https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n2p3-10
Vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ
TRAJETÓRIAS NAS UNIVERSIDADES: EXPERIÊNCIAS DA LEI DE COTAS,
TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS E EPISTEMOLÓGICAS
Camila Mainardi1
Marta Quintiliano2
Jacqueline da Silva Costa3
As políticas de ação afirmativa constituem um conjunto diverso de ações que
visam combater desigualdades raciais, étnicas, socioeconômicas e de gênero. Não se
trata, portanto, de uma medida específica. No âmbito do ensino superior, as ações
afirmativas incluem desde as formas de ingresso reserva de vagas e processos seletivos
específicos –, como ações com foco na permanência e acolhimento de estudantes
bolsas de estudo, políticas de assistência estudantil, criação de núcleos e/ou secretarias
de inclusão, alteração de currículos, capacitação docente, adequação de espaços, entre
outras que podem ser específicas e voluntárias em cada instituição ou adotadas por
determinação legal.4
Cabe ainda ressaltar que as ações afirmativas são resultado de saberes e da
atuação do movimento negro, como assinala Nilma Lino Gomes: “este movimento social
apresenta historicamente um projeto educativo, construído à luz de uma realidade de
luta (...)” (2011, p. 137). E que tem sido continuamente ampliadas, questionadas e
1Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, professora na Faculdade de Ciências
Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9161-0688. E-mail: camilamainardi@gmail.com
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0086-6667. E-mail: carpemubuntu@gmail.com
3Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, professora do Bacharelado
Interdisciplinar em Humanidades e do Curso de Pedagogia na Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira e do Mestrado Interdisciplinar em Humanidades. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6257-1288. E-mail: jacquelinecosta.sol@unilab.edu.br
4 Sobre o conceito de ação afirmativa ver “Ação afirmativa: conceito, história e debates” de João Feres
Júnior, Luiz Augusto Campos, Veronica Toste Daflon e Anna Carolina Venturini (2018)
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atualizadas por movimentos de estudantes negras/os, indígenas, quilombolas, trans e
travestis, como se verá nos manuscritos aqui reunidos.
Em 2022, ano de publicação deste dossiê, celebramos uma década da aprovação
da Lei 12.711/2012, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff, conhecida como
Lei de Cotas. Como uma modalidade de ação afirmativa, a Lei de Cotas trata do ingresso
em cursos de graduação das universidades e institutos federais, determinando que 50%
das vagas sejam preenchidas por estudantes oriundos de escolas públicas; com renda
per capita menor ou igual a um salário mínimo e meio; e autodeclarados/as pretos/as,
pardos/as e indígenas em proporção no mínimo igual à representação dos grupos na
população da unidade da federação em que a instituição se encontra (Brasil, 2012). A
Lei de Cotas foi alterada em 2016 pela Lei 13.409/2016, que incluiu a reserva de vagas
também para pessoas com deficiência (Brasil, 2016).
O acompanhamento das ações afirmativas tem sido realizado por grupos de
pesquisadoras/es em diferentes instituições. Destacamos as publicações atuais do
Consórcio coordenado pelo Núcleo Afro do Cebrap e pelo Gemaa/Iesp-Uerj e
disponíveis online5. Integrantes do consórcio, Adriano Souza Senkevics e Ursula Mattioli
Mell (2022) assinalam o aumento da participação de beneficiários da política de cotas,
no período de 2012 a 2016, em quase todos os cursos de graduação, com maior
transformação em cursos mais elitizados como medicina, relações internacionais,
odontologia, direito, engenharia e psicologia em que, até 2012, havia
predominantemente estudantes brancos/as.
No entanto, faz-se importante chamar a atenção que entre a garantia legal do
acesso à universidade e o ingresso de fato um enorme terreno, como mostram
autoras/es deste dossiê: Nakasone e Baierl sobre a ausência de matrícula de estudantes
com deficiência aprovados para o curso de Serviço Social na Unifesp; Quintiliano sobre
os desafios do acesso e da permanência de negras/os quilombolas; Oliveira et al. sobre
o ingresso de indígenas na pós-graduação em educação no Rio de Janeiro e Nyack que
tece reflexões críticas sobre os currículos eurocêntricos e os modos de produção de
conhecimento.
5 A produção do “Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022”, coordenado pelo Núcleo
Afro do Cebrap e pelo Gemaa do Iesp-Uerj, está disponível no Nexo Políticas Públicas”:
https://pp.nexojornal.com.br/index/2021/Cotas-2022. Ver também a publicação recente: Heringer,
Rosana e Carreira, Denise (2022)
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Estudantes negras/os quilombolas, não contemplados na Lei de Cotas, são
invisibilizadas/os no espaço acadêmico. Note-se ainda que estão, inclusive, ausentes das
pesquisas de avaliação das ações afirmativas. Frente ao déficit educacional,
principalmente em comunidades localizadas em territórios de difícil acesso, em que a
educação ‘de qualidade’ não chega, é importante pensar na inclusão desses sujeitos na
universidade a partir da ampliação da Lei. Para estudantes negras/os quilombolas e
indígenas, como mostram Autaki Waurá, Antonio Carlos Benites e Marta Quintiliano,
autores/a deste dossiê, a reserva de vagas e processos seletivos específicos para
indígenas e quilombolas é fundamental para a garantia do acesso.6
Considerando que os dez anos da Lei de Cotas7 não repararam as desigualdades
sociais e raciais, e que transformaram positivamente as universidades, sublinhamos a
importância de sua continuidade. A revisão prevista na Lei não implica sua nulidade.8
Ademais, as instituições de ensino têm autonomia para a manutenção das políticas de
ingresso.
Na pós-graduação, a ampliação da adoção de ações afirmativa é mais recente,
ainda que, como apontam Anna Carolina Venturini e João Feres Júnior (2020, p. 904),
houve aumento da adesão a esse tipo de política nos últimos anos, seja por iniciativa de
cada programa ou das instituições de ensino a que estão vinculados. Diferentes dos
cursos regulares de graduação, que possuem ingresso a partir de edital único e, no caso
das instituições de ensino federais, possuem norma regulatória específica, a Lei de
Cotas, os programas de pós-graduação estabelecem critérios próprios para a seleção de
ingressantes.9 Na pós-graduação outros grupos são beneficiados por ações afirmativas,
6Sobre a presença indígena no ensino superior, ver dados recentes em: Medaets, Arruti e Longo (2022).
7 experiências de cotas anteriores à Lei 12.711/2012: As universidades estaduais do Rio de Janeiro
adotaram as cotas raciais, por aprovação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj),
em 2001; na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a aprovação de tal política ocorreu em 2002 por
decisão do Conselho Universitário. Além destas, em 2004, as universidades estaduais do estado de Minas
Gerais, UEMG e Universidade Estadual de Montes Claros, adotaram cotas raciais e socioeconômicas para
ingresso em cursos de graduação (GOMES, Nilma Lino; SILVA, Paulo Vinícius Baptista da; e BRITO, José
Eustáquio de., 2021, p. 07)
8 Segundo o artigo sétimo da Lei: “No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será
promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de
estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.” (BRASIL, 2016)
9 A primeira instituição de ensino superior a instituir cotas na pós-graduação foi a Universidade do Estado
da Bahia (Uneb) em 2002, seguida da Universidade Federal de Goiás (UFG) em 2015, mais de dez anos
depois (Mello, 2021). Em 2016, foi publicada a Portaria Normativa 13 do Ministério da Educação que
dispõe sobre a indução de políticas de ações afirmativas na pós-graduação. Segundo Venturini, “apesar
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como pessoas trans, travestis, negros/as quilombolas e refugiados/as, além de
estudantes pretos/as, pardos/as e indígenas (Venturini, 2019). Contudo, Luiz Mello, a
partir de informações da Capes e do Inep, aponta que “(...) os cursos de pós-graduação
stricto sensu, na qualidade de espaço mais elitizado da formação acadêmica no Brasil,
são marcados pela ausência não apenas de estudantes pretas/os, pardas/os e indígenas
(...), mas também pela ausência de docentes desses mesmos grupos de cor/raça.”
(Mello, 2021: 108-9). Disto, infere-se que a democratização das universidades públicas
requer a manutenção e ampliação das ações afirmativas para todos os níveis de
formação e, inclusive, para a contratação de docentes.
Se numericamente a transformação no perfil discente é apontada por
publicações, inclusive das próprias instituições, muito mais diversos e nem sempre
previstos são os efeitos das ações afirmativas. Neste dossiê, ao tomarmos as trajetórias
nas universidades, nos interessa os efeitos, a experiência de cada um/a que entendemos
como reveladora e na sua maioria coletiva. Grande parte das pesquisas sobre as ações
afirmativas tem foco no desempenho acadêmico de alunas/os cotistas, com interesse
em produtividade e na avaliação de programas de pós-graduação. Nem sempre a
produção acadêmica dos/as sujeitos beneficiadas/os pelas políticas de cotas são
reconhecidas, nem estas/es são reconhecidas/os como sujeitos que refletem
criticamente e apontam caminhos para a própria universidade, para transformações
políticas e epistemológicas.
Os textos aqui reunidos, de pesquisadoras/es de diversas áreas antropologia,
educação, serviço social e direitos humanos abordam, a partir de inserções em
diferentes instituições, questões que contribuem para a avaliação das ações afirmativas
na graduação e na pós-graduação, revelam os avanços, mas também os desafios
persistentes e sempre atualizados para a superação do racismo, epistemicídio e
capacitismo. A partir das trajetórias acadêmicas, ou da ‘autobiografia’, como sugere
Antonio Carlos Benites, as/os autoras/es deste dossiê descortinam o racismo
institucional, o epistemicídio e o capacitismo presentes nas experiências e na ausência
de experiências, como nos contam Pedro Egidio Nakasone e Luzia Fátima Baierl sobre o
de não determinar a obrigatoriedade de políticas afirmativas nos cursos de pós-graduação, a Portaria
Normativa 13/2016 do MEC tem sido mencionada como um incentivo por diversos programas e
contribuiu para a criação dessas medidas, cujo número aumentou significativamente nos dois anos
posteriores à sua promulgação.” (2019, p. 85)
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ingresso de pessoas com deficiência no curso de Serviço Social da Unifesp que
precisam ser enfrentados por todes produtores do espaço acadêmico.
Segundo informações do IBGE, no censo demográfico realizado em 2010, entre
as autodeclarações indígenas foram contadas 305 etnias e 274 línguas indígenas (IBGE,
2012). Assim, no que diz respeito a ações afirmativas para povos indígenas, ainda que
estas tomem ‘indígenas’ como um dos grupos beneficiados, há que se considerar que se
tratam de uma diversidade de povos com modos de ser, histórias, epistemologias,
estratégias e interesses próprios o que, inclusive, reflete em seus trabalhos de
pesquisa.
Nesse sentido, os textos de Autaki Waurá, Antonio Carlos Benites e Marize Vieira
de Oliveira (Oliveira et al), pesquisadores/a indígenas, descrevem trajetórias
particulares, que ultrapassam o tempo-espaço da universidade, perpassam vivências
junto às famílias Wauja, aos sábios e sabiás kaiowá e guarani, ao movimento indígena,
e se encontram nos incontáveis obstáculos para acesso e permanência nos cursos de
graduação e pós-graduação. Autaki Waurá descreve sua trajetória de ‘insistência’ e
busca por formação escolar e universitária, bem como sua formação nos modos de ser
e viver do seu povo wauja. Como professor indígena, sua dissertação de mestrado, base
do texto publicado, trata da educação wauja com interesse especial pela reclusão
pubertária e pelos processos de manejo do corpo que nela ocorrem. Por fim, o autor
ressalta a importância da universidade para os povos indígenas “como modo de
fortalecimento das suas tradições e da luta por direitos específicos e reconhecimento”
(A. Waurá, neste dossiê).
A importância da universidade pública é também ressaltada por Antonio Carlos
Benites. Ao descrever sua experiência na acadêmica, tanto no curso de pedagogia em
uma faculdade privada como na Licenciatura Intercultural Indígena “Teko Arandu” na
Universidade Federal da Grande Dourado, o autor tece reflexões críticas sobre
diferentes cursos de formação de docentes e o ‘lugar’ nestes para a educação kaiowá e
guarani, para os aprendizados repassados pelos sábios e sábias de sua comunidade
kaiowá e guarani. Os dois autores, Autaki Waurá e Antonio Carlos Benites, atentam para
a importância dos cursos de Licenciatura Intercultural para a continuidade da formação
de professores indígenas e para o ingresso na pós-graduação.
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Marize Vieira de Oliveira, Ricardo Sant´Ana Felix dos Santos, Daniel Ganzarolli
Martins e Mariana Paladino compartilham a autoria do artigo que versa sobre as ações
afirmativas para indígenas em programas de pós-graduação em educação de cinco
universidades públicas no estado do Rio de Janeiro. A análise dos editais de seleção
identifica mecanismos que dificultam o acesso de candidatas/os indígenas. Por exemplo,
a exigência do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) exclui indígenas
do contexto urbano, grande maioria no estado do Rio de Janeiro. Por fim, a narrativa de
Marize Vieira de Oliveira problematiza a invisibilidade dos povos indígenas no estado e
como esta ressoa na formulação de ações afirmativas e no acesso à educação superior,
descortinando práticas racistas e excludentes.
Marta Quintiliano descreve sua experiência educacional desde a infância até o
ensino superior, marcada pelo racismo e pelos os desafios de acesso, permanência e
conclusão do curso de relações públicas na Universidade Federal de Goiás. Ao entrar no
ensino superior por meio do Programa UFGInclui e no decorrer da sua trajetória,
encontra-se com outras/os acadêmicas/os indígenas e negras/os quilombolas e formam
uma rede de resistência na universidade. O fortalecimento na coletividade e no
aquilombamento a partir de “redes de afeto, escuta e acolhimento” são estratégias para
sobreviver no território acadêmico. A (sobre)vivência também é parte do manuscrito de
Zwanga Nyack, cuja tessitura incita revisões na estrutura acadêmica a partir de
epistemologias negres e tensiona a própria forma narrativa. Quintiliano e Nyack, por
caminhos diferentes, apresentam ‘uma universidade em questionamento’, que está
sendo transformada ‘por dentro’: experiências das cotas, transformações políticas e
epistemológicas!
Pedro Egidio Nakasone e Luzia Fátima Baierl contribuem para este dossiê com
o único artigo sobre a formação de estudantes com deficiência, isso diz muito. Como
denunciam a/o autora, a partir da análise de dados sobre ingressantes no curso de
serviço social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o capacitismo opera para
manutenção da exclusão de pessoas com deficiência dos espaços de ensino. O acesso
garantido pela Lei é comprometido pela ausência de ações que assegurem a
permanência de estudantes com deficiência, inclusive de capacitação de docentes de
magistério superior e de políticas eficazes na educação básica.
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Como assinalado pelos autores Gustavo Eufrásio e Carmem Lúcia Costa, em
diálogo com a literatura sobre ação afirmativa, “a política de cotas é um mecanismo
fundamental na promoção de justiça social e de diversidade em espaços historicamente
marcados por desigualdades, como a universidade pública brasileira”. Garantidas pelo
princípio constitucional da igualdade, devem ser ampliadas e continuadas.
Por fim, esperamos que as contribuições presentes neste dossiê, inclusive de
autoria de pesquisadoras/es contemplados por políticas de cotas, que tecem
conhecimentos a partir de seus olhares, de suas experiências, constroem narrativas que
propõem o deslocamento da produção acadêmica eurocêntrica, e promovem, assim,
contra-narrativas, desperte nas/os leitoras/es desejos por transformações, justiça social
e sobretudo afetos. Boa leitura!
REFERÊNCIAS
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universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá
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de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência
nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Diário
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