https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n2p79-99
Vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
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AUTOBIOGRAFIA: UMA TRAJETÓRIA ACADÊMICA KAIOWÁ E GUARANI
Antonio Carlos Benites1
Resumo: Neste texto descrevo minha trajetória acadêmica de formação nos dois caminhos, na
universidade e nos conhecimentos indígenas kaiowá e guarani. Na universidade estive em dois
cursos de formação de professores. Cursei pedagogia em uma faculdade particular e conclui a
Licenciatura Intercultural Indígena na Universidade Federal da Grande Dourados. Mostro as
diferenças entre as duas graduações a partir de minha trajetória e da formação contínua do ser
aprendiz da escola xamânica dos indígenas tavyterã/kaiowá e guarani, experiência valorizada na
Licenciatura Intercultural e no mestrado em Antropologia Social. Ao final, trato das monografias
de outros pesquisadores kaiowá que passaram pelo ritual da academia. Cada um teve a sua
própria trajetória, diferente uns dos outros, e seu modo de produzir na academia. Eu também
entro nesse grupo de pesquisadores indígenas e continuo a caminhada de ser o aprendiz dos
saberes de coletivos de sábios e sábias kaiowá e guarani.
Palavras-chave: Trajetória Indígena. Formação Acadêmica. Aprendiz Indígena. Kaiowá e
Guarani. Autobiografia.
CHE REKO YPY ETE: TEMIGUATA AVA REKO NHEMOMBEYPY AMBUE TAVYTERÃ/KAIOWÁ E
GUARANI
Nhe’e mbyky: ko tembiapo kuatia je hai há’e ñe’e mby ky mi che rapypore rembiguata mbo’eroy
ambu’e guassu arandu renopu’a, ko jehaipe apapa che reko reroguata hague kuatia
rembipapape, há amombeu tape renopua nheanga ava tavyterã arandu reko. Reropua yvyraija
reko kuatiape nha ndereko etepy, upeixa amboguata ko jeha’i mbayri kuera rekopy. nha
nde rokope, a momarandy ave’i xereko mbaeixapa aiko arandu ambue rekope agueroguata
ave’i xe jave che reko ete há teko jary kuery apopeve mba’e mombey reko reroguata kaiowá há
guarani.
Nhe’e mbyku mi: Temiguata Ava Reko. Nhemombeypy Ambue. Yvyraija. Tavyterã/Kaiowá e
Guarani. Che Reko Ypy Ete.
AUTOBIOGRAPHY: AN ACADEMIC TRAJECTORY KAIOWÁ AND GUARANI
Abstract: In this paper I describe my academic trajectory on two different educational paths: at
the university and in Kaiowá and Guarani indigenous knowledge. At the university I attended
two teacher training courses: I studied pedagogy at a private college and I finished the
Intercultural Indigenous Degree at the Federal University of Grande Dourados. Based on my
trajectory, I show the differences between the two graduations and the continuous formation
as an apprentice in the shamanic school of the Tavyterã/Kaiowá and Guarani indigenous people.
This experience was valued in the Intercultural Graduation course and in the Masters in Social
Anthropology. In the end, I deal with monographs from other Kaiowá researchers who have
1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2652-5836. E-mail: benites@discente.ufg.br.
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already gone through the academy ritual. Each one had their own trajectory, different from each
other, and their ways of producing in the academy. I am also part of this group of indigenous
researchers, and I continue on the journey of being the apprentice of collectives' knowledge of
Kaiowá and Guarani wise men and women.
Keywords: Indigenous trajectory. Academic education. Indigenous apprentice. Kaiowá and
Guarani. Autobiography.
AUTOBIOGRAFÍA: UNA TRAYECTORIA ACADÉMICA KAIOWÁ Y GUARANI
Resumen: En este texto describo mi trayectoria académica de formación en dos sentidos, en la
universidad y en los saberes indígenas kaiowá y guaraní. En la universidad asistí a dos cursos de
formación de profesores. Estudié pedagogía en una facultad privada y concluí la Licenciatura
Indígena Intercultural en la Universidad Federal de Grande Dourados. Muestro las diferencias
entre las dos graduaciones a partir de mi trayectoria y la formación continua de lo ser aprendiz
en la escuela chamánica de los indígenas Tavyterã/Kaiowá y Guaraní, experiencia valorada en la
Licenciatura Intercultural y en la Maestría en Antropología Social. Al final, me ocupo de las
monografías de otros investigadores kaiowá que ya pasaron por el ritual de la academia. Cada
uno tuvo su propia trayectoria, diferentes entre sí, y su forma de producir en la academia. Yo
también me sumo a este grupo de investigadores indígenas y sigo en el camino de aprender los
saberes de colectivos de sabios y sabias kaiowá y guaraní.
Palabras-clave: Trayectoria indígena. Formación académica. Aprendiz indígena. Kaiowá y
guaraní. Autobiografía.
INTRODUÇÃO
Neste presente texto descrevo minha trajetória em dois cursos de graduação: a
licenciatura em pedagogia de uma faculdade privada que fica localizada no município
de Amambai, no estado de Mato Grosso do Sul, e a Licenciatura Intercultural Indígena
"Teko Arandu", de uma universidade pública no mesmo estado, localizada na cidade de
Dourados. Na sequência trato da experiência no mestrado em antropologia, realizado
na mesma universidade pública, na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
Federal da Grande Dourados. Faço também uma breve descrição dos ensinamentos
como aprendiz da “escola” xamânica kaiowá e guarani em que tive a iniciação ao
processo de construção de pessoa aprendiz do xamanismo.
Escrevo a partir de uma perspectiva kaiowá que olha a faculdade privada
criticamente. Seu modo de formar futuros professores/as para a educação básica, a
educação infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental (até o quinto ano), é totalmente
voltada para a educação não indígena e que objetiva o ingresso no mercado de trabalho,
promove a venda de conhecimento e, assim, incentiva a disputa individual dos
sujeitos/as para se inserirem no mercado de trabalho. Percebi que a faculdade privada
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na área da educação tem o objetivo de vender o conhecimento para a disputa de
empregos, que não tem o olhar especifico para outras comunidades não indígenas e que
não atende as demandas de pensar as escolas indígenas, a educação escolar indígena
que tem suas especificidades.
Já na segunda graduação, a Licenciatura Intercultural Indígena, curso específico
para a formação de professores/as kaiowá e guarani, que habilita para o exercício de
docência do sexto ano do Ensino Fundamental até o Ensino Médio e é um curso de maior
duração, a formação inicia com propostas pedagógicas voltadas para as escolas
indígenas. No segundo período começa a formação para uma área específica: Ciências
Humanas, Linguagens, Matemática ou Ciências da Natureza. Eu optei pela habilitação
em ciência humanas. Este curso tem o olhar mais especifico para as comunidades
indígenas kaiowá e guarani, busca o diálogo com a educação indígena que acontece fora
da escola, com as sábias e os sábios. Busca, então, dialogar com as práticas da educação
indígena, por meio de discussões sobre interculturalidade com o conhecimento não
indígena.
O curso de Licenciatura Intercultural Teko Arandu tem em sua proposta de
formação pensar na qualidade de uma educação escolar indígena para que possa se
construir entre dois contextos, não indígena e indígena. Procura tanto ser “mais
escolar”, valorizando a escrita, como reconhecendo a educação indígena e a oralidade,
enfatiza o ensino da oralidade para a escrita na formação indígena kaiowá e guarani. Na
educação intercultural nós buscamos dominar a escrita para exercer e ocupar os
espaços escolares e acadêmicos.
O curso de licenciatura indígena busca pensar uma formação múltipla a partir da
noção de interculturalidade, não tem olhar apenas para a formação em níveis de
conhecimento ou a disputa pela inserção no mercado de trabalho. A formação de
professores/as indígenas é pensada como um processo, ela não está dada e acabada.
Está sempre em processo de conhecer, falar, aprender, ouvir e também de escrever os
nossos saberes indígenas para as escolas indígenas e para as universidades. O mundo
da escrita é algo novo para nós indígenas. Estranhamos a escrita, mas estamos
escrevendo porque a nossa oralidade precisa ser ouvida no espaço acadêmico. Como
Valdelice Veron kaiowá sempre diz em seus discursos, é preciso “fazer o papel falar!”
(“nhamo nhe’e uka kuatia”). Este ‘papel’ também está no espaço das escolas e das
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universidades, com isto, podemos fazer das nossas oralidades uma escrita dos saberes
indígenas.
Um terceiro ponto que também destaco durante a minha trajetória é o de ser
um aprendiz xamânico. Tive, desde criança de “ouvir e ouvir”, observar e aprender.
Minha curiosidade sempre levou a perguntar sobre os cantos e as regras xamânicas.
Ainda busco aperfeiçoar os ensinamentos que recebi, fazer e praticar o canto e a reza
que também são o meu campo de resguardo para eu não adoeça em outros espaços,
como a universidade. É o que chamo de ‘meu cosmo defensivo’ (o outro mundo que
cuida de mim”), para que a minha mente, alma e corpo estejam sempre em equilíbrio,
che reko jara (o dono do corpo) que é uma parte de ser aprendiz. Che reko jara é um
conhecimento que preciso exercer em momentos e espaços certos. Que hoje nossos
cantos e rezas não fiquem na casa de reza, que suas práticas estejam também nas
universidades, salas de aula, encontros de movimentos indígenas e nas escritas.
Sou aprendiz de uma “escola xamânica” e busco sempre fazer o que me
ensinaram as sábias e sábios. Muito do que aprendi ainda não posso exercer devido a
minha idade ser considerada muito jovem para fazer cantos e rezas longos. A introdução
é o básico desses ensinamentos do canto e da reza que posso praticar em outros espaços
como a universidade. Isso também marca tal espaço com saberes que a escrita
acadêmica não conta. A pratica desses saberes é o suficiente para que sejamos
ouvidos em espaço que ainda devem ser descolonizados com as vozes indígenas.
Em síntese, neste texto trato da importância e das especificidades
experimentadas em uma faculdade pública e em uma privada, a minha formação kaiowá
e acadêmica para, nas considerações finais, sublinhar a importância da nossa presença
na universidade, da Leis de Cotas e das faculdades interculturais indígenas. Trata-se de
uma luta permanente pela presença dos povos indígenas nas universidades e pelo
reconhecimento dos saberes indígenas na sociedade não indígena.
RELATO DE UMA TRAJETÓRIA
O primeiro nome que recebi foi Ava Vera Rendy Ju e o meu nome não indígena
é Antonio Carlos Benites. Sou da etnia Kaiowá e Guarani no estado de Mato Grosso do
Sul. Nasci na aldeia indígena Jaguapiré, município Tacuru. A aldeia foi retomada no dia
20 de maio de 1991, data que, hoje, é o aniversário da aldeia Jaguapiré. Todo ano temos
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o ritual de comemoração desta data. Este é o lugar em que nasci, cresci, estudei. Foi
deste lugar que iniciei a primeira graduação em pedagogia em uma faculdade particular,
no ano de 2010. Na faculdade particular tive que conviver com pessoas da elite que não
gostavam de indígenas, então, eu não falava muito neste espaço, não saia muito da sala
de aula e fazia os trabalhos sempre sozinho. Tive alguns professores que entendiam, ou
pelo menos ouviam sobre os povos indígenas, mas outros e outras não queriam nem
saber quem somos nós, não queriam saber quem eu era na sala de um curso de
pedagogia onde seríamos habilitados para sermos docentes na área de educação infantil
e anos iniciais da educação básica. Neste mesmo curso fui desafiado pela professora da
disciplina Psicomotricidade e Ludicidades. Essa professora disse que não existiam
brincadeiras indígenas e jogos indígenas. Eu respondi: “existem sim, professora”. Então,
ela me disse: “Me prova, Antonio, e você não faz a prova da minha disciplina!”. Eu disse
“ok”, mas ela me colocou uma condição: que eu deveria levar as pessoas com os quais
estava em processo de aprendiz, até então a professora não conhecia como eu vivia em
aldeia de retomada, e que talvez acreditasse só por eu estar na faculdade.
Eu não tinha conhecimento sobre os nossos jogos e brincadeiras indígenas,
então levei as sábias e os sábios da comunidade com a qual eu estava aprendendo sobre
os nossos cantos, rezas, musicalização, entonação da voz, os ritmos de cada canto, sobre
a nossa alimentação na fase da juventude, o comportamento, as brincadeiras. O
processo de aprendiz é longo e vamos aprendendo no dia a dia na comunidade. Sempre,
desde criança, me aproximava mais das sábias e dos sábios. E então, sem a escola nós
tínhamos uma vida lúdica no nosso próprio modo de ser e foi assim que eu questionei a
professora sobre a existência das brincadeiras indígenas kaiowá e guarani. Para falar
sobre as brincadeiras e jogos indígenas fui até a minha vó, bisavó e um professor da
comunidade. Levei para eles, meus interlocutores e interlocutoras não “letradas”, o
formato da universidade.
Eles que tinham o conhecimento indígena em sua oralidade. Conversei com
eles e elas como sempre fiz, sempre conversando e dialogando aos poucos, tocando no
assunto da brincadeira indígena. Como sou aprendiz da cosmologia indígena kaiowá e
guarani sempre estava visitando, cantando, perguntado sobre as nossas narrativas
existentes até os dias atuais. Elas, a minha e bisavó, me contavam e cantavam as
palavras poéticas narradas por elas e eles que são as sábias e sábios da comunidade. E
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eu gostava de ouvir e não desviava a minha atenção das palavras narradas sobre os
cantos e as rezas, a importância delas para nossas vidas e para a vida das novas gerações.
Nesta época, eu já estava bastante tempo nas cantorias que fazemos toda sexta feira. A
cosmologia era algo que sempre me atraia. Desde a infância, sempre estava no espaço
da prática cultural cosmológica. Eu conhecia todos os anciões e anciãs da aldeia.
E então, para mim, como aprendiz, não tive dificuldade em conversar com as
sábias e os sábios, tive muita dificuldade de levá-los até a faculdade devido à
distância. Com a ajuda da comunidade e de familiares, levei duas anciãs e dois anciões
da comunidade para falar sobre os jogos indígenas e as brincadeiras indígenas kaiowá e
guarani. E então, eles e elas se apresentaram para a professora e demais colegas. Como
era uma faculdade particular, muitos ficaram chocados com a palestra deles/as. Assim,
acabei não fazendo a prova “padrão” da disciplina que basicamente era feita por meio
da leitura de artigos ou textos que deveríamos estudar e a partir deles, responder dez
perguntas em que cada uma valia um ponto. O resultado dessa prova comporia a média
da disciplina em que a nota mínima era sete. Caso não atingisse essa nota, teria que
realizar a prova de substituição com as mesmas perguntas, mas prova de substituição
era paga.
Então, eu me esforçava o máximo nas leituras, em quase decorar os artigos,
para não precisar fazer a prova substitutiva porque eu não tinha dinheiro para pagar.
Todas as disciplinas têm o mesmo método, a prova “padrão” avaliativa, assim muitas
pessoas sempre pagavam para fazer as provas substitutivas, algumas pagavam para
melhorar a média se não estivessem contentes com suas notas. Claro que estas pessoas
tinham condições de pagar pelas provas. No meu caso, tinha como objetivo atingir a
média porque eu não teria condições de pagar por provas substitutivas, então, evitava
ficar com a média baixa.
A faculdade particular tinha outros cursos e eu, por ser indígena, tinha
desconto na mensalidade que, neste período, não era muito cara. Com ajuda de minha
mãe, consegui concluir o curso de Pedagogia em quatro anos. Dos primeiros anos até o
último, eu ia e voltava todos dias de moto até a cidade de Tacuru. Saia às quatro horas
da aldeia, chegava cinco horas na cidade. De lá, pegava o ônibus para ir para outra
cidade que ficava à 70 km de Tacuru e retornava para casa à uma hora da madrugada.
Todo dia fazia este mesmo percurso. Quando chovia chegava mais tarde devido a
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estrada ser de chão, não asfaltada, e escorregadia. Por fim, a primeira graduação conclui
em 2014, defendi o Trabalho de Conclusão de Curso com o título “Língua de Ensino
Kaiowá e Guarani na Escola Indígena Tomasia de Vargas”. Quando eu fiz o pré-projeto
de pesquisa relacionado a este tema, a minha média de notas era muito baixa e eu não
tinha orientação.
Então, reelaborei o projeto buscando trazer o tema do ensino da língua
materna indígena kaiowá e guarani e da língua portuguesa, e aí, começaram a aceitar o
tema da pesquisa. Propus para a faculdade contratar professoras indígenas para que me
ajudassem no tema da pesquisa, mas a faculdade me orientava a buscar outro tema que
estivesse dentro dos parâmetros da educação não indígena. Tive que conversar com a
coordenação do curso sobre a possibilidade de continuar com o mesmo tema. Disseram
que se conseguisse alguém para me orientar poderia desenvolver a pesquisa. Perguntei
para vários professores e professoras se poderiam me orientar, muitos não davam
atenção à pesquisa que eu estava fazendo. Sempre me diziam para procurar outros
professores, que talvez eles poderiam me ajudar. quase no último semestre, a
faculdade contratou uma professora na área de linguística que foi a salvação para a
minha pesquisa. Fui atrás dela e pedi implorando para que ela me orientasse. Ela acabou
aceitando, então, escrevi para ela a pesquisa, ela foi gostando de ler e corrigindo.
Durante a escrita, foi montada a banca de defesa de monografia, escolhida pela
faculdade. Para a minha banca buscaram dois professores de outras faculdades, mas as
demais bancas eram formadas pelos professores da faculdade. Eu estranhei porque
a minha banca tinha professores de fora. Não sei o motivo, mas foi a única banca com
professores externos, o que me deu mais medo ainda. É claro que a correção do texto,
eu segui o jeito que a minha orientadora me pedia.
Durante a defesa, tive vinte minutos para apresentar a pesquisa de conclusão
de curso. Ensaiei bastante para não passar do tempo porque não podia passar o tempo
da defesa. Na defesa cada professor da banca podia fazer três perguntas relacionadas
ao tema da pesquisa. A banca foi composta por três pessoas: a orientadora e dois
professores que avaliaram a pesquisa. As perguntas foram feitas por eles e consegui
responder. Cada um deles fez duas perguntas, e o tempo de resposta foi de três minutos.
Respondi cada um deles no tempo que me foi dado.
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Depois deste momento, o texto passou por revisão ortográfica gramatical
realizada pela própria faculdade que cobrava uma taxa para pagamento da revisão e o
encadernamento do artigo final para compor a biblioteca da faculdade.
Após concluir a primeira graduação, em 2015, entrei no curso de Licenciatura
Indígena Intercultural Teko Arandu da Universidade Federal da Grande Dourado com
intuito de aprender algo que a universidade ensinava em seu currículo. Eu também
estava em processo de educação de uma escola xamânica, da escola tradicional. Achava
que a universidade ou faculdade ensinavam outra coisa, assim, fui também me
fabricando como pessoa de ‘aprendiz xamânico’. Fui também entender o ‘ser aprendiz
de universidade’. Comecei a caminhar nesse dualismo de pessoa como aprendiz dos
xamãs e aprendiz da universidade.
Iniciei uma faculdade indígena, totalmente diferente de onde tinha acabado de
concluir o curso de pedagogia. A busca por outra graduação era para entender o que
um curso especifico para docentes indígenas poderia me estimular a conhecer mais
sobre a interculturalidade que, até então, não tinha nem ideia do que era. Como
participava muito do movimento de encontro dos professores indígenas e do
movimento da Assembleia Geral (Aty Guassu) kaiowá e Guarani fui sempre ouvindo os
relatos relacionados ao curso de Licenciatura Intercultural voltado para as escolas
indígenas. Então, o interesse em conhecer um curso especifico e diferenciado foi um
dos motivos de cursar a segunda graduação, que me ajudou a ter mais conhecimento
didático relacionado aos nossos povos. Até então, eu tinha acabado sair de uma
faculdade totalmente colonizada e elitizada.
O curso de Licenciatura Intercultural me ajudou a questionar muito do que eu
aprendi no curso de Pedagogia e, claro, os estudantes indígenas da faculdade particular
recebiam muitas críticas porque sua formação não é especifica para as escolas
indígenas. Isso me instigou a buscar o curso especifico de licenciatura indígena kaiowá
e guarani.
O curso de licenciatura foi me desconstruindo aos poucos, principalmente em
relação ao ensino da língua materna, a importância da língua materna nas escolas
indígenas, de trabalhar com temas geradores que são temas que fazem parte do
cotidiano da comunidade. A escola deve fazer o letramento e a alfabetização de acordo
com a realidade da comunidade, deve buscar fortalecer as culturas indígenas kaiowá e
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guarani, fazer cantos poéticos com ritmo sincronizado e músicas de alegria e
festividades, diversão e ludicidade, que tem a dinâmica mais alegre na língua materna,
e são áreas afins da disciplina de alfabetização em língua e letramento da escrita. para
o curso de Pedagogia, na faculdade particular, o letramento e a alfabetização iniciam
com o sistema de escrita alfabética que é toda em língua portuguesa.
A diferença entre o curso de Pedagogia e de Licenciatura Intercultural está
também no modo de ensinar. O ensino em língua materna que é o guarani ocorre no
curso de Licenciatura Intercultural, no curso de pedagogia, o sistema de escrita e
leitura do alfabeto ocorre com a inserção da língua portuguesa. Então, essa é a maior
diferença do curso especifico que inicia com os valores culturais e as línguas maternas
presente em todas as disciplinas, o que está assegurado no currículo das disciplinas
obrigatórias. A pedagogia não indígena nos ensina a alfabetizar, ler e escrever
assimilando os códigos de uma língua, o português.
A formação no curso de Licenciatura Indígena Intercultural funciona, nos
primeiros anos, com o “bloco comum” onde são cursadas disciplinas pedagógicas para
o ensino, também onde a turma de setenta alunos fica por um período de um ano e
meio juntos. Há trocas de experiência de ensino e estudo entre comunidades, aldeias e
professoras/es, é uma dinâmica que aperfeiçoa também o primeiro contato em
apresentar seminário, simular o ensino nas escolas indígenas, problematizar as escolas
indígenas e diálogos, debates sobre as realidades de cada comunidade e aldeia kaiowá
e guarani no estado do Mato Grosso do Sul.
Após este bloco comum, as/os discentes devem escolher as áreas em que
deverão atuar futuramente. A Licenciatura Intercultural Indígena tem quatro áreas que
são: Ciências Humanas (habilitação em história, geografia, sociologia e filosofia),
Linguagem (habilitação em língua guarani e português, português e guarani, arte e
educação física), Ciência da Natureza (habilitação em ciências, biologia, física e química)
e Matemática que é uma disciplina só, não compõe com outras na área da exatas. A
escolha por cada área fica a critério das/os discentes que podem cursar as disciplinas
que estiver mais próxima ao seu perfil. Alguns escolhem a área de acordo com a
necessidade das comunidades por professoras/es para suas escolas indígenas.
O curso de Licenciatura Indígena tem o período de duração de quatro anos e
meio. Durante o curso, participamos de vários eventos indígenas e vários eventos
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acadêmicos. Era um contexto muito diferente da faculdade particular, mas diferente no
sentido bom. Eu gostava disso, de uma faculdade indígena que nos levava para o
movimento indígena kaiowá e guarani e também promovia eventos acadêmicos no
curso e fora dele. Isso era fantástico! O que era estranho para nós é que a nossa
presença incomodava os outros cursos da universidade porque íamos para o
Restaurante Universitário todos juntos e a nossa presença era um incomodo para os
outros. Nesse meio me vinha na cabeça tudo o que eu tinha passado no curso de
pedagogia, os olhares de estranhamento já com o preconceito sobre a diferença de ser
indígena kaiowá e guarani. Então, eu observava que dentro da sala de aula nós não
tínhamos esses olhares diferentes sobre nós. Quando estávamos em outros espaços da
universidade, sempre havia os olhares de preconceito sobre os indígenas na
universidade.
E sempre andávamos em grupos grandes nesta universidade, então
chamávamos ainda mais os olhares dos não indígenas. Na universidade, também
comecei a conhecer outros grupos que sofriam muito mais que a gente. A presença de
pessoas LGBTQIA+ também incomodava as pessoas. Os olhares de preconceito e de
discriminação sempre foi direcionado a esses grupos, mas eu tinha experimentado
um espaço onde preconceito, discriminação e estranhamento eram constantes, era o
contexto de uma faculdade particular. Então resistir a tantos olhares foi uma rotina
também neste espaço que conhecemos como Universidade Pública e que, no meu caso,
já tinha vivido em uma faculdade particular.
Durante a Licenciatura Indígena, o professor Levi Marques Pereira, muito
conhecido entre nós, Kaiowá e Guarani, quando eu estava sentado na sala de descanso
da Faculdade Indígena Intercultural Teko Arandu, no ano de 2016, sentou em minha
frente e me perguntou quem eu era e qual era minha família. Fui falando e ele me
conhecia desde de pequeno, durante sua pesquisa de campo relacionada a crianças
guaxo2, crianças que são adotadas pelas famílias próximas. Quando ficam órfãs, essas
crianças sempre ficam com tio, tia, avó, mas em grande parte sempre são os avós que
ficam com elas.
2 Título do trabalho de Levi Marques Pereira: A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos parentes:
espaços de sociabilidade infantil (2008).
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Levi me perguntou se não gostaria de fazer uma disciplina como aluno especial
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFGD. Como eu era graduado
poderia fazer. Ele contou da pesquisa que ele fez na aldeia e que ficou por um período
na minha casa. Eu não lembrava muito bem dele porque eu era muito pequeno, mas a
minha mãe conhecia ele. Ela falou que o professor Levi ficou um tempo em casa, que
eram as casas de retomada e que nós morávamos em uma dessas casas de retomada.
Ele também relatou a mesma coisa que a minha mãe. Depois que conversamos, ele me
chamou para fazer a inscrição para aluno especial na Pós-Graduação em Antropologia.
Fiquei de fazer sem muito entusiasmo, acho que estava cansado de passar por muitos
olhares de preconceito e discriminação. Como era uma pós-graduação, eu pensava que
ali devia ter muito mais preconceito e discriminação. Então, não fiz a inscrição.
No segundo semestre também abriu a inscrição para aluno especial, o
Professor Levi sempre incentivava os alunos para fazerem disciplinas como aluno
especial para testar o curso da antropologia. Neste período, no curso de Licenciatura,
tivemos a disciplina Introdução à Antropologia em que fui tendo mais curiosidade sobre
essa área. Neste mesmo período, no segundo semestre de 2016, a inscrição para a/o
aluna/o especial estava aberta, então, eu fiz a inscrição e fui aprovado. Passei a ir uma
vez por semana para Dourados para cursar a disciplina. Minha aldeia ficava em torno de
290 km de distância de Dourados. Durante as aulas da Licenciatura que ocorriam em
período de férias, cursava a disciplina de pós-graduação na parte da manhã, à tarde
continuava com as aulas na Licenciatura. Quando não tinha aulas na Licenciatura, vinha
de moto da aldeia até Dourados uma vez por semana.
No período de três meses conclui uma disciplina como aluno especial com os
professores Levi Marques Pereira e Leif Erickson Nunes Grunewald que chamava
Tópicos Especiais Diversidade Étnica e Direitos Socioculturais. Nesta disciplina me
propus o primeiro contato com área de antropologia. Nesta sala, erámos um grupo
pequeno de alunos, a aula tinha uma dinâmica mais leve e isso me encantava, pensava
que nem todos e todas tinham o preconceito e a discriminação. Neste espaço, durante
as aulas, ficava mais observando os colegas de sala porque muitos deles eram alunos
regulares e eu era apenas aluno especial que me sentia muito pequeno diante daquela
sala de aula e com um pouco de medo, tímido. Os professores buscavam sempre, a partir
dos textos, me envolver durante o debate. Procurei falar apenas o necessário porque
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ficava com medo da disciplina, porque os textos eram muito complexos e estava
acostumado com leituras mais voltadas para educação e pedagogia. Neste mesmo
período iniciava algumas leituras sobre território, linguagem e o contexto social nas
aulas da Licenciatura Indígena.
Conclui a disciplina como aluno especial e continuei nas aulas da Licenciatura
Indígena, e no ano seguinte, em 2017, fiz parte de um grupo de estudo de Etnologia
Indígena junto com a professora Aline Castilho Crespe, Levi Marque Pereira e Leif
Erickson Nunes Grunewald onde os debates foram leves e abertos, relacionados a
temática kaiowá e guarani e ameríndias das terras baixas, como também são conhecidos
os povos indígenas do estado de Mato Grosso do Sul. No grupo discutimos as pesquisas
dos alunos que estavam na pós-graduação. Eu era o único que ainda não estava na pós-
graduação, mas muitos que faziam parte do grupo de pesquisa eram professores da
UFGD. Os outros discentes estavam na pós-graduação e em fase de conclusão da
dissertação em antropologia, no nível do mestrado. Eu participei como ouvinte e
convidado. Durante os encontros de estudo, fui desafiado a fazer um projeto de
pesquisa sobre a cosmografia e a kaiowaologia. Na época eu nem tinha ideia do que
eram essas palavras, mas eu conhecia, desde de pequeno, a prática dessa terminologia.
Neste mesmo ano, no curso de Licenciatura, eu perguntei para o Levi Marques Pereira
se era possível fazer um projeto sobre a cosmologias indígenas e os donos primordiais
da iniciação do mundo kaiowá e guarani. Ele me respondeu: isso vocês podem
fazer”. Me mantive quieto, eu também não sabia responder, mas aquilo que ‘só nós
podíamos fazer’ eu não entendia direito. Fiquei com isso na mente por um bom tempo,
e fui também perguntar a minha bisavó Cristina Ximenes se era possível escrever, falar
sobre os iniciadores do cosmo kaiowá e guarani. Ela me disse: “você sabe tudo isso
por que está perguntando de novo? Então, fiquei mais perdido ainda com resposta
dela. Tinha duas respostas complexas: que nós podíamos fazer um determinado
estudo, e que, de outro lado, eu já sabia tudo isso.
Então, eu escrevia muito sobre esses termos da cosmologia e montava um
quebra cabeça, isso era apenas para eu entender melhor a cosmologia, como era
organizada no pensamento kaiowá e guarani. Claro que isso não me deu resposta
nenhuma, porque a resposta era eu fazer o projeto de pesquisa sobre a cosmologia e
seus iniciadores primordiais. Hoje isso está um pouco mais claro, na minha mente é tudo
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organizado, isso porque eu tive uma formação de aprendiz na educação tradicional.
Desde a minha infância até o dia de hoje ainda estou aprendendo com os sábios e sábias.
No ano de 2018, fiz de novo outra disciplina como aluno especial, “Autoria,
Autobiografia e Escritos Indígenas”. Fiz o mesmo trajeto do ano anterior, ia e voltava de
moto uma vez por semana da aldeia até Dourados. Também continuava cursando a
Licenciatura Indígena. Neste período, quando estava em Dourados ficava mais perto e
conversava mais com Levi Marques Pereira e Leif Erickson Nunes Grunewald e fui
incentivado e desafiado a escrever uma proposta de pesquisa sobre a cosmologia
indígena, especificamente sobre entender como foi iniciado o cosmo no pensamento
indígena kaiowá e guarani. Então, no primeiro semestre do ano de 2018, comecei
escrevendo aleatoriamente sobre isso, sobre como inicia o universo para nós kaiowá e
guarani.
Com a formação de aprendiz dos coletivos tradicionais, sabia muita coisa, mas
estas muitas coisas na academia não funcionam de acordo com o nosso pensamento.
Então, fiz o texto e pedi ajuda para organizá-lo. Leif Erickson Nunes Grunewald e Levi
Marques Pereira me ajudaram a organizar de forma sistemática e aprendi um pouco o
que é um projeto de pesquisa para um nível de ensino diferente do que eu tinha
aprendido no curso de Pedagogia.
Neste curso, por ser em uma faculdade particular, o conhecimento era vendido,
o que fui observar na Licenciatura Indígena com a propaganda do curso para vender
o conhecimento, assim, o ensino era muito superficial. entendi isso depois de estar
no terceiro ano da Licenciatura Indígena. Depois conclui o projeto, guardei por um
tempo. Neste momento, era aluno especial na disciplina “Autoria, Autobiografia e
Escritos Indígenas” e, no final, Levi Marques Pereira me disse para tentar o processo
seletivo de mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal da Grande
Dourados. Fiz o processo seletivo para ingresso no mestrado no segundo semestre do
ano de 2018 e não passei.
No ano seguinte, no primeiro semestre de 2019, me inscrevi para cursar a
disciplina Teoria Antropológica I com a professora Simone Becker, novamente como
aluno especial. Tive a oportunidade de ter mais acesso às leituras que falavam do
contexto da diferença. Eu tinha muito medo da professora durante as primeiras aulas.
Aos poucos fui interagindo mais com a aula e com textos. Fazia o mesmo trajeto de moto
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da aldeia até Dourados. Sempre conversava, dialogava e visitava o Levi Marques Pereira
em sua residência após a aula e depois retornava para aldeia. Ir e voltar da aldeia a
Dourados era uma viagem de três horas, isso quando não ocorria o imprevisto de furar
o pneu da moto e demorar mais para chegar. Era uma adrenalina pura essas viagens que
eu fazia de moto para estudar.
Então, no segundo semestre me preparei e melhorei mais um pouco o projeto
de pesquisa. Não troquei a proposta de pesquisa, só melhorei um pouco mais. As aulas
como aluno especial me ajudaram muito. As aulas da Licenciatura também me
ajudaram. No segundo semestre, me escrevi de novo para o processo seletivo de
mestrado em Antropologia Social e fui aprovado. Ainda estava cursando a Licenciatura
Indígena, ao mesmo tempo fazia o mestrado e a graduação. Conclui a graduação na
Licenciatura Indígena na área de Ciência Humanas no segundo semestre de 2021. No
semestre seguinte, em 2022, conclui o mestrado.
Durante o meu mestrado tive vários momentos bons e ruim também. Como eu
tinha cursado disciplinas como aluno especial, algumas foram aproveitadas no
mestrado, outras não, como a obrigatória que tive que fazer duas vezes, a disciplina
de Teoria Antropológica I. Isso porque ultrapassei o número de disciplinas estipulado
pelo programa que poderia aproveitar, então, fiz de novo a disciplina. No período das
disciplinas, eu refleti que para mim a universidade é o campo de pesquisa, e a
comunidade é a universidade, uma inversão do modo não indígena. Eu pensava muito
nisso porque onde consigo desenvolver a pesquisa é na comunidade, e onde eu busco
referência de leituras que fundamentam os conhecimentos indígenas é na universidade.
Penso que a universidade é o meu campo de pesquisa, por que ali eu não conheço o
espaço, e a comunidade é a universidade porque nela eu conheço o espaço de
conhecimento epistêmico indígena kaiowá.
Na dissertação busquei pesquisar com base no meu processo de aprendiz, com
interlocutoras e interlocutores que fazem parte do meu processo de aprendiz, traduzi,
reproduzi outros meios de conhecimentos para uma outra antropologia que possa ser
estudada pelos antropólogos/as indígenas kaiowá futuramente.
Durante a pesquisa de campo da dissertação eu fiz tudo de novo, refiz o
caminho do processo de aprendiz. Isso foi necessário para que eu tivesse um recorte na
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pesquisa, porque o conhecimento indígena kaiowá é complexo, em uma dissertação,
não cabe todo esse complexo conhecimento.
Para que possa produzir outra antropologia/kaiowalogia me propus referenciar
os autores indígenas que fizeram estudos sobre o nosso povo kaiowá. Busquei esses
autores indígenas que me conduziram a aperfeiçoar a antropologia ‘outra’ no olhar da
kaiowaologia.
Toda pesquisa feita por indígenas me serviram de base para escrever a
dissertação. A produção acadêmica desses indígenas mesmo sendo do meu povo kaiowá
e guarani são pesquisas únicas, as trajetórias acadêmicas deles e delas também são
especificas. Seus caminhos durante o percurso acadêmico são diferentes, mesmo a
formação no nosso modo próprio de ser é diferente devido aos múltiplos modos de ser
kaiowá. Somos semelhantes em nossas línguas, etnicamente, mas o modo de ser kaiowá
é múltiplo, nos adaptamos com o mundo e diferentes seres de forma dinâmica para
sobreviver e reaprender a viver com outros modos, como os de não indígenas, como no
próprio espaço das universidades.
Abaixo transcrevo algumas reflexões existentes nos escritos de alguns
intelectuais kaiowá.
Por exemplo, a discussão proposta pelo antropólogo kaiowá Tonico Benites
(2014), em sua tese de doutorado, sobre o movimento indígena e os conhecimentos e
práticas colocados em operação na reocupação de seus territórios tradicionais. Como
integrante de um coletivo kaiowá específico de xamã e rezador, que esteve e está
presente nas lutas pelo direito aos territórios indígenas kaiowá e guarani, e
considerando que seu pai era também um dos conhecedores dos saberes tradicionais
cosmológicos, ele demonstra a importância da volta aos territórios tradicionais para a
existência e uso da cosmologia indígena kaiowá, apresentando como o retorno ao
território acontece simultaneamente à recomposição de coletivos e com a atualização
de práticas e conhecimentos, em especial as rezas que reforçam todo este processo.
A importância depositada nos meus estudos se dá, sobretudo, pelo fato de
ser o próprio indígena capaz de narrar a sua história, a sua luta e
compreender as relações no mundo contemporâneo em que vive. Dessa
maneira sinto que estou sendo visto pelos outros indígenas como um
pesquisador, como um indígena informado e atualizado que pesquisa a
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história atual dos Guarani e Kaiowá e acompanha a luta pela regularização
da terra tradicional (tekoha). (BENITES, T. 2014, p.17).
Celuniel Valiente (2019), da reserva indígena Guapoy, no município de
Amambai-MS, em sua dissertação faz uma etnografia da produção dos múltiplos
coletivos, que são variações do modo de viver em contexto de reservamento territorial,
com seus modos próprios de viver e de produzir outro modo de ser, apesar da situação
complexa da reserva em sua estrutura de confinamento. Reafirma que, nestes locais,
onde agrupamentos de vários coletivos removidos dos seus territórios tradicionais
para os reservamentos criados pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio), a produção
de outros coletivos em sua própria parentela. Afirma que múltiplas parentelas dentro
de cada parentela no contexto de uma reserva indígena. Sobre o ingresso na pós-
graduação e sua produção, Celuniel Valiente escreve:
A entrada de Kaiowá na pós-graduação é recente e é possível que, muitas
vezes, os estudos por eles realizados possam, em certa medida, se conformar
aos modelos impostos pela academia. Mesmo assim, partimos da hipótese
de que é possível identificar diferenças na apresentação do conhecimento
indígena, nos textos produzidos por eles próprios. Esta pesquisa procura
assumir uma atitude consciente em relação à necessidade de buscar formas
de apresentação do conhecimento indígena a partir de suas próprias
matrizes conceituais, em diálogo com os conceitos da Antropologia.
(VALIENTE, 2019, p.20-21)
Claudemiro Pereira Lescano (2016), pesquisador kaiowá, produziu uma
dissertação sobre os pilares de educação kaiowá e as tentativas de aplicação dessa
educação na escola. Analisa o modo de ser tradicional - Jára Kwery - e o modo de ser
atual - teko angagua. Nesta oscilação pendular entre os dois modos de ser se situa a
transformação, o que pode ser muito instrutivo para pensar a vida social dos coletivos
xamânicos. Nesse sentido, este autor teve importância para a construção e a reflexão
de minha pesquisa.
Descrevo, na dissertação, o mundo vasto que existe na cosmovisão do povo
Kaiowá, composta de valores, elementos culturais, processos próprios de
ensino e aprendizagem, bem como a inserção das crianças Kaiowá para
manutenção, ressignificação e fortalecimento de identidade. (LESCANO,
2016, p.21)
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o pesquisador kaiowá Izaque João (2011) desenvolveu uma dissertação em
História sobre o batismo do milho saboró e do ritual cosmológico xamânico do jerosy
puku cantos longos - que são rituais que fazem parte da produção de agricultura e dos
alimentos tradicionais do povo Kaiowá. O estudo possibilita também compreender a
importância do cosmo xamânico dos Kaiowá, que também fazem comunicação
constante com os seres sobrenaturais, como os donos das plantas e das comidas, um
dos Jára Kwery do cosmo.
O surgimento das ideias para investigar sobre o ritual de batismo do milho
saboró entre os Kaiowá, nas referidas aldeias, foi motivado a partir das
observações do plantio deste produto alimentício nas famílias tradicionais da
comunidade de Panambi. A observação do cultivo desta espécie de milho
provocou minha curiosidade e a vontade de ampliar meus conhecimentos
sobre o assunto. Desde então, em diversas ocasiões, comecei a dialogar com
minha família a respeito da importância da festa do jerosy puku. Durante a
pesquisa sobre este ritual, percebi que o milho branco detinha fatores de
grande importância que norteiam as concepções do nosso povo (JOÃO, 2011,
p.14)
Esses autores fizeram a suas pesquisas com suas comunidades indígenas kaiowá
e guarani e fazem uma reflexão sobre a construção de uma pesquisa que nos abre o
olhar para outras antropologias e a kaiowaologia. De acordo com as pesquisas desses
autores indígenas, é de suma importância ter uma ótica de leitura que a escrita
acadêmica indígena é o meio de traduzir e registrar os conhecimentos indígenas kaiowá
e guarani.
O caminho da pesquisa que desenvolvi no mestrado considerou a importância
da autobiografia nos ensaios etnográficos, como os indígenas constroem a escrita
acadêmica propondo uma diferenciação em suas produções acadêmicas. Cada
monografia e percurso de pesquisa é único e resulta em uma produção antropológica
única. Nas citações acima estão como os atores indígenas percorreram a formação de
conhecimento de fora para dentro da academia e que essas etnografias trazem uma
diferenciação de pensamentos indígenas de acordo com seus regimes de
conhecimentos, de cada povo indígena, e aqui em especifico dos kaiowá.
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Por isso essa autobiografia traz o diálogo com os autores indígenas, para mostrar
que toda produção de escrita etnográfica indígena destaca a sua diferenciação no modo
de fazer antropologia e escrever em um contexto de academia. Assim, relato a minha
trajetória durante a formação acadêmica que tive neste espaço da universidade em que
também estou produzindo a partir da epistemologia kaiowá.
Toda a minha trajetória acadêmica foi de altos e baixos de convivência, então,
estar neste espaço, ocupar e resistir neste espaço, produz ciências indígenas com as
nossas trajetórias. É uma caminhada dura, difícil, muitas vezes abrimos mão da família,
da comunidade e de estar no nosso tekoha (território) para estar neste lugar acadêmico.
Descrevi aqui minha trajetória, da graduação até o mestrado, são as memórias
de uma formação que, na condição de ser indígena kaiowá, traz uma parte da minha
vida que construí na academia. Para mim não é fácil escrever sobre essa trajetória que
experimentei durante a formação acadêmica. Em muitos momentos da escrita parei de
escrever e busquei esta memória, o quanto temos que ser resistentes e que fui
persistente e ainda vivo continuamente na resistência.
Foi o que procurei fazer durante a escrita deste texto: parar e pensar. Ao pensar
passo pela memória de fatos ocorridos, de quantas coisa superei neste espaço
acadêmico, de quantas vezes a solidão foi provocada pela academia, as dores do
preconceito, dos olhares, das discriminações. Relembrar o que foi a vida acadêmica e
voltar no tempo, parar para pensar, parar de escrever e chorar um pouco. me dei
conta de tudo isso ao conseguir escrever as últimas páginas de minha trajetória, como
é difícil falar de mim no contexto de formação acadêmica.
Ao finalizar, superei as minhas próprias emoções de tristeza, solidão, mas
também de felicidade e de ser reconhecido pelas comunidades, famílias, parentes e
alguns docentes que são as pessoas que nos ajudam a sempre lutar para termos a nossa
voz de existir e resistir, para nossa resistência sempre ser fortalecida em qualquer
espaço que nós indígenas kaiowá e guarani estejamos estudando, trabalhando e
vivendo.
Por fim escrever não foi fácil, é uma escrita densa que afeta as nossas emoções
e reativa as memórias vivas que temos em nosso corpo. Passa uma memória, como um
filme de imaginação vivida, o quanto é dolorido estar neste espaço acadêmico que me
ajudou a continuar estudando para passar a mensagem que a resistência epistêmica
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indígena é necessária para o espaço acadêmico, que a minha presença neste espaço é
dizer não existe uma única ciência, mas que existem múltiplas e outras ciências que
também podemos fazer na universidade. Somos, afinal, pesquisadores de uma ciência
ainda pouco reconhecida no meio acadêmico. A nossa presença permite fazer outras
possíveis ciências. Não é apenas a presença de um corpo indígena na universidade, mas
a produção da ciência da oralidade para a escrita como uma ocupação de espaço
epistêmico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante o texto descrevi minha trajetória acadêmica de quase uma década em
que conclui dois cursos de graduação e o mestrado em antropologia social. Busquei
relatar na escrita que sempre tive que ser resistente mesmo frente ao desafio de
estudar, ler, escrever e do processo que aprendemos na universidade.
A Lei 12.711 (Lei de Cotas) nos deu uma garantia de estar na universidade, o que
é de suma importância para que os povos indígenas. Assim, podemos frequentar o
mesmo espaço dos estudantes não indígenas. Nossa presença na universidade é um
modo de resistência e ocupação de espaço, de retomada dos nossos saberes indígenas
que muito tempo estiveram silenciados na academia. Com a produções escritas -
artigos, dissertações, teses e livros estão registrados os nossos conhecimentos por nós
que não éramos vistos como escritores dos nossos próprios saberes.
O ingresso nas universidades é um caminho para conseguirmos continuar os
nossos estudos, onde construímos uma trajetória como sujeitos pesquisadores em luta
constante de resistência, como eu estou hoje, como muitos outros e outras estão e
como alguns estiveram. Um dos caminhos para que hoje s chegássemos a este
espaço da pós-graduação foram os cursos de licenciatura intercultural criados nas
universidades públicas. Esses cursos criados para atender as escolas indígenas, também
incentivam a continuidade na pós-graduação, então, a presença de estudantes
indígenas nas universidades públicas do Brasil.
Nossa presença nas universidades e a luta constante em caminhar pelo espaço
epistêmico, pelos nossos saberes indígenas kaiowá e guarani como uma ciência “nativa”
que estou/estamos produzindo. Como mostrei, não sou único indígena a estar na
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universidade. Para nós indígenas kaiowá e guarani isto é ocupar o espaço acadêmico e
fazer a luta da persistência na continuidade da resistência epistêmica, descolonizar o
espaço acadêmico que tem uma estrutura ocidental.
Ao logo do texto, tratei do processo de aprendiz em dois mundos, o primeiro
como aprendiz dos conhecimentos dos coletivos tradicionais do meu povo indígena
kaiowá e guarani, e o segundo, na escolarização acadêmica que também é um processo
de aprendiz. Assim, concluo esta autobiografia sobre a minha trajetória como aprendiz
dos conhecimentos indígenas e não indígenas. Sou apenas um aprendiz dos coletivos
tradicionais indígenas kaiowá e guarani, e de outro lado, na academia, sou pesquisador
indígena kaiowá e guarani em que também estou aprendendo neste espaço da
universidade pública, onde estamos presente para demarcar, ocupar, lutar e resistir
para que a nossas presenças não apenas ‘passem’ pela academia, mas que os nossos
passos sejam registrados para que outras e outros indígenas tenham conhecimentos
desses nossos registros futuramente. Como minha bisavó dizia ko’aga ore ronho’rairõ
yvyre, anga teno ndeve pe’e ore remiarirõ pe reko haguã pei ko há guã, há nhande gente
kuera oiko haguã(“hoje estamos lutando pelo nosso tekoha(aldeia) para que vocês que
são os nossos netos tenham um futuro para viver, morar e produzir parentesco”), assim
demarcar este espaço outro que seja sempre a memória viva na escrita para que as
gerações indígenas tenham acesso à produção de saberes kaiowá e guarani.
REFERÊNCIAS
BENITES, Antonio Carlos. Mba’e kuaa vusu/nhane Ramoî Jusu Papa Nhande
Ru Vusu Rembiapo: a topolologia do cosmo Kaiowá e da Construção de Donos e
Guardiões dos conheciementos. Dissertação (Mestrado em antropologia) - Universidade
Federal da Grande Dourados. Dourados, 2022.
BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o
movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação
de seus tekoha. Tese (Doutorado em Antropologia Social) UFRJ/MN. Rio de Janeiro,
2014.
JOÃO, ISAQUE. Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: origem e
fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi, Panambizinho e
Sucuri’y, Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em História) UFGD, Dourados,
2011.
LESCANO, Claudemiro Pereira. 2016. Tavyterã Reko Rokyta: os pilares da
educação guarani kaiowá nos processos próprios de ensino e aprendizagem. Dissertação
(Mestrado em Educação) – UCDB. Campo Grande, 2016.
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PEREIRA, Levi Marques. “A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos
parentes: espaços de sociabilidade infantil”. Anais do Encontro Anual da Anpocs, 2008.
VALIENTE, Celuniel Aquino. Modos de produção de coletivos kaiowá na situação
atual da Reserva de Amambai, MS. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
UFGD, Dourados, 2019