolerâncias, assimetrias e desconfortos.
Não à toa que estas expressões corporais e esportivas insurgentes se
constituem também como experiências estéticas e políticas que mobilizam
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engajamentos e formas de resistência à estrutura social hegemônica (heteronormativa,
machista, racista, neoliberal e espetacularizada). Em meio às controvérsias que as
cercam, criam importantes espaços coletivos de discussão em contextos marcados por
múltiplas violências e formas de injustiça.
Esperamos que os artigos aqui reunidos estimulem novas pesquisas e reflexões
arrojadas, autônomas, inclusivas e éticas que, assim como as práticas dissidentes, têm
muito a contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária, justa e plural.
Boa leitura!
REFERÊNCIAS
CAMARGO, Wagner Xavier de. Transmasculinidades no/do futebol. Ludopédio,
São Paulo, v. 134, n. 21, 2020.
DAMATTA, Roberto (org.). Universo do. Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira.
Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982
DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e
na França. São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2007.
DAMO, Arlei. “Futebóis da horizontalidade epistemológica à diversidade política”.
FuLiA/UFMG, Belo Horizonte, v. 3, n. 3, p. 37-66, set./dez. 2018.
SANTOLIN, Cezar Barbosa; RIGO, Luiz Carlos. O nascimento do discurso
patologizante da obesidade. Movimento , v. 21, n. 1, p. 81-94, 2015.
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