https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n1p64-79
Vol. 29, n. 1, jan/jun, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
ATOS DE ESTADO E DISPUTAS DE PODER NA EXECUÇÃO DA POLÍTICA
ESTADUAL PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DOS POVOS E
COMUNIDADES TRADICIONAIS DE MINAS GERAIS: CONSTRUÇÕES,
DESAFIOS E LIMITÕES1
Gabriel Costa Ribeiro2
Resumo: O objetivo deste artigo é estabelecer, a partir da perspectiva analítica-metodológica
dos estudos sobre Estado e relações de poder, uma genealogia da Comissão Estadual dos Povos
e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG), instância política consultiva e
deliberativa responsável pelo acompanhamento e fiscalização da execução da Política Estadual
de Desenvolvimento Sustenvel dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (Lei
Estadual 21.147/2014). Os procedimentos metodológicos consistem em análises empíricas,
pesquisa documental e aplicação de referencial teórico inscrito no campo das Ciências Sociais.
O estudo de caso apresentado fornece elementos valiosos para a compreensão de qual forma a
condução dos trabalhos da Comissão é resultante de intensas disputas pelo monopólio do
poder simbólico, bem como das estruturas que possibilitam o controle exercido pelos agentes
de Estado na execução de políticas públicas de reconhecimento étnico, diante do prisma das
garantias e direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais.
Palavras-chave: Povos e Comunidades Tradicionais. Sujeitos Sociais. Espaços de Representação.
Sociedade Civil Organizada. Direitos Étnicos.
ACTS OF STATE AND POWER DISPUTES IN THE IMPLEMENTATION OF THE STATE POLICY FOR THE
SUSTAINABLE DEVELOPMENT OF TRADITIONAL PEOPLES AND COMMUNITIES IN MINAS GERAIS:
CONSTRUCTIONS, CHALLENGES AND LIMITATIONS
Abstract: The objective of this article is to establish, from the analytical-methodological
perspective of studies on State and power relations, a genealogy of the State Commission of
Traditional Peoples and Communities of Minas Gerais (CEPCT-MG), a consultative and
deliberative political body responsible for monitoring and supervising the implementation of
the State Policy for the Sustainable Development of Traditional Peoples and Communities of
Minas Gerais (State Law No. 21,147/2014). The methodological procedures consist of empirical
analysis, documentary research and application of theoretical framework inscribed in the field
2Bacharel em Ciências Socioambientais (UFMG), Mestre em Sociedade, Ambiente e Território (PPGSAT
-UFMG/Unimontes), Doutorando em Desenvolvimento Social (PPGDS Unimontes/Bolsista CAPES).
Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA/Unimontes). ORCID iD:
0009-0006-1952-9141. E-mail: gabrielcostaribeiro@gmail.com.
1Este artigo científico é produto de pesquisas realizadas no âmbito do projeto Mineração no semiárido
mineiro: Estado, atores e conflitos territoriais (FAPEMIG APQ-01351-21), sob coordenação do Prof. Dr.
Rômulo Soares Barbosa (DPCS Unimontes), bem como de projeto de doutoramento desenvolvido no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social (PPGDS Unimontes).
Agradecimentos especiais à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à
sociedade brasileira como um todo pela confiança e pelo financiamento do trabalho aqui apresentado.
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of Social Sciences. The case study presented provides valuable elements for understanding how
the conduct of the Commission's work is the result of intense disputes over the monopoly of
symbolic power, as well as the structures that enable the control exercised by State agents in
the implementation of public policies for ethnic recognition, in the face of the prism of
territorial guarantees and rights of traditional peoples and communities.
Keywords: Traditional Peoples and Communities. Social Subjetcs. Spaces of Representation.
Organized Civil Society. Ethnic Rights.
ACTOS DE ESTADO Y DISPUTAS DE PODER EN LA IMPLEMENTACIÓN DE LA POLÍTICA ESTATAL
PARA EL DESARROLLO SOSTENIBLE DE LOS PUEBLOS Y COMUNIDADES TRADICIONALES EN
MINAS GERAIS: CONSTRUCCIONES, DESAFÍOS Y LIMITACIONES
Resumen: El objetivo de este artículo es establecer, desde la perspectiva
analítico-metodológica de los estudios sobre el Estado y las relaciones de poder, una
genealogía de la Comisión Estatal de los Pueblos y Comunidades Tradicionales de Minas Gerais
(CEPCT-MG), órgano político consultivo y deliberativo responsable del seguimiento y
supervisión de la aplicación de la Política Estatal para el Desarrollo Sostenible de los Pueblos y
Comunidades Tradicionales de Minas Gerais (Ley Estatal 21.147/2014). Los procedimientos
metodológicos consisten en análisis empíricos, investigación documental y la aplicación de un
marco teórico inscrito en el campo de las Ciencias Sociales. El estudio de caso presentado
proporciona elementos valiosos para comprender cómo la conducción del trabajo de la
Comisión es el resultado de intensas disputas por el monopolio del poder simbólico, así como
las estructuras que permiten el control ejercido por los agentes del Estado en la
implementación de las políticas públicas de reconocimiento étnico, frente al prisma de las
garantías territoriales y los derechos de los pueblos y comunidades tradicionales.
Palabras-clave: Pueblos y Comunidades Tradicionales. Sujeitos Sociales. Espacios de
representación. Sociedad Civil Organizada. Derechos Étnicos.
INTRODUÇÃO
Em Minas Gerais, o processo de institucionalização das normativas e políticas
públicas relacionadas à salvaguarda e reconhecimento de direitos dos povos e
comunidades tradicionais3contou com a interlocução ativa de movimentos sociais
junto à Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG), Ministério Público
Estadual e Federal e classe acadêmica, sendo possível editar e aprovar a Lei Estadual
21.147/2014, de matéria relacionada à Política Estadual para o Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais. Atualmente, a
3Almeida (2006) traça uma etimologia da categoria ‘povos tradicionais’ no cenário brasileiro nas duas
primeiras décadas pós-Constituição Federal de 1988. Descreve o processo pelo qual a categoria
‘populações tradicionais’ vai sendo substituída por ‘povos tradicionais’, incorporando assim uma
perspectiva de mobilização política continuada à dimensão histórico-cultural existente na
compreensão do termo (p. 25). Posteriormente, a partir da formalização de política pública de matéria
específica a este público, agrega-se a qualificadora conceitual comunidades’, com o intuito de diferir a
dimensão originária, que no Brasil engloba tão somente os povos indígenas, das demais etnicidades
existentes e emergentes.
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instância responsável por fiscalizar a efetivação da política pública é a Comissão
Estadual para o Desenvolvimento Sustenvel dos Povos e Comunidades Tradicionais
de Minas Gerais (CEPCT-MG), de caráter deliberativo e consultivo, contendo
atualmente representações de segmentos identitários de povos e comunidades
tradicionais e agências de Estado.
Criada pelo Decreto Estadual 46.671/2014, a CEPCT-MG possui como
atribuições regimentais, em síntese: 1) elaborar, acompanhar e monitorar a execução
do Plano Estadual que versa sobre a matéria; 2) propor as ações necessárias para a
articulação, execução e consolidação de políticas relevantes para a temática em nível
estadual; 3) criar e coordenar câmaras técnicas ou grupos de trabalho; 4) promover
debates públicos; 5) deliberar sobre a emissão de certidão de autodefinição para
reconhecimento formal; e, por último, 6) coordenar os Encontros Estaduais de Povos e
Comunidades Tradicionais. Nesse sentido, a Comissão possui como principal
responsabilidade promover ões de incidência política juntamente com
institucionalidades estatais às pautas relacionadas aos povos e comunidades
tradicionais mineiros, buscando abrir flancos para a efetivação de direitos devidamente
constituídos, sendo, portanto, o elo político entre a Lei Estadual 21.147/2014 e os
segmentos identitários coletivamente organizados em associações, sindicatos,
movimentos sociais e redes regionais.
No entanto, passados exatos nove anos da lei sancionada, diante de uma
jornada política turbulenta em termos de garantias aos direitos desses povos e uma
pandemia que nos obrigou a vivenciar novas rotinas e restrições sociais, a execução da
Política Estadual vivencia intensos desafios. Considerada extremamente sofisticada4em
termos jurídicos inclusive em relação à própria Política Nacional de Povos e
Comunidades Tradicionais (Decreto 6.040/20075), ainda carece de regulamentações
5O ordenamento jurídico nacional tem neste decreto a principal legislação relacionada à temática. A
PNPCT tem como meta promover o desenvolvimento sustenvel com ênfase no reconhecimento,
fortalecimento e garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais de grupos
etnicamente diferenciados. De acordo com a referida legislação, os povos tradicionais são grupos
culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais, dotados de formas próprias de organização
social, ocupantes, usuários e guardiões de recursos naturais e territórios cuja manutenção a partir de
determinados conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição são condições
intrínsecas à sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica (BRASIL, 2007).
4Costa Filho et al (2015), afirmaram logo após a sanção da Lei 21.147/2014 que a mesma deveria ser
discutida como um novo patamar na escala de conquistas pelo reconhecimento e garantia de direitos
no âmbito estadual” (p. 77). À reboque de toda expectativa criada, percebe-se um nítido movimento de
procrastinação por parte do governo de Minas Gerais nas regulamentações pendentes.
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que dificultam a sua aplicabilidade. Apenas três de seus vinte e seis objetivos
específicos foram regulamentos a então: 1) os procedimentos a serem adotados para
reconhecimento legal de comunidades a partir da autoafirmação; 2) mecanismos para
regularização fundiária de territórios; e 3) o conjunto de normas técnicas para
prospecção, mapeamento social e caracterização dos modos de vida dos povos e
comunidades tradicionais do estado (Decreto Estadual 47.289/2017).
Em termos de representação, a CEPCT-MG possui a Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social (SEDESE) como secretaria executiva, bem como a sociedade
civil organizada representada por representantes faiscadores/garimpeiros tradicionais,
artesãos de barro e tecelãs, congadeiros, quilombolas, povos tradicionais de matriz
africana, povos de circo, ciganos, pescadores artesanais, caatingueiros, vazanteiros,
apanhadores de flores sempre-vivas, geraizeiros, vacarianos, veredeiros,
groteiros-chapadeiros, carroceiros, e indígenas. também representantes das
agências de Estado. compuseram a Comissão algumas ainda compõem - as
secretarias de Estado da Saúde, Agricultura, Educação, Cultura, de Desenvolvimento e
Integração do Norte e Nordeste de Minas, de Trabalho e Desenvolvimento Social, do
Planejamento, de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (SEDPAC), de
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SEAPA), de Meio Ambiente, além do IEF, IDENE,
EMATER, Ruralminas, IEPHA, UEMG, UNIMONTES, Polícia Militar, MPMG, INCRA,
FUNAI, dentre outros.
Reunidos com o intuito de fazer valer uma Política Estadual para o
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais,
algo inédito no cenário brasileiro em termos de entes federativos, a CEPCT-MG tem se
tornado expressão evidente de ideologias, perspectivas e pontos de vista muitas vezes
divergentes. Se, por um lado, a Comissão tem apresentado por parte de parcela das
agências de Estado perspectivas pouco garantistas no que tange à salvaguarda de
direitos coletivos e territoriais, influenciadas por práticas de governo que trazem para a
máquina pública lobbys empresariais6,por outro pesquisadores, promotores, membros
6Estratégias antidemocráticas alinhadas aos interesses neoextrativistas, sobretudo à mineração, que têm
sido adotadas nos mandatos do atual governador do estado de Minas Gerais (2019-2022; 2023-2026). A
Reforma Administrativa estabelecida no primeiro semestre de 2023 (PL 358/2023) configurou-se como
um grande retrocesso quando não previu na estrutura e entre as competências da SEAPA instrumentos
para a regularização fundiária de territórios coletivos.
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de articulações políticas, dentre outros, tem se queixado da ineficácia na
implementação da política pública, rotulando a Comissão como um simulacro de
métodos operantes de procedimentos em tese democráticos e participativos.
Motivada por essa multiplicidade de perspectivas, expectativas e frustrações, o
presente artigo tem como objetivo estabelecer uma genealogia da CEPCT-MG, seus
precedentes e principais travessias até aqui, visando evidenciar de qual forma a
direção de seus trabalhos é resultante de intensas disputas pelo monopólio do poder
simbólico e das estruturas que possibilitam o controle exercido por agentes de Estado
da execução de políticas públicas de reconhecimento étnico. Os procedimentos
metodológicos consistem em análises empíricas, pesquisa documental e aplicação de
referencial teórico-analítico que examinam o papel do Estado, seus atos, omissões e
princípios de classificação, bem como bibliografia auxiliar inscrita no campo das
Ciências Sociais.
ESTADO E GARANTIA DE DIREITOS DE TERCEIRA GERAÇÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO
O cenário pós Constituição Federal de 1988 tem sido marcado por diferentes
concepções históricas e disputas simbólicas acerca do que se compreende ser o papel
dos direitos de terceira geração7nas estratégias de desenvolvimento econômico,
cabendo à Administração Pública8,em todas as suas nuances, a sua devida aplicação
prática. Das canetas dos legisladores e dos decretos do Executivo, passando pelo
assentimento das casas legislativas, têm se materializado um conjunto de dispositivos e
regulamentações cuja execução é atribuição de sujeitos como operadores do direito,
técnicos e servidores públicos de formação variados, legalmente habilitados a tomar
decisões administrativas, por estarem à frente de agências públicas competentes.
8Considerando que o termo Administração Pública possui uma infinidade de sentidos de expressão,
utilizo a categorização de Teixeira & Souza Lima (2010): “três seriam os sentidos que melhor condensam
essa pletora de definições: (1) a atividade de servidores públicos; (2) a estrutura do governo executivo;
(3) e o estudo sistemático dos dois primeiros” (p. 54). Os autores também consideram como parte desse
domínio a própria forma social acreditada como ordenando uma coletividade (no caso do Estado
Nacional brasileiro, o regime republicano e a democracia), na qual se combinam crença e materialidade,
por exemplo, na divisão de poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário)” (p. 55).
7“Os direitos fundamentais de terceira geração, ligados ao valor fraternidade ou solidariedade, são os
relacionados ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem
como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao direito de
comunicação. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero
humano” (NOVELINO, 2009).
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No esteio das regulamentações infraconstitucionais, a participação popular em
processos decisórios ganha contornos formais a partir do surgimento das comissões e
conselhos consultivos e deliberativos mistos, comumente paritários, que buscam criar
um clima de formalidade às institucionalidades representativas da sociedade civil
organizada diante de um contexto mais amplo de reivindicações de direitos difusos e
coletivos ao final da década de 1980. Tais espaços de discussão, construção e
fiscalização da política pública deveriam, em tese, representar a potência e a
visibilidade de discursos contra-hegemônicos, trazendo consigo novos contornos
institucionais às pautas dos movimentos sociais, que também disputam, em
contraposição a interesses dos detentores do capital financeiro, a narrativa de qual
deveria ser o papel dos direitos de terceira geração nas estratégias de desenvolvimento
econômico.
Em termos teórico-analíticos, temos nos contrapesos observados entre capital
econômico e capital cultural a configuração do que Bourdieu (2004) definiu como
campo. Para o autor, o campo se caracteriza pela configuração de um espaço de
disputa pelo monopólio da produção simbólica, cuja eficácia se situa no poder de
imposição de uma visão de mundo. A posse de capitais específicos determina a posição
dos agentes nesse campo e a eficácia simbólica da representação por eles enunciadas.
Trazendo ao contexto brasileiro de tradução do texto jurídico em política pública “na
ponta”, é a eficácia simbólica das conjunturas políticas, sejam elas exercidas em
períodos progressistas ou àqueles mais conservadores, que possuem a capacidade de
regulamentar, (des)regulamentar, tutelar, ou implodir a aplicação das prerrogativas
garantidas em lei.
Os campos são os lugares de relações de forças que implicam tendências
imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente
ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada
momento (...) Há, portanto, estruturas objetivas, e além disso lutas em
torno dessas estruturas. Os agentes sociais, evidentemente, não são
partículas passivamente conduzidas pelas forças do campo (BOURDIEU,
2004 p. 27).
A partir de 2003, temos observado um marcante esforço na busca pela
regulamentação de políticas públicas afirmativas de identidade étnico-racial, tendo
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como pressuposto a interveniente e ativa presença do Estado, no que se refere ao
reconhecimento e salvaguarda de direitos coletivos. Jurisprudências, regulamentações
e conselhos mistos deliberativos foram criados, territórios indígenas e quilombolas
foram homologados, e a pauta de direitos étnicos parecia convergir positivamente na
esfera das garantias práticas. Contudo, passados dezesseis anos, em 2019, ao final da
década seguinte, ocorre uma drástica inversão na posição dos agentes no campo, pelo
qual a Administração Pública, influenciada por outro viés ideológico, passou a
combater o garantismo progressista de outrora, marginalizando sujeitos e paralisando
a ação estatal diante de uma pretensa narrativa ideológica de “liberdade” (para quê e
para quem?). Consequentemente, as agências de Estado passaram a atuar como
fiadores de interesses de segmentos distintos, sobretudo do agronegócio e do setor
energético-minerário, e apoiados no discurso do Estado mínimo extinguiram
conselhos, não mais demarcaram territórios tradicionalmente ocupados e
marginalizaram movimentos sociais, em uma nítida nostalgia antidemocrática9.
Bourdieu (2009) trata as estruturas como heranças construídas nas relações
históricas, que se tornaram estruturantes ao longo do tempo e exercem influência
contínua nas regras do jogo social. Remetendo ao exemplo brasileiro, o planejamento e
o uso dos espaços vêm sendo historicamente regidos por valores, significados,
intenções e sociabilidades específicas. Todos os governos, sejam eles ditatoriais ou
democráticos, de esquerda ou de direita, são verdadeiros mediadores desses
interesses, cada um à sua maneira e intensidade, em um claro movimento de se
garantir o monopólio do poder simbólico por intermédio da obtenção e controle de
capital econômico e capital cultural, cada qual portador de um habitus distinto e
específico:
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de
existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e
transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como
estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e
organizadores de práticas e de representações que podem ser
9De acordo com informações divulgadas no portal eletrônico da FUNAI e INCRA, entre 1988 e 2018
foram homologadas 496 terras indígenas e 197 territórios quilombolas. Por outro lado, entre 2019 e
2022, com a pauta do reconhecimento de direitos étnicos totalmente paralisada, cerca de 400.000
títulos individuais de terra foram expedidos, muitos deles em regiões de disputa entre grileiros e povos e
comunidades tradicionais.
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objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente
de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los,
objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto de
obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente,
orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro
(BOURDIEU, 2009 p. 87).
Erber (2010) afirma que o início dos anos 2000 marcou o estabelecimento de
um “pacto neodesenvolvimentista” na política macroeconômica brasileira, configurada
como uma diretriz estratégica capaz de “privilegiar as relações com outros países em
desenvolvimento (seja da América Latina, seja do grupo Brasil, Rússia, Índia e China -
Bric)” (p. 29). Por esta via, foi estabelecido um modelo de governabilidade pautado no
binômio crescimento econômico/bem-estar social. A partir de 2019 a 2022,
retornaríamos à influência de ideias neoliberais, por onde uma onda/movimento de
livre mercado em relação à economia pretendeu avançar, sobretudo, no controle das
contas públicas, em supostas ões que visavam desburocratizar e reduzir o Estado. Na
prática, fundos de investimento e corporações transnacionais consolidaram seu espaço
de hegemonia no seio dessa agenda macroeconômica, tornando-se, aos mesmos
moldes do final da década de 1980, ao mesmo tempo, causa e consequência do
processo de concentração e centralização do capital, com origem nos países
capitalistas avançados” (GONÇALVES, 1994 p. 47). Importante destacar que as políticas
públicas de salvaguarda a direitos étnicos foram integralmente paralisadas no período
destacado, em uma clara tentativa de asfixia.
Inscrita no contexto narrado, está a CEPCT-MG. A próxima seção do presente
artigo buscará evidenciar os principais desafios observados na trajetória de condução
de trabalhos da Comissão, desde a sua criação em 2014, passando pelos desafios
observados no transcorrer da pandemia da covid-19 a sua configuração atual.
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A CEPCT-MG E A EXECUÇÃO DA POLÍTICA ESTADUAL PARA O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DE MINAS GERAIS
Em 2014, ao final do mandato do então governador do estado de Minas Gerais,
foi sancionada a Lei Estadual 21.14710,em uma manobra eleitoreira que visava
angariar eleitores para a sua candidatura ao Senado Federal no mesmo ano.
Curiosamente, como pode ser percebido em seu conteúdo, a lei interfere e prejudica
diretamente aos interesses dos seus principais financiadores de campanha, sobretudo
mineradoras e empresas monocultoras. A matéria em questão foi idealizada por
pesquisadores com extensa expertise no campo de estudo dos povos tradicionais,
sendo posteriormente modificada por parlamentares da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a partir de articulação política da
Coordenadoria de Mobilização e Inclusão Sociais do Ministério Público Estadual
CIMOS/MPMG, e de ampla mobilização social por ocasião da Audiência Pública em
defesa das Comunidades Tradicionais Veredeiras. O substitutivo que acabou se
transformando em lei contou com a contribuição do ex-coordenador da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustenvel dos Povos e Comunidades Tradicionais, o
antropólogo e professor Aderval Costa Filho. Dentre os pontos mais polêmicos da
legislação, destaca-se o artigo que visa garantir a permanência dos povos e
comunidades tradicionais mineiros em seus territórios em situações de conflito,
justamente pelo fato de que o referido dispositivo caminha na contramão dos
interesses dos lobistas, players,holdings, investidores internacionais, bem como das
elites políticas e econômicas mineiras e suas ambições de desenvolvimento para o
estado.
Art. inciso VIII: Assegurar aos povos e comunidades tradicionais a
permanência em seus territórios e o pleno exercício de seus direitos
individuais e coletivos, sobretudo nas situações de conflito ou ameaça à sua
integridade, bem como a defesa dos direitos afetados direta ou
indiretamente, seja especificamente por projetos, obras e
10 Antes mesmo de entrar em vigor, a diretriz para a execução da lei tramitou por instâncias como a
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário (SEDA), pela Secretaria de Estado de Direitos
Humanos, Participação Social e Cidadania (SEDPAC) até chegar na Secretaria de Estado de Casa Civil e
Relações Institucionais (SECCRI), e por isso somente em março de 2018 foram denominados os espaços
responsáveis.
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empreendimentos, seja genericamente pela reprodução das relações de
produção dominantes na sociedade (MINAS GERAIS, 2014).
Ora, a existência histórica de diferentes racionalidades, lógicas e processos de
apropriação que territorializam o capital de modo espacialmente seletivo e
socialmente excludente fazem de Minas Gerais campo fértil para o surgimento de
situações de conflito ou ameaça, mobilizando agentes com racionalidades distintas e
pautadas em relações de poder assimétricas. Quando analisamos o processo de
formação das elites políticas e econômicas mineiras e suas ambições de
desenvolvimento para o estado, é nítida a busca pela manutenção de privilégios a uma
elite conservadora de origem agrícola, bem como uma suposta vocação histórica para a
mineração, que formaram historicamente o habitus do poder estatal. Assim sendo, ao
conseguir sancionar a Lei Estadual 21.147/2014, é possível observar a incidência de
agentes posicionados no polo inverso aos seus interesses, que têm travado o
enfrentamento político e o bom combate em prol da reforma agrária, do direito à
propriedade e das pautas autoafirmativas no estado. Trata-se de estruturas construídas
focadas em uma atuação mais politizada, situada e posicionada em defesa dos povos,
da terra, das águas, do meio ambiente e do território.
Conforme descrito por Dayrell (2019), a criação da CEPCT-MG é precedida pela
Comissão Regional de Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 2006 com o intuito
de socializar as discussões realizadas à época para implementação da Política Nacional
de Povos e Comunidades Tradicionais no âmbito do Ministério do Meio Ambiente
(MMA) e do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Pobreza (MDS). Os
trabalhos da Comissão Regional concentraram-se no Norte de Minas, e resultaram na
criação da Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais em 2010,
que desde então é a expressão mais nítida das alianças nativas construídas no Norte de
Minas, envolvendo oito segmentos identitários11 que buscam, através da unificação de
suas lutas, manterem o reconhecimento de suas diferenças culturais e ecológicas
vinculadas à defesa dos seus territórios.
11 Povos indígenas, comunidades quilombolas, geraizeiras, catingueiras, vazanteiras, veredeiras,
vacarianas e apanhadoras de flores sempre-vivas.
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A constituição da Comissão Regional, que deu origem à Articulação
Rosalino, passou a discutir em Minas Gerais a criação de uma política
estadual. O projeto de lei estava sendo discutido na ALMG, mas os trâmites
internos na Assembleia encontravam muitas barreiras. A oportunidade
surgiu no final do ano de 2013, em uma das negociações com a bancada do
governador Anastasia, o projeto de lei entrou no pacote em contrapartida
da aprovação das demandas fiscais do governo. (...) O projeto de lei foi
aprovado pela ALMG e, em 14 de janeiro de 2014, o governador Anastasia
promulgou a lei. E, depois, com o governo de Pimentel, a política estadual
foi regulamentada com a criação da Comissão Estadual de Povos e
Comunidades Tradicionais (DAYRELL, 2019 p. 313).
Os membros da primeira composição da CEPCT-MG para o mandato
(2015-2017) foram empossados no I Encontro Estadual de Povos e Comunidades
Tradicionais, realizado em outubro de 2015, em Belo Horizonte. Durante três dias, o
encontro possibilitou um momento de troca entre os diversos segmentos identitários
de povos e comunidades tradicionais, atores do governo e entidades da sociedade civil,
ambiente pelo qual foi definida a composição da Comissão, a quem passou a competir
ações de elaboração, acompanhamento e monitoramento da execução do Plano
Estadual para o Desenvolvimento Sustenvel dos Povos e Comunidades Tradicionais
por intermédio de agências como a presidência, o plenário, a secretaria executiva,
câmaras técnicas e grupos de trabalho.
Em termos práticos, o que se percebeu ao longo dos e mandatos entre
2015-2020, visto que houve renovação automática, foi um grande movimento no
sentido da emissão de certidões de autodefinição, documento oficial que muito tem
contribuído na visibilização das lutas e identidades regionais, e propagandeado pelo
Governo de Minas Gerais como o primeiro passo para a regularização de territórios
tradicionalmente ocupados12.Ocorre que, após certificadas, as comunidades ficaram à
mercê da burocracia estatal, sobretudo após 2019 e a onda de direita que elegeu
12 Em cartilha intitulada “Fluxograma para titulação de territórios coletivos MG”, publicada em 2018
pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário (SEDA), a certidão emitida pela CEPCT-MG seria,
em tese, o primeiro passo que resultaria no processo de titulação de territórios tradicionais. No
documento, são apresentados os procedimentos para que uma determinada comunidade ou segmento
identitário obtenha o documento autodeclaratório, a saber: 1) envio de ofício à presidência/secretaria
executiva contendo breve relato; 2) recebido o documento, é realizada visita técnica de comitiva e
elaboração de relatório de visita; 3) apresentação de relatório e petição para deliberação em plenário; 4)
caso aprovada, a autorização é encaminhada à superintendência competente para devidas providências
legais (MINAS GERAIS, 2018 p. 6). Passados cinco anos da publicação da cartilha, a metodologia jamais
conseguiu ser aplicada em nenhum caso específico.
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políticos com viés conservador nos Executivos nacional e estadual. Igualmente, a
pandemia da covid-19 os obrigou a estabelecer novos parâmetros de normalidade,
sobretudo diante da necessidade de adaptação ao mundo virtual, mesmo não havendo
inclusão digital para muitas das comunidades e grupos representados.
As dificuldades em série aqui apresentadas são potencializadas por um notório
processo de mudança de postura dos agentes de Estado que representam as
secretarias estaduais, diante de um contexto de paralisação da agenda de
reconhecimento étnico pelos governos de direita. Consequentemente, o diálogo entre
os agentes se converteu, desde então, numa participação burocrática e figurativa, sem
dotação orçamentária, caracterizando assim uma política pública que tem se mostrado
falha em termos de sua aplicabilidade. É notório o desvio de finalidade exercido,
sobretudo, por parte da SEDESE, no momento em que utiliza da sua posição de apoio
técnico, administrativo e de secretariado junto à Comissão para mediar e validar
interesses distintos aos da sociedade civil organizada. Seguindo a linha analítica de
Bourdieu (2014), a SEDESE, como agente de Estado, tem utilizado da tutela como
instrumento de poder, com o intuito de atender interesses dominantes.
Na lógica da hegemonia, os agentes de Estado são pensados como estando
a serviço não do universal e do bem público como eles pretendem, mas dos
dominantes economicamente e dos dominantes simbolicamente, e ao
mesmo tempo a seu próprio serviço, ou seja, os agentes do Estado servem
os dominantes econômica e simbolicamente e, servindo, se servem
(BOURDIEU, 2014 p. 38).
É possível listar dois eventos específicos que realçam tal percepção: 1) em
2021, uma tentativa por parte do Governo de Minas Gerais de se manter na ilegalidade
os mandatários representantes da sociedade civil na CEPCT-MG, questionando a
recondução automática dos conselheiros e a ausência de registro formal à época no
Diário Oficial do Governo do Estado de Minas Gerais, o que seria atribuição estatutária
da SEDESE. Passaram a duvidar, inclusive, dos efeitos legais das deliberações feitas em
reuniões posteriores. Mesmo havendo este imbróglio, foi marcada a realização de
eleições para escolha dos integrantes da sociedade civil na CEPCT-MG para o
mandato (2022-2024) por ocasião do II Encontro Estadual de Povos e Comunidades
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Tradicionais, ocorrido em meio virtual em junho de 2022, quando houve um processo
de recomposição de seus membros. Desde então, a nova composição não foi
oficializada; 2) em 2022, foi publicada a Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD 01,
visando regulamentar e institucionalizar a realização de Consulta Livre, Prévia e
Informada13 juntamente a povos e comunidades tradicionais que podem vir a ser
afetados por medidas legislativas ou administrativas, como por exemplo
licenciamentos ambientais de grandes obras. Após grande repúdio dos movimentos
sociais representativos e classe acadêmica, que questionaram a falta de participação
dos povos e comunidades tradicionais na discussão, em maio de 2023, foi publicado no
Diário Oficial de Minas Gerais a revogação da Resolução, sinalizando que a mesma
infringia e adulterava direitos adquiridos e ratificados em textos constitucionais e
infraconstitucionais.
Desde a realização do II Encontro, ainda em 2022 e até o momento (setembro
de 2023), a Comissão vivencia certo vácuo político, visto que seus novos conselheiros
não foram devidamente empossados, e os conselheiros cujos mandatos expiraram
estão desautorizados ou deslegitimados em termos de representação e participação na
instância de controle social, a CEPCT-MG. Enquanto isso, é notório o claro movimento
por parte dos agentes de Estado de se extinguir a referida Comissão por falta de
dotação orçamentária, e, principalmente, por falta de vontade política.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese os esforços para conformação de um Estado Democrático de
Direito no Brasil, uma análise crítica das situações apresentadas no presente artigo
acaba por nos levar à conclusão, em primeiro plano, que uma continuidade das
injustiças e de ofensas aos princípios constitucionais e infraconstitucionais,
especialmente em relação à garantia e salvaguarda de direitos étnicos no estado de
Minas Gerais e no Brasil como um todo. Em segundo plano, a participação constitui um
13 Sobre os protocolos de consulta, Giffoni (2020) esclarece que os mesmos “foram criados enquanto
instrumentos de autorregulamentação do procedimento de consulta prévia, livre e informada, previsto
pela Convenção 169 da OIT. A Convenção determina que, toda vez que um ato administrativo ou uma lei
venha a causar interferência no modo de vida dos povos indígenas e dos povos tribais (quilombolas,
comunidades tradicionais, no Brasil), deve ser garantido a eles o direito de serem consultados, de forma
prévia, livre e informada, por meio dos procedimentos adequados, de acordo com sua identidade
cultural, social, político e jurídica” (GIFFONI, 2020 p. 91).
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princípio ou pré-requisito para a implementação de uma política pública eficaz e
pautada por mecanismos de governança popular. Entretanto, da forma como vem
sendo efetivada e manipulada, acaba por gerar a despolitização do debate a partir da
negação de outros discursos produzidos fora da lógica instrumental vigente. É por essa
relação parasitária que se percebe a derrota da efetividade e da eficácia normativa,
para a adequação de interesses mediante a flexibilização.
Diante desse contexto, temos no caso dos povos e comunidades tradicionais
mineiros a recorrência de conflitos fundiários, inclusive, com o significativo aumento
de assassinatos de lideranças, a permanência de déficits educacionais, fome
generalizada, altas taxas de desemprego, acesso deficitário à saúde, retrocessos nos
direitos adquiridos e precariedade das condições de moradia e infraestrutura. Quadro
este que não é apenas reflexo de uma situação histórica de apartação social, mas
também resultado do modelo de desenvolvimento que, enraizado no modus operandi
da política econômica do estado, permanece mantendo excluída essa parcela da
sociedade civil dos processos decisórios, mesmo em situações nas quais estes espaços
existem e deveriam funcionar.
Diante deste desafio, no caso específico da proposição de uma Política Estadual
para o Desenvolvimento Sustenvel de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas
Gerais, refletida na atuação política da instância de controle social intitulada como
CEPCT-MG, o diálogo com agências de Estado têm se convertido numa presença mais
técnica, burocrática e figurativa, em virtude do constante movimento de esvaziamento
desse espaço, constantemente subsumido e submetido a técnicas de governo que, por
consequência, acabam por reafirmar projetos políticos divergentes de uma perspectiva
emancipatória da sociedade. Sendo assim, a busca por sociedades mais justas,
sustentáveis e democráticas implicará repensarmos e construirmos, definitivamente,
novas formas de interação entre sujeitos sociais, agências de Estado e territórios.
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