https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n1p126-153
Vol. 29, n. 1, jan/jun, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
what
ECOLOGIA POLÍTICA DA CONSTRUÇÃO SÓCIO-INSTITUCIONAL DAS RESERVAS
EXTRATIVISTAS NOS MARETÓRIOS DO PARÁ1
Éder Victor Oeiras Leite2
Carlos Valério Aguiar Gomes3
Resumo: As Reservas Extrativistas Marinhas (REMs) são Unidades de Conservação costeiras
que têm entre seus objetivos a proteção dos modos de vida e cultura das comunidades
tradicionais residentes e melhorias econômicas com o uso sustentável da sociobiodiversidade.
Na região das REMs na Amazônia brasileira, caracterizada por estuários e manguezais, os
atores locais resistem à noção terrestre de território, para, em vez disso, promoverem o
maretório (derivado das palavras em português para mar e território) como conceito espacial e
institucional. A institucionalização dessas REMs ocorreu a partir da mobilização das
comunidades diante de conflitos socioambientais, tais como a violação de regras de costume.
Este artigo busca identificar, i) as principais razões que levaram à criação e ampliação das REMs
e, neste contexto, ii) as evidências de normas de Direito costumeiro das comunidades
tradicionais. Foram analisados processos administrativos oficiais que contêm informações
fornecidas por atores das comunidades apontando para a ocorrência de um conflito comum: a
ameaça à pesca artesanal tradicional. Esse conflito envolve principalmente práticas de pescas
predatórias que ameaçam o ecossistema do mangue e a pressão externa da pesca industrial.
Por fim, evidenciou-se a relação direta da violação do Direito costumeiro, o surgimento de
conflitos socioambientais e as demandas pela institucionalização do maretório.
Palavras-chave: Reservas Extrativistas. Comunidades tradicionais. Conflitos socioambientais.
Direito costumeiro. Maretório.
POLITICAL ECOLOGY OF THE SOCIO-INSTITUTIONAL CONSTRUCTION OF EXTRACTIVE RESERVES
IN MARETÓRIOS OF PARÁ
Abstract: The Marine Extractive Reserves (MERs) are coastal protected areas that have among
their objectives the protection of the lifeways and culture of the traditional resident
communities and economic improvements with the sustainable use of socio-biodiversity. In the
region of the MERs in the Brazilian Amazon, characterized by estuaries and mangroves, local
actors push-back against the terrestrial notion of territory to, instead, promote maretório
(derived from the portuguese words for sea and territory) as a spatial and institutional concept.
The institutionalization of these MERs occurred through the mobilization of local communities
facing socio-environmental conflicts such as the violation of customary rules. This article seeks
to identify, i) the main reasons for the creation and expansion of the MERs and, in this context,
3Professor do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF). Universidade Federal do Pará
(UFPA). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9697-7788. E-mail: valeriogomes@ufpa.br.
2Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustenvel. Universidade Federal do Pará
(UFPA). ORCID iD: https://orcid.org/0009-0002-3180-8902. E-mail: oeirasleite@gmail.com.
1Trabalho realizado como parte da pesquisa de Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento
Sustenvel, Programa de Pós Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA), Instituto Amazônico de
Agriculturas Familiares (INEAF), Universidade Federal do Pará (UFPA), com apoio do CNPq.
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ii) the evidence of customary laws of traditional communities. We analyzed official
administrative processes that contain information provided by community actors pointing to
the occurrence of a common conflict: the threat to traditional artisanal fishing. This conflict
mainly involves predatory fishing practices that threaten the mangrove ecosystem and external
pressure from industrial fishing. Finally, we found evidence of the direct relationship between
the violation of customary law, the emergence of socio-environmental conflicts and the
demands for the institutionalization of the maretório.
Keywords: Extractive Reserves. Traditional communities. Socio-environmental conflicts.
Customary law. Maretório.
ECOLOGÍA POLÍTICA DE LA CONSTRUCCIÓN SOCIOINSTITUCIONAL DE RESERVAS EXTRACTIVAS
EN MARETÓRIOS DE PARÁ
Resumen: Las Reservas Extractivas Marinas (REM's) son zonas costeras protegidas que tienen
entre sus objetivos la protección de los modos de vida y cultura de las comunidades
tradicionales residentes y mejoras económicas con el uso sostenible de la socio-biodiversidad.
En la región REM’s de la Amazonia brasileña , caracterizada por estuarios y manglares, los
actores locales se resisten a la noción terrestre de territorio y, en su lugar, promueven el
matetório (derivado de las palabras portuguesas para mar y territorio) como concepto espacial
y institucional . La institucionalización de estos REMs se dio a partir de la movilización de las
comunidades locales frente a los conflictos socioambientales, como la violación de las normas
consuetudinarias. Este artículo busca identificar, i) las principales razones que llevaron a la
creación y expansión de la REM y, en este contexto, ii) la evidencia de las normas de derecho
consuetudinario de las comunidades tradicionales. Se analizaron procesos administrativos
oficiales que contienen información proporcionada por actores comunitarios que apuntan a la
ocurrencia de un conflicto común: la amenaza a la pesca artesanal tradicional. Este conflicto se
refiere principalmente a las prácticas de pesca depredadora que amenazan el ecosistema de
manglares y la presión externa de la pesca industrial. Por último , encontramos evidencia de la
relación directa entre la violación del derecho consuetudinario, el surgimiento de conflictos
socioambientales y las demandas por la institucionalización del maretório.
Palabras-clave: Reservas extractivas. Comunidades tradicionales. Conflictos socioambientales.
Derecho consuetudinario. Maretorio.
INTRODUÇÃO
As Reservas Extrativistas (RESEX) estão entre os tipos de áreas protegidas que
integram o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) no
Brasil. A criação de uma RESEX, enquanto categoria de Unidade de Conservação (UC)
está disciplinada pela Lei Federal 9.985/2000 e seu Decreto de regulamentação
(Decreto 4.340/2002) (BRASIL, 2000, 2002).
As RESEX são áreas de uso por comunidades tradicionais que têm o
extrativismo como principal atividade para sua reprodução social e melhorias nas
condições de vida. Possuem os objetivos básicos de proteção aos meios de vida e
cultura das populações, assegurando o uso sustentável de recursos naturais (BRASIL,
2000), aqui compreendidos como sociobiodiversidade, visto que, correspondem a
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elementos indissociáveis na relação sociedade-natureza dessas comunidades
(DIEGUES, 2005; 2008; CAVEDON e VIEIRA, 2008).
Reservas Extrativistas Marinhas (REMs) são as RESEX assim chamadas quando
criadas nos ecossistemas costeiro-marinhos (VIVACQUA e RODRIGUES, 2018), como as
REMs do Nordeste do estado do Pará ou Nordeste Paraense, espaço de pesquisa do
presente artigo.
A criação das RESEX deve ser pleiteada por populações interessadas e
geralmente é caracterizada pela demanda de comunidades tradicionais em razão de
ameaças aos seus modos de vida e à sociobiodiversidade (FADIGAS e GARCIA, 2010;
VIVACQUA e RODRIGUES, 2018). Estas ameaças, em certo grau, chegam a configurar
conflitos entre sujeitos, neste caso específico, denominados de conflitos
socioambientais por estarem relacionados diretamente a grupos sociais tradicionais e
ao ambiente que lhes é intrínseco (LITTLE, 2001; MOREIRA, 2017).
Dessa relação, os modos de vida das comunidades tradicionais também
implicam na formação de costumes capazes de gerar normas de convivência que
balizam as relações comunitárias, seja entre indivíduos ou entre estes e o próprio
ambiente, no que constituem um Direito costumeiro transmitido entre gerações
(ALMEIDA, 1989; BENATTI, 2013).
Assim, buscou-se identificar as principais razões que levaram à criação das
REMs no Nordeste Paraense e, neste contexto, evidências de conflitos decorrentes de
transformações sociais que incidem no cumprimento das regras de Direito
costumeiro. Para tanto, foi utilizada a técnica de pesquisa documental, cuja fonte
reside nos processos administrativos que pleitearam a criação ou mesmo ampliação
das REMs do Nordeste Paraense, primeiramente junto ao Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renoveis (IBAMA). Depois, junto ao Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que passou a ter a
competência como órgão gestor das RESEX federais a partir de 2007 (BRASIL, 2007)4.
O fundamento para a criação das RESEX é antes analisado a partir dos trâmites
administrativos que mais envolvem a escuta das comunidades pelo Estado tutor: os
estudos técnicos e a consulta pública (BRASIL, 2002). No mesmo sentido, são
4A Lei Federal 11.516/2007 cria o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
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inseridos nos processos motivações das comunidades por meio de documentos como
abaixo assinados”, memórias e atas de reuniões.
O acesso aos dados contidos nos processos administrativos ocorreu no ano de
2020 e foi garantido por meio da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal
12.527/2011) de forma virtual, ressaltando-se o contexto da crise sanitária
ocasionada pela Covid-19.
Trata-se de pesquisa interdisciplinar qualitativa que abrange as áreas das
ciências sociais aplicadas e ciências humanas a partir dos campos do Direito e da
Sociologia (CAPES, 2017) ao tratar os conceitos de direito ejustiça socioambiental, e
conflito socioambiental, além da Ecologia política.
A Ecologia Política é adotada como ferramenta de análise transversal, visto que
tem por objeto de estudo o conflito socioambiental, também englobando elementos
de Direito e justiça, atuando como campo de convergência entre os conceitos. Por sua
vez, os conflitos socioambientais identificados são então classificados a partir da
proposta de Paul Little (2001), que propõe as tipologias dos conflitos em torno de
controle sobre recursos; conflitos em torno dos impactos gerados pela ação humana e
natural; e conflitos em torno do uso dos conhecimentos ambientais.
RESERVAS EXTRATIVISTAS: DOS TERRITÓRIOS AOS MARETÓRIOS
Compondo o campo de análise do presente trabalho, está o instituto jurídico
da RESEX, categoria de área protegida que foi incorporada ao SNUC no ano 2000, com
a Lei Federal 9.985. Após um percurso marcado pela origem nos movimentos
sociais na Amazônia, aliado ao apoio do movimento ambientalista nacional e
internacional, a RESEX tornou- se instrumento da política pública ambiental, sendo
inicialmente instituída pelo Decreto Federal 98.897/1990, onde passou a integrar o
ordenamento jurídico brasileiro.
O surgimento das RESEX es intimamente ligado ao cenário amazônico e seus
povos e comunidades tradicionais, estando elementos fundamentais que
permitiram sua instituição (ALLEGRETTI, 1994; MENEZES, 2011; SCHMINK e WOOD,
2012).
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A RESEX, diferente das demais categorias hoje abrangidas pelo SNUC, surge
pela demanda popular na região amazônica. É resultado da luta de grupos sociais nos
anos 1970 e 1980, dos chamados povos da floresta, com destaque para os
seringueiros e a liderança de Chico Mendes (ALLEGRETTI, 2008; MENEZES, 2011).
Com os movimentos sociais, a proposta que culminará com a criação do
instituto jurídico da RESEX, propriamente, inicia-se pela busca por instrumentos
diferenciados de reforma agrária a fim de atender as especificidades da região
amazônica quanto a demandas territoriais (ALMEIDA, 2004; MENEZES, 2011;
BENATTI, 2013).
Nas RESEX, a inovação em relação aos anseios de reforma agrária, reside,
sobretudo, em dois fatores (GOMES e GOMES, 2018, p. 101): “i) a adoção do
instrumento contratual da concessão de uso; e ii) a possibilidade de utilização
associativista, condominial ou cooperativista’ da área”.
As RESEX, assim, se configuram como instrumentos da regularização fundiária
pautados na gestão participativa da sociobiodiversidade, que exercem função de
ordenamento territorial dos extrativistas ocupantes e em exercício de suas
atividades na área antes da instituição da respectiva RESEX (MENEZES, 2011; BENATTI,
2013).
Segundo o SNUC, as RESEX são áreas de uso por populações tradicionais que
têm o extrativismo como principal atividade de subsistência e possuem os objetivos
básicos de proteção aos meios de vida e cultura das populações, assegurando o uso
sustentável de recursos naturais (BRASIL, 2000)5.
Após iniciarem na Amazônia, muitas RESEX foram criadas em outros biomas
brasileiros, inclusive em regiões costeiro-marinhas, neste caso, recebendo o nome de
Reservas Extrativistas Marinhas (REMs). No ecossistema costeiro-marinho os conflitos
típicos que motivam a criação dessas áreas envolvem setores econômicos
diversificados, como petróleo e gás, turismo, pesca industrial, especulação imobiliária,
grandes portos e urbanização desordenada do litoral (PRADO e SEIXAS, 2018).
As REMs têm os mesmos objetivos gerais das RESEX nascentes no contexto da
região de floresta de terra firme, residindo a singularidade do ambiente
predominantemente costeiro onde se encontram (SANTOS e SCHIAVETTI, 2013).
5Art. 18, Lei Federal 9.985/2000.
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Um marco do processo histórico que desencadeou a formação do conjunto de
REM, ao lado de outras UC do tipo sustenvel no Nordeste do Pará, pode ser
atribuído ao recrudescimento de uma conjuntura de espoliação dos seus espaços de
uso comum para as comunidades, mais perceptível após o final dos anos 1960, devido
a política de integração econômica da Amazônia, cujas atividades de pesca também
estiveram inseridas por meio do incremento de tecnologia como barcos a motor,
artefatos de congelamento e conservação dos chamados produtos da pesca e
introdução da pesca industrial (LOUREIRO, 1985; FURTADO, 1993). Enfim, a
sociobiodiversidade dos rios, manguezais e, em menor grau, das áreas de terra firme,
estavam sofrendo pressões exploratórias com maior intensidade, prejudicando os
modos de vida das comunidades.
Neste contexto, ganhou força a organização social na região, que, em muitos
municípios era experimentada nos anos anteriores, no período da ditadura militar,
por meio dos movimentos populares da Igreja Católica, como as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), Pastoral da Saúde, Pastoral da Criança e grupos de jovens,
além de partidos políticos clandestinizados (CHAVES, 2010; MARTINS, 2010;
CON&SEA, 2013).
Ao final dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990, principalmente no município
de Curuçá, as comunidades continuam sua organização tendo como principal
propulsão a luta pela sobrevivência e melhores condições de vida, atreladas a
dependência das atividades nos manguezais, somada à carência de políticas públicas
e serviços sociais, como estruturas para a saúde, saneamento e educação (MARTINS,
2010; GONÇALVES, 2012).
Porém, ainda que organizados, com a percepção dos problemas sociais e
ambientais em que estavam inseridos, a luta das comunidades ainda não possuía
definição evidente nos objetivos e quais caminhos seguir para se posicionarem ante o
poder público. As pautas de suas lutas começaram a ganhar maior estímulo em
ocasiões de grande reflexão, como a Campanha da Fraternidade, em nível nacional,
tradicionalmente promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
no ano de 19936, e melhor delineamento, como no III Seminário Regionalizado de
6A Campanha da Fraternidade 1993 teve por tema “Fraternidade e Moradia Onde moras?” e por
objetivo geral em seu texto de subsídio: Afirmar o direito à terra e à moradia como condição básica
para o desenvolvimento de vida plena: do indivíduo, da família, da fraternidade (solidariedade) e do
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Gerenciamento Costeiro, em 1998, realizado em Curuçá, favorecendo o intercâmbio
de diálogo e experiências entre diferentes comunidades do litoral paraense,
contribuindo para melhor coesão entre movimentos (CHAVES, 2010; GONÇALVES,
2012).
Neste contexto, chegava a região Waldemar Londres Vergara Filho, servidor do
IBAMA recém-lotado no Nordeste Paraense. Atento às discussões e demandas das
comunidades, percebeu que as pautas levantadas e a conjuntura socioambiental
evidenciada, poderiam estar ligados ao modelo proposto pelas RESEX (CHAVES, 2010;
SANTOS, 2018), à semelhança da primeira REM, criada em Santa Catarina REM
Pirajubaé –, cuja propulsão para criação ocorreu, sobretudo, a partir dos conflitos que
contrapunham a pesca artesanal a outras atividades econômicas, o adensamento
populacional, poluição dos manguezais, obras de infraestrutura ligadas ao acesso a
respectiva região, e uma consequente marginalização dos pescadores (VIVACQUA,
2012).
Segundo os estudos de Chaves (2010), Vergara, como ficou mais conhecido,
sensível a causa das comunidades, resolveu entrar no que chamou de “luta pelo
Corredor do Salgado”, em referência à perspectiva da criação de um conjunto de UC
na região do Nordeste Paraense, especialmente na microrregião da Zona do Salgado,
segundo antiga denominação geográfica oficial, porém, assim denominada ainda hoje
pela população local e alguns órgãos públicos, como o próprio ICMBio (ICMBio,
2021)7. Deste modo, Vergara passou a dialogar com as comunidades apresentando o
modelo de RESEX, enquanto instrumento de política pública, que julgava adequado
para contemplar as demandas locais, fato que gerou grande adesão das comunidades
pela proposta do instrumento das RESEX.
Neste processo, destaca-se a apresentação, por Vergara, dos meios de acesso
das demandas das comunidades envolvidas e interessadas à via competente do
Estado para implantação da política pública. Segundo Chaves (2010), foi um fator
7ICMBIO Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Região do Salgado Paraense.
Disponível em: https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/populacoes-tradicionais/producao-e-uso-
sustentavel/uso-sustentavel-em-ucs/regiao-do-salgado-paraense. Acesso em: 23 dez. 2022.
exercício da cidadania (condições para viver e morar saudável e dignamente infraestrutura,
equipamentos sociais e meio ambiente participar e decidir a vida da cidade).
Disponível em: <https://campanhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1993>. Acesso em 26 mar.
2021.
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determinante para alcançar a implantação do modelo, que oficialmente culminou
com a criação das primeiras REMs na região.
Como se constatou nos processos de criação, contemporâneos entre si, a
adesão à perspectiva do modelo de RESEX se espalhou por diversas comunidades da
zona costeira do Pará, abrangendo os municípios de Curuçá, Maracanã, Santarém
Novo, Augusto Corrêa, Bragança, Viseu, Tracuateua e Soure, este na ilha do Marajó,
onde veio ser criada a primeira REM no estado do Pará (BRASIL, 2001).
Em meio ao processo de organização das comunidades para a criação de
RESEX no Nordeste Paraense, caracterizado por conflitos relacionados ao mau uso dos
manguezais e dos rios, a ponto de ameaçar a sobrevivência dos sujeitos diretamente
ligados a estes territórios, no município de São João da Ponta surge o termo
maretório como reflexo de uma demanda social que não se incluída ao que se
entende por “território” (SANTOS, 2018; PIMENTEL, 2019; NEVES, 2022).
Segundo Vergara (apud SANTOS, 2018, p. 102),
O Maretório é a construção entre a dimensão de operacionalizar os
ambientes de água e regimes de maré. Capacidade do território não é
pescar, mas outras dimensões humanas, espirituais, de ética e solidariedade
(elementos para humanizar o processo na relação homem, emprego e
trabalho), como a religião é religar, precisar religar, não posso cobrar ética
sem ser ético. Massificação da cultura de negar a ética, atrapalha o
comportamento ético da solidariedade (comprometimento). A ideia de ser
humano não é pacificar o homem selvagem, ou seja, a selva como sendo a
negação do urbano.
Para Santos (2018), maretório constitui um termo ainda em construção do
ponto de vista acadêmico, porém, pode fazer referência aos espaços de relações das
comunidades que moram na área de terra, mas vivem do mar.
Neves (2022), integrante da comunidade da REM Mãe Grande de Curuçá,
testemunha do surgimento do termo maretório ao lado de outras mulheres, destaca a
importância da compreensão na aplicação de políticas públicas e a distinção de
marcação temporal nos modos de vida das comunidades tradicionais, que contrastam
com um modo de vida eminentemente urbano, comercial e de terra firme.
No mesmo sentido, Pimentel (2019) observa que o termo decorre da especial
relação com a dinâmica da maré, que funciona como marcador temporal que rege as
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atividades da vida de extrativistas do mar e dos estuários8. Para a autora, a concepção
do termo vai ao encontro da necessidade de uma construção identitária forjada a
partir de crenças, conhecimento e prática, à semelhança do que Miranda e Gomes
(2019) observam acerca da vida do sujeito amazônida na sua relação com as águas.
Ao analisarem uma dinâmica específica na ilha do Pará, município de Afuá, estado do
Pará, referem-se aos termos aquabilidade eaguatório, que têm suas qualidades
expressas nos “indícios da vida estuarina e são definidos por um conjunto de práticas
e saberes que elegem a condição de estar vivo sobre as águas como lugar de
importância na formação humana” (MIRANDA e GOMES, 2019, p. 158).
Este processo de mobilização social experimentado no Nordeste Paraense e
que se estende até os dias de hoje, pelo tempo, e em outros municípios e localidades
da região, pelo espaço deu origem, atualmente, a onze REMs, que, ao lado de
outras UC, formam um conjunto de áreas protegidas ao longo do litoral paraense
(Figura 1).
8Estuário é o termo que designa a região que se estende pelo rio até seu limite de influência do regime
de maré. Possui feições costeiras de alto dinamismo no tempo e no espaço, com origem relacionada aos
fatores de elevação do nível do mar e inundação de vales na zona costeira. É um ecossistema que tem
seu funcionamento regulado por outros fatores como geomorfologia, tempo de permanência da água,
alcance da maré, natureza e extensão da área de intermaré, entrada de nutrientes, entre outros (DYER,
1997).
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Figura 1 Mapa de Localização das Reservas Extrativistas do Nordeste Paraense.
Fonte: Ewelyn Silva (2021).
Conforme o exposto, compartilha-se aqui do entendimento que o modelo de
RESEX, ainda que com fundamentadas críticas, como ao próprio pertencimento ao
SNUC (SOUZA, 2014) e sua forma de gestão sob o viés governamental (GUERRERO et
al., 2011), constitui um avanço na concepção de áreas protegidas no Brasil.
Sua gestão compartilhada, cujo principal espaço de decisão é o Conselho
deliberativo composto pelo órgão gestor, pelas comunidades por meio de sua
Associação, e demais setores da sociedade civil , busca levar ao âmbito formal, entre
outros, regras para a gestão territorial, sendo as principais pautadas no uso da
sociobiodiversidade aliado ao conhecimento tradicional. Trata-se de uma
transformação do Direito costumeiro para o Direito formal onde se incorporam os
objetivos de conservação da sociobiodiversidade aliados às ações de inclusão social,
territorial e econômica de populações diretamente envolvidas (MEDEIROS, 2006;
ALLEGRETTI, 2008; GONÇALVES, 2012; ALMEIDA et al., 2018).
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CRIAÇÃO SÓCIO-INSTITUCIONAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: OS ESTUDOS
TÉCNICOS E A CONSULTA PÚBLICA PARA AS RESERVAS EXTRATIVISTAS
A criação de uma UC é disciplinada pela Lei do SNUC e o Decreto Federal
4.240/2002. Três requisitos principais podem ser identificados para a criação das UC
em geral: criação por meio de ato do Poder Público; estudos técnicos; e consulta
pública (BRASIL, 2000)9.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente MMA (2019), os estudos técnicos
visam avaliar a área a ser protegida, devendo ser realizados pelo órgão gestor, equipe
técnica contratada ou instituição parceira. Os estudos devem tratar de uma
caracterização dos meios biótico e físico, dos aspectos socioeconômicos, da existência
de outras áreas protegidas, do potencial de visitação, existência de populações
tradicionais usuárias ou residentes, da questão fundiária e do uso da terra. Os estudos
técnicos também visam estabelecer a localização, dimensionamento e limites da
unidade (BRASIL, 2000). Na fase de estudos, o MMA (2019) também preceitua que
deverão ser analisadas as demandas das comunidades.
Justamente por comportar comunidades diretamente relacionadas à
conservação dos atributos ecológicos da respectiva área, os estudos técnicos
minimamente visam uma abordagem com certo grau interdisciplinar, que não
ofusque o aspecto socioambiental entre territórios e comunidades.
Uma visão ampla, porém, não deve partir apenas da análise de diferentes
profissionais (multidisciplinar). A integração de saberes de técnicos como biólogos,
engenheiros florestais, antropólogos, cientistas políticos, etc. (interdisciplinaridade)
deve ser em cooperação com as comunidades tradicionais (DIEGUES, 2008). Neste
sentido, o processo de aproximação e escuta das comunidades é um referencial
elementar para cumprimento tanto dos estudos técnicos prévios como do requisito
de consulta pública estando diretamente relacionados.
O estudo interdisciplinar em cooperação com as populações permite então
reconhecer a ocupação do território de forma preexistente e permite o respeito às
implicações daí advindas. Entre as consequências deste reconhecimento está a
compreensão de que as determinadas comunidades construíram historicamente uma
9Art. 22, Lei Federal 9.985/2000.
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relação social e cultural na área potencial a ser protegida, originando assim normas
de convivência e aproveitamento da sociobiodiversidade. Desta forma, o Direito pelos
costumes ou consuetudinário é um elemento importante a ser considerado, tanto
como a definição da área a ser delimitada (BENATTI, 2011).
Neste sentido, para que os estudos técnicos prévios cumpram o seu papel de
forma mais eficaz, é necessário o desenvolvimento de metodologias
preferencialmente não padronizadas de modo a permitirem o reconhecimento de
peculiaridades regionais ou locais diretamente ligadas ao propósito da conservação.
Relacionado ao requisito dos estudos técnicos prévios, es estritamente
relacionado o requisito da consulta pública, que, inclusive, pode funcionar como fonte
dos dados dos próprios estudos prévios que devem ter cunho interdisciplinar. Isto
porque entre os aspectos da consulta es a escuta das comunidades tradicionais
locais. Assegurando legalmente a consulta pública, a Lei do SNUC se coaduna ao que
estabelece a Convenção 169, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), promulgada pelo Brasil.
Especificamente, em seu art. 6, 1, a Convenção estabelece que os governos
devam consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e,
em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas
medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Como
afirma Oliveira (2017), o sentido de afetar se refere à interferência no que tange aos
direitos coletivos de povos indígenas e tribais, os quais abrangem as comunidades
tradicionais (MOREIRA, 2017; OLIVEIRA, 2017), como direitos territoriais quanto às
práticas de manejo da sociobiodiversidade.
A consulta pública não pode ser confundida com audiência pública. Esta última
é um tradicional instrumento de participação social, porém, se relaciona nos casos de
licenciamento ambiental, com a hipótese de haver em questão alguma atividade
modificadora do meio ambiente (art. 2º, Resolução 01/1986, do Conselho Nacional de
Meio Ambiente - CONAMA), enquanto que para as comunidades tradicionais a
consulta pública será necessária quando existirem medidas administrativas e
legislativas suscetíveis de afetar determinada comunidade (MARÉS et al, 2019).
A consulta pública fundamenta-se no direito à autodeterminação, no direito
ao território e ao uso exclusivo dos recursos naturais , direito à propriedade coletiva,
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dentre outros. A partir de seu caráter deliberativo, objetiva inserir as populações
tradicionais nos processos de decisão de políticas e medidas que possam os afetar
(OLIVEIRA, 2017; GIFFONI, 2020).
Sobre a não consideração desse importante instrumento e/ou sua correta
aplicação, tem-se um prejuízo anunciado quanto ao compartilhamento de
informações e na cooperação dos saberes que as populações podem proporcionar,
sobretudo em se tratando de questões que as afetem. Relacionado ao recorrente
fato, Gomes-Pompa e Kaus (apud DIEGUES, 2008), afirmam que acabam por discutir e
estabelecer políticas sobre um tema que pouco é conhecido, e as populações que o
melhor conhecem, de forma rara e, arrisca-se dizer, inexistente participam dos
debates e decisões.
Cavedon e Vieira (2008), ao se referirem à garantia da justiça socioambiental,
afirmam ser fundamental a criação de condições estruturais que concorram para o
exercício da cidadania de forma mais favorável. Entre os caminhos necessários
referem a criação e consolidação de espaços públicos decisórios, além do
entendimento de que as decisões em matéria ambiental devem ser constituídas de
forma coletiva com participação direta dos titulares dos bens socioambientais.
Os estudos técnicos prévios e a consulta pública no processo de criação de
uma UC, não devem se ater a conhecimentos rasteiros, mas sistêmicos (DIEGUES,
2008) diante da sua disponibilidade e possibilidades de acesso, a fim de se cumprir da
melhor forma possível o papel de uma RESEX desde seus procedimentos iniciais,
sobretudo, ao se atentar ao que coadunam legislações diretamente relacionadas,
como o Decreto 6.040/2007, que é enfático ao tratar de territórios, que estão
direta e intimamente relacionados à ideia da constituição e formação dos povos e
comunidades tradicionais.
A CONSTRUÇÃO DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS MARINHAS DO PARÁ: UMA ANÁLISE
A PARTIR DA ECOLOGIA POLÍTICA
Os conflitos socioambientais, em geral, estão diretamente relacionados a
criação de uma RESEX, incluindo, a própria gênese histórica desse instituto até
alcançar o ordenamento jurídico brasileiro (ALLEGRETTI, 1989; MUNIZ, 2009).
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Enquanto instrumento de política pública que se tornou (BRASIL, 1981;
BRASIL, 1987; BRASIL, 2000), como as demais categorias de UC, cada RESEX deve
possuir uma demanda formalizada para sua criação. Ou seja, sob uma forma ou
documento específico pelo qual se fará alcançar as estruturas administrativas do
Estado, em regra, os órgãos competentes em matéria ambiental e/ou socioambiental.
Na esfera pública federal, tal competência é conferida ao ICMBio (BRASIL, 2007).
Os atos normativos de criação das REMs resultam de uma cadeia de
procedimentos que devem observar a legislação específica para a instituição de UC,
sob os ditames gerais da Lei 9.985/2000 e seu Decreto regulamentador Decreto
4.340/2002 , além de demais especificações em atos normativos esparsos, como
Portarias e Instruções Normativas, conforme cada categoria de UC. Tais
procedimentos têm seu curso ou trâmite registrado em processos administrativos,
instrumentos de ordem documental que transitam nas estruturas dos órgãos
competentes da Administração Pública, como gabinetes, diretorias, departamentos,
setores etc.
Os conflitos socioambientais identificados por meio dos processos
administrativos de criação, e de ampliação das REMs, giram em torno da pressão
sobre os espaços de uso comum da sociobiodiversidade. Estão caracterizados pelo
considerado mau uso dos manguezais, dos estuários, dos rios e do mar a ponto de
ameaçar a sobrevivência dos sujeitos diretamente relacionados a estes territórios,
especialmente chamados de maretórios pelos movimentos sociais (DA SILVA
PIMENTEL, 2019).
Neste sentido, o conflito socioambiental comum que motivou a criação das
REM do Nordeste Paraense é o de pressão sobre a pesca das comunidades
tradicionais, sejam os indivíduos pescadores de água” ou de mangue”. Os primeiros
com atividade principal da pesca artesanal nos rios e no mar, os últimos com todas as
atividades extrativistas da sociobiodiversidade realizada nos manguezais ou mangais
(LIMA et al., 1999).
Nas distintas trajetórias vivenciadas pelas comunidades na luta pela criação
das REMs, uma referência em destaque pode ser direcionada às comunidades do
atual município de São João da Ponta (Figura 1). As comunidades passaram,
simultaneamente, a lutar pela então emancipação em relação ao município de São
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Caetano de Odivelas e pela implantação do modelo de RESEX em seu território, o que
contribuiu para um protagonismo no processo de mobilização na criação das REMs e
liderança na mobilização junto a municípios vizinhos (SANTOS, 2018).
Em São João da Ponta, o conflito socioambiental vivenciado e relatado pelas
comunidades foi a pesca predatória e, com destaque, a degradação do manguezal e
uma consequente preocupação com o principal elemento da sociobiodiversidade
ligado a manutenção econômica das comunidades do município, o caranguejo-uçá
(Ulcides cordadus).
A constatação verificada no processo administrativo da REM São João da Ponta
também é espelhada no trabalho de Santos (2018), em que menciona conflitos de
ordem socioambiental e o interesse pela proteção do meio natural, partindo
especialmente dos sindicalistas locais. No entanto, o conflito mais evidente foi de
ordem político-social, quanto aos favoráveis e não favoráveis à emancipação da então
Vila de São João da Ponta.
Os conflitos relacionados a pesca e o uso dos manguezais nos processos
administrativos são relatados sob especificações, colaborando para melhor
inteligibilidade da relação sociedade-natureza que envolvem essas áreas, a exemplo
de expressões como “pesca predatória”, exploração do manguezal”, “mau uso da
pesca, gerando a escassez de pescado”, “pesca proibida”, extração do caranguejo por
caranguejeiros de fora” e exploração do mangal”.
Processos administrativos cujo pleito principal é a ampliação das áreas de
REMs, ganham expressões relacionadas a uma gestão ou delimitação do espaço como
“invasão dos rios por pescadores de fora”, que se referem a pescadores vindos de
outros municípios ou mesmo estados e, ainda, pescadores provenientes das áreas de
REMs, que possuem algum tipo de gerenciamento ou maior vigilância na atividade.
Porém, a motivação quanto a “pescadores de fora” não se restringe aos casos de
ampliação das REMs. É possível identificar expressão semelhante ainda em processos
de criação das primeiras REMs, como conflitos com caranguejeiros de fora” (REM
Caeté-Taperaçu). Ou seja, aponta-se para um costume prévio a um gerenciamento
institucional ou de gestão compartilhada formalmente instituída, apontando para
indícios de normas existentes conforme a vivência das comunidades, as quais
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identificavam como prática censurável a penetração de extrativistas e/ou sujeitos de
fora” que não executavam sua atividade conforme os costumes locais.
Ainda, esse tipo de registro, como “invasões por barcos de fora”, é verificado
nos processos administrativos mais recentes, os das REMs Cuinarana e Mestre
Lucindo (Figura 1),cuja maior referência se pelos barcos de pesca industrial, que
competem com os pescadores artesanais, muitos vindos da região Nordeste do Brasil.
A maioria dos conflitos relatados, à exceção da pesca industrial, ocorre entre
iguais. Isto é, entre pescadores e extrativistas que figuram no maretório, sejam eles
considerados de fora” de determinada comunidade e avançam aos maretórios
tradicionalmente estabelecidos, ou propriamente os de dentro”, que, em sua
maioria, não detém relações tradicionais com a comunidade por terem,
relativamente, ali se fixado pouco tempo. São motivados pela utilização de
técnicas de pesca vistas como proibidas pelos costumes como o uso de redes
apoitadas em emburateuas10, tapagens de igarapés e uso de plantas xicas, como o
timbó (Deguelia sp.) —, invasão de locais de pesca nos rios, mar e manguezal
tradicionalmente utilizados pelas respectivas comunidades.
Quanto à pesca industrial, ressaltam-se os danos provocados pela
superioridade de extração de recursos ou elementos da sociobiodiversidade nas áreas
de uso comum pelas comunidades, a exemplo da utilização da rede de arrastão para
pesca de camarão que, devido aos diâmetros reduzidos da malha, capturam, sem
controle, outras espécies em diferentes estágios de desenvolvimento biológico.
CLASSIFICAÇÃO DO CONFLITO SOCIOAMBIENTAL DO CORREDOR DE MANGUEZAIS
Na tentativa de conferir parâmetros na compreensão dos conflitos
socioambientais e possíveis resoluções, Paul Little (2001) classifica tais conflitos
basicamente em três tipologias: 1. Conflitos em torno do controle sobre recursos; 2.
Conflitos em torno dos impactos gerados pela ão humana e natural; e 3. Conflitos
em torno do uso dos conhecimentos ambientais. Essas três tipologias se sustentam
em outras dimensões próprias. Não se trata, no entanto, de uma classificação rígida,
10 Emburateuas “são ambientes formados pela queda de galhos e paus da vegetação de manguezal, que
ao cair no leito do rio formam abrigos de proteção à diversas espécies de pescado” (MORAES, 2018, p.
87).
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mas um instrumento que busca utilidade para análise dos conflitos socioambientais,
podendo ser empregada com flexibilidade.
Diante disso, conforme as tipologias apresentadas por Little (2001), os
conflitos socioambientais que motivaram a criação das REMs do Nordeste Paraense
no caso, acerca da pressão sobre a pesca artesanal podem ser classificados
simultaneamente como conflitos em torno do controle sobre recursos econflitos em
torno dos impactos gerados pela ação humana e natural.
Conflitos em torno do controle sobre os recursos se referem ao uso da
sociobiodiversidade conferido por um grupo social. Significa que um componente do
meio biofísico funciona como recurso ou produto da sociobiodiversidade de
importância socioambiental pelo uso que um grupo social lhe confere, como é
possível verificar por meio do cabeçalho que compunha muitos dos abaixo-assinados
realizados em prol da criação das REMs:
Nós moradores, pescadores artesanais e tiradores de caranguejo do
Município de Santarém Novo/PA, preocupados com a garantia do nosso
local de trabalho e principalmente à conservação dos nossos recursos
naturais para o uso sustentável, solicitamos ao Centro Nacional de
Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais CNPT/IBAMA,
a criação de uma RESERVA EXTRATIVISTA EM NOSSO MUNICÍPIO (Processo
ICMBio 0208.004599/1999-73, referente a criação da REM
Chocoaré-Mato Grosso, vol. 01, fl.03).
A percepção da sociobiodiversidade enquanto meio de sobrevivência
transmite uma dimensão da relação das comunidades com o maretório. Percepção
que também se verifica sob a análise técnica nos estudos socioambientais necessários
a subsidiar a criação das áreas protegidas:
As atividades pesqueiras executadas pelas comunidades da área em
estudo são de fundamental importância para a vida destas populações do
ponto de vista de obtenção de recurso alimentar e financeiro, e estão
intimamente ligadas a história de aprendizado e ocupação do manguezal e
expresso nos usos e costumes na tradicionalidade da pesca artesanal desta
região (Estudos técnicos no Processo ICMBio 02018.004854/1999-79,
referente a criação da REM Araí-Peroba, fl. 37).
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Os conflitos em torno do controle sobre recursos podem assumir as dimensões
política,social e/ou jurídica. Na dimensão política, relação quanto a decisões que
interferem na distribuição dos elementos da sociobiodiversidade, questão não
verificada na maioria dos processos administrativos. No entanto, chama atenção um
registro no município de Marapanim quando do projeto de instalação de um
atracadouro de barcos de reboque na comunidade de Vista Alegre, com incentivo do
Município. O empreendimento, segundo apontam os autos do processo, vinha
transferido de outro município devido aos danos socioambientais que havia
causado:
Os conflitos relacionados à pesca estão presentes no município, sobretudo
quanto à doação pela prefeitura de área na comunidade de Vista Alegre
para atracadouro de barcos de reboque. Segundo os moradores esses
barcos destroem o mangue, os currais, e espantam os peixes”, pois
navegam dentro do rio Cajutuba em velocidade excessiva (Estudos
técnicos no Processo ICMBio 02070.002069/2008-35, vol. 2, fl. 180).
A dimensão social compreende disputas em relação ao acesso à
sociobiodiversidade. No presente caso é a dimensão mais evidente. É exemplificada
por situações de disputas entre a pesca industrial e a pesca artesanal,
compreendendo, inclusive, os espaços de vegetação do manguezal, além de regiões
nas águas que guardam historicidade quanto a direitos costumeiros de uso na pesca:
Muitas das situações conflituosas na região foram motivadas pela invasão
de áreas de pesca artesanal pela frota pesqueira industrial levando ao
fortalecimento da organização social desse grupo social em suas colônias
de pescadores. Muitos desses conflitos geraram perdas ambientais, como
assoreamento e poluição de rios e canais, disputa por pesqueiros11 com
destruição de habitats naturais, entre outros. (Estudos técnicos no
processo 02001.000419/2007-61, referente a ampliação da REM
Araí-Peroba vol. 2, fl. 256).
[...] o presidente convidou o técnico da Emater-Pará Jorge Raposo para
esclarecer da importância do defeso do caranguejo uçá 2012 (andada),
assim como os esclarecimentos do abaixo assinado a não liberação de
licença de pesca de arrastão industrial, que interfere diretamente na pesca
artesanal (Ata de reunião da Associação de Produtores e Moradores da
11 Áreas propícias à pesca ou definição nativa com base num etnoconhecimento (FURTADO, 2002).
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Vila de Bom Intento, em 12 dez. 2012, constante no Processo
02070.003440/2010-09, vol. 1, fl. 83).
A dimensão jurídica dos conflitos se refere a disputas influenciadas pelo
ordenamento jurídico formal, a exemplo de permissividade de aproveitamento da
sociobiodiversidade por dois grupos distintos, representados pela pesca artesanal e a
pesca industrial. Quanto a esta dimensão, fica evidente que as disputas se fundam
sobre a permissividade das áreas como bem público de uso comum do povo12 e a
noções (equivocadas) de coisa pública e aproveitamento desregrado, situação que
tende à razão a uma tragédia de comuns, como a apresentada por Hardin (1968). Do
contrário, a aproximação da ideia de um gerenciamento da sociobiodiversidade, como
abarcam as regras de direito costumeiro, favorece a conservação, como postula
Ostrom (1990; 1995).
Um gerenciamento da sociobiodiversidade, neste contexto, deve surgir das
próprias comunidades locais, entre “iguais”, especialmente a partir do conhecimento
tradicional construído, que contribuiu para a conservação dos ecossistemas. Nesta
linha, são pertinentes os acordos de pesca, que são formalizados a partir da demanda
das comunidades e passam a compor as regras do Direito formal na gestão das REMs.
Neste sentido, a citação direta anterior, da Ata de reunião da Associação de
Produtores e Moradores da Vila de Bom Intento, reflete a dimensão jurídica do
conflito trazida por Little (2001) ao tratar de uma manifestação contrária da
comunidade em relação a possível licença concedida à “pesca de arrastão industrial”.
Também observam os estudos socioambientais contidos em processo administrativo
para ampliação da REM Araí-Peroba:
As comunidades pesqueiras são desconsideradas pelo poder público no
que se refere: (i) a proteção dos territórios de pesca e propriedades de uso
comum, prejudicadas por uma legislação elitista e excludente; (ii) estão
submetidas ainda ao fato da pesca ser considerada de livre acesso, ao
agravamento dos riscos sofridos pelos oceanos, a especificidade dos
recursos explorados (como mobilidade e sazonalidade). (Estudos
socioambientais contidos no Processo 02001.000419/2007-61,
referente a ampliação da REM Araí-Peroba, vol. 2, p. 298).
12 Bens públicos de uso comum do povo são aqueles abertos ao uso indistinto de todos (BANDEIRA DE
MELLO, 2011, p. 921), a exemplo dos rios, mares, estradas, ruas e praças, conforme o Código Civil
Brasileiro.
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Considerando a maleabilidade da classificação proposta por Little (2001), é
possível compreender que a dimensão jurídica apresentada pelo autor e no que ela
consiste conflitos influenciados pelo ordenamento jurídico formal pode ser
complementada pelo reconhecimento do Direito costumeiro existente nas
comunidades de maretório.
Existem códigos de Direito costumeiro e códigos de ética não escritos,
especialmente vinculado às especificidades desse tipo de território/maretório, como
aos regimes de maré (FURTADO, 2002), como se observa:
Os pescadores de camarões podem ficar nas áreas de pesca por até duas
semanas. Essas áreas são denominadas localmente de camaroeiras. A
principal camaroeira está localizada no rio Cajutuba, próximo a ilha das
garças e, segundo um dos pescadores, pertence a um morador de
Marapanim, também a Colônia de pescadores possui camaroeiras na
região dos rios (Estudos técnicos no Processo 02070.002069/2008-35,
referente a criação da REM Mestre Lucindo, vol. 02, fl. 296).
A não consideração a essas regras de costume, reconhecidas e legitimadas
pelas comunidades tradicionais, foi o que essencialmente deu azo aos conflitos em
geral observados no presente estudo, que estão na origem da motivação das
demandas para a criação das REMs.
Fatores como o avanço da densidade populacional e a chegada de novos
pescadores e extrativistas mesmo considerados de dentro”, o avanço dos pescadores
de fora” incluindo a pesca industrial, a chegada de empreendimentos que
prejudicam de imediato o meio biofísico, e regras de Direito formal que não
coadunam com o manejo tradicional do ecossistema, por exemplo, interferem
diretamente das regras de Direito costumeiro influentes na conservação do
maretório. São disputas na arena do Direito não escrito, com regras igualmente
válidas na vida das comunidades, em muitos casos, com mais força que o Direito
formal, que passam a ser infringidas (CHAMY, 2004).
Além dos conflitos socioambientais caracterizados pela pressão sobre a pesca
se adequarem a classificação quanto ao controle sobre a sociobiodiversidade,
compreende-se que pertencem simultaneamente a classificação em torno dos
impactos gerados pela ação humana e natural, segundo Little (2001). Pois, como
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característica desta tipologia es a intervenção antrópica nos ciclos naturais do meio
biofísico em razão de uma rentabilidade econômica desordenada, que torna
altamente prejudicial à sociobiodiversidade, incluindo a manutenção da vida humana,
que se faz sentida imediatamente pelas comunidades tradicionais que estão
intimamente relacionadas ao maretório.
Um dos exemplos que ressalta a questão do conflito em torno dos impactos
gerados pela ação humana, verificou-se no processo administrativo que subsidiou a
criação da REM Caeté-Taperaçu no município de Bragança13. Diz-se respeito ao que se
identifica por “sistema tradicional” e “sistema moderno” da captura do
caranguejo-uçá, registrados no município, ao menos à época em que se discutia a
criação da REM local, entre os anos de 1999 e 2005, em termos processuais.
No sistema tradicional o caranguejo é comercializado vivo e a extração é feita
selecionando os indivíduos machos, grandes e gordos. Após a captura são lavados nos
igarapés, amarrados em fileiras ou colocados em paneiros cestos confeccionados
pelos caranguejeiros. A extração geralmente é feita de forma individual em média 175
exemplares/dia.
No sistema moderno não são levados em conta o sexo nem tamanho dos
crustáceos. Os caranguejos sofrem esquartejamento ainda no mangal e, após, são
lavados nos igarapés. São destinados às casas de catações”, que são em sua maioria
as casas de famílias que se dedicam a catação”, processo em que são separadas patas
e a carne, chamada de massa ou polpa, de maior valor comercial, após os espécimes
serem pré- cozidos.
No sistema dito “moderno” maior esforço ou intensidade na captura do
caranguejo. Utilizam-se barcos com capacidade para 30 pessoas e, como não
seletividade, cada extrativista ou caranguejeiro chega a capturar cerca de 370
indivíduos, de qualquer tamanho ou sexo. A prática ocorre durante o ano todo sem
respeito à época do defeso ou suatá período de acasalamento da espécie. A
pressão exercida pelo mercado faz com que o extrativista se desloque para outras
regiões para aumentar a produção, gerando uma competição por áreas de captura e,
consequentemente, a formação de conflitos socioambientais. O preço do crustáceo é
determinado pelo comprador (“patrão” ou “marreteiro”) e, o caranguejeiro, sem
13 Processo ICMBio 02018.004600/1999-51, vol. 1.
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opção de obter um preço a sua escolha ou um “bom preço”, tende a enxergar cada
vez mais o aumento da produção como alternativa, que, consequentemente, implica
em maior pressão sobre a espécie do caranguejo-uçá.
Sob uma leitura mais profunda da Ecologia política, este exemplo constata um
processo de transformação social, das relações comunitárias e subjetivas conduzido
sob o impulso do acúmulo econômico, que resulta em grande interferência na
natureza, que constitui uma lógica normativa que precipita a crise ambiental, como a
escassez de recursos ou comprometimento da sociobiodiversidade e, leva aos poucos
o humano a se tornar “inimigo da natureza” (DARDOT e LAVAL, 2017).
É possível compreender que o fato decorre, por vezes, por sedução do
mercado, outras por pressão econômica e sobrevivência, como no caso de muitos
extrativistas, quando vítimas da espoliação da sociobiodiversidade em seus territórios
ou maretórios, tornando-se despossuídos e, mais que pobres, empobrecidos. Neste
caso, os ditos iguais entre as comunidades passam a protagonizar, sob a pressão
mercadológica e agenciamento econômico, parte considerável dos conflitos
socioambientais no maretório.
Segundo Leff (2021), essa “racionalidade” econômica tem provocado
igualmente um processo econômico insustenvel. Um mundo governado hoje pela
razão econômica adepta de um crescimento ilimitado, alimenta-se da natureza, de
matéria e energia, da sociobiodiversidade, não deixando de se alimentar, a reboque,
das formas e modos de vida e existência, que se reduzem a objetos, matérias-primas,
recursos naturais. Homens e mulheres são convertidos apenas em força de trabalho,
guiados pela lógica da economia e não mais pelos sentidos da vida. Porém,
resistência desses povos e comunidades em favor da garantia de seus modos de vida,
buscando alternativas para continuidade, implantação ou transformação desses
processos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As demandas recorrentes para criação e ampliação das REMs nos maretórios
do Pará estavam investidas numa conjuntura de mobilização social, incluindo a
sociedade civil organizada, primeiramente na luta por garantia de sobrevivência, nisto
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abrangendo seus modos de vida, evidenciando sua repercussão na proteção da
sociobiodiversidade.
Por meio dos processos administrativos foi possível constatar que, para a
criação e ampliação das REMs, tal qual como se originou o próprio instituto jurídico
ou política pública das RESEX, houve a ocorrência de conflitos socioambientais que
motivaram a mobilização das comunidades tradicionais.
Desta forma, dentre os conflitos socioambientais documentados, o que tem
sua ocorrência comum em toda extensão do conjunto das áreas protegidas
pesquisadas, refere-se a pressão sobre a pesca artesanal, que pode ser classificado
basicamente, segundo Paul Little (2001), como conflitos que envolve o controle sobre
os recursos ou sociobiodiversidade; e conflito em torno dos impactos gerados pela
ação humana.
De forma simultânea, com a identificação das razões que motivaram as
demandas por criação e ampliação das REMs, evidenciaram-se menções a diferentes
práticas tradicionais de manejo ou uso da sociobiodiversidade, surgindo nas
entrelinhas das descrições das atividades das comunidades os costumes e a
reprodução de normas, o Direito costumeiro. Por conseguinte, este estava sendo
rompido entre o que podemos chamar de “iguais” e, sobretudo, violado por sujeitos
externos, como os “pescadores de fora” e a pesca industrial”, e ainda, de forma sutil,
pelos “marreteiros” ou “patrões” ou a quem esses estão a serviço.
Evidenciou-se, assim, a relação direta da violação do Direito costumeiro, o
surgimento de conflitos socioambientais e as demandas pela criação ou ampliação
das REMs, que culminaram com a institucionalização do maretório.
Neste sentido, para melhor compreensão do Direito costumeiro que brota das
relações que envolvem a sociobiodiversidade, foi de fundamental importância
compreender a realidade das comunidades tradicionais das REMs para além da
compreensão usual de território, como no contexto de criação das primeiras RESEX
florestais. Assim, passaram a questionar enquanto configuração disponível para seu
cenário e composição próprios: o de ecossistema marinho-costeiro e populações que
nele vivem e, a partir dele, constroem suas relações e compreensões de mundo.
Não considerar tais questões constitui negação em restaurar e preservar os
modos de vida das comunidades, incluindo sua reprodução cultural e a proteção
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ambiental. Assim, também nega-se o Direito e a justiça socioambiental como última
análise sobre a origem e finalidade do instituto da RESEX.
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