https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n2p35-57
Vol. 29, n. 2, jul/dez, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
POR UM DESENVOLVIMENTO SOCIAL ANALISADO PELOS EIXOS DA
OPRESSÃO E DA EXCLUSÃO POR MOTIVO DE GÊNERO E DE CAPACIDADE
Werley Pereira de Oliveira1
Maria da Luz Alves Ferreira2
Recebido em: 11/10/2023
Aprovado em: 20/12/2023
Resumo: Investigamos em que medida uma teoria do reconhecimento pode auxiliar medidas
que justifiquem e avaliem políticas de reconhecimento recíproco, redistribuição e
representação destinadas às pessoas com deficiência e às mulheres. Estas pessoas, em suas
lutas intersubjetivas e de desigualdades materiais, enfrentam o hibridismo da opressão e da
exclusão em dois pontos confluentes: 1) o controle e a estigmatização dos corpos e a 2) baixa
representação política nos parlamentos. Nosso objetivo incide em reforçar que o
desenvolvimento social justo, igualitário e inclusivo fará sentido quando arquitetado na
coletividade e por pessoas marcadas pela diferença que mobilizam intervenções, diálogos, ão
política, artísticas culturais para enunciar campos materiais e simbólicos como novas formas de
sociabilidades. Concluímos que é imperativo pensar as situações vivenciadas pelas pessoas
com deficiência e pelas mulheres de modo multidisciplinar para examinar os aspectos sociais,
políticos, econômicos e culturais. Para além dos debates de desigualdades e de exclusão, que a
discussão da integralidade destas pessoas perpasse pelas ideias do reconhecimento recíproco,
da redistribuição e da representação política. Trata-se de um estudo teórico que analisa o
desenvolvimento social a partir dos eixos da opressão e da exclusão (DUBET, 1987; FRASER,
1995; SANTOS, 1999; GHAI, 2002; ESTIVILL, 2006; SOULET, 2006; PEREIRA, 2007).
Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Desigualdades. Diferenças. Reconhecimento.
Representação política.
FOR SOCIAL DEVELOPMENT ANALYZED BY THE AXES OF OPPRESSION AND EXCLUSION BY
GENDER AND CAPACITY
Abstract: We investigate the extent to which a theory of recognition can assist measures that
justify and evaluate policies of reciprocal recognition, redistribution and representation aimed
at people with disabilities and women. These people, in their intersubjective struggles and
material inequalities, face the hybridity of oppression and exclusion at two confluent points: 1)
the control and stigmatization of bodies and 2) low political representation in parliaments. Our
2Doutora em Ciências Humanas (Sociologia e Política) pela Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG.
Professora do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de
Montes Claros/PPGDS-Unimontes. E-mail: maria.ferreira@unimontes.br. ORCID iD:
https://orcid.org/0000-0001-5240-163X.
1Doutorando e mestre em Desenvolvimento Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Estadual de Montes Claros/PPGDS-Unimontes. Advogado previdenciarista. E-mail:
werley.educador@gmail.com. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9987-9718.
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objective focuses on reinforcing that fair, egalitarian and inclusive social development will make
sense when designed in the
community and by people marked by difference who mobilize interventions, dialogues,
political and artistic cultural actions to enunciate material and symbolic fields as new forms of
sociability. We conclude that it is imperative to think about the situations experienced by
people with disabilities and women in a multidisciplinary way to examine the social, political,
economic and cultural aspects. In addition to debates on inequalities and exclusion, the
discussion of the integrality of these people permeates the ideas of reciprocal recognition,
redistribution and political representation. This theoretical study analyzes social development
from the axes of oppression and exclusion (DUBET, 1987; FRASER, 1995; SANTOS, 1999; GHAI,
2002; ESTIVILL, 2006; SOULET, 2006; PEREIRA, 2007).
Keywords: Interdisciplinarity. Inequalities. Differences. Recognition. Political representation.
PARA EL DESARROLLO SOCIAL ANALIZADO POR LOS EJES DE OPRESIÓN Y EXCLUSIÓN POR
GÉNERO Y CAPACIDAD
Resumen: Investigamos hasta qué punto una teoría del reconocimiento puede ayudar a
medidas que justifiquen y evalúen políticas de reconocimiento, redistribución y representación
recíprocas dirigidas a personas con discapacidad y mujeres. Estas personas, en sus luchas
intersubjetivas y desigualdades materiales, enfrentan la hibridez de la opresión y la exclusión
en dos puntos confluentes: 1) el control y estigmatización de los organismos y 2) la baja
representación política en los parlamentos. Nuestro objetivo se centra en reforzar que el
desarrollo social justo, igualitario e inclusivo tendrá sentido cuando sea diseñado en la
comunidad y por personas marcadas por la diferencia que movilicen intervenciones, diálogos,
acciones culturales políticas y artísticas para enunciar campos materiales y simbólicos como
nuevas formas de sociabilidad. Concluimos que es imperativo pensar las situaciones que viven
las personas con discapacidad y las mujeres de manera multidisciplinaria para examinar los
aspectos sociales, políticos, económicos y culturales. Además de los debates sobre
desigualdades y exclusión, la discusión sobre la integralidad de estas personas permea las ideas
de reconocimiento recíproco, redistribución y representación política. Este es un estudio
teórico que analiza el desarrollo social desde los ejes de opresión y exclusión (DUBET, 1987;
FRASER, 1995; SANTOS, 1999; GHAI, 2002; ESTIVILL, 2006; SOULET, 2006; PEREIRA, 2007).
Palabras-clave: Interdisciplinariedad. Desigualdades. Diferencias. Reconocimiento.
Representación política.
INTRODUÇÃO
Desenvolvemos o presente estudo com o objetivo de reforçar que o
desenvolvimento social justo, igualitário e inclusivo fará sentido quando arquitetado na
coletividade e por pessoas marcadas pela diferença. Desta forma, ele permitirá que
estas pessoas possam mobilizar intervenções, diálogos, ação política, artísticas
culturais a fim de enunciar campos materiais e simbólicos como novas formas de
sociabilidades. Investigamos o gênero como categoria relacional no atributo de
mulheres e a capacidade de pessoas com deficiência como forma de pensar o
desenvolvimento social para além do fator econômico. Sob os aspectos do
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reconhecimento e da produção social, reforçamos a existência de situações de
desigualdades que geram opressão e exclusão enfrentadas por pessoas com deficiência
e mulheres. Interessamos em problematizar em que medida a teoria do
reconhecimento, da redistribuição e da representação auxiliam à decolonialidade de
gênero e de capacidade.
A título de intróito, sem a intenção de esgotar todos os temas das causas e lutas
dos movimentos sociais de mulheres e de pessoas com deficiência, deixamos claro que
a problemática de gênero e as questões de deficiência são temas centrais na análise.
Antes, porém, vale destacarmos que as discussões de gênero não se atém
exclusivamente ao feminismo3, inclusive, questionar a noção de ‘mulheres’ como
sujeito do feminismo” anteparará a “possibilidade do feminismo como política
representacional” (JUDITH BUTLER4, 2018, p. 24). Por isso, investigamos a relevância
dos movimentos de mulheres às políticas públicas comprometidas com o direito das
minorias e com a construção de uma sociedade mais emancipada e livre das formas de
opressão e de dominação. Não nos preocupamos, por ora, com o sujeito jurídico do
feminismo que é empreitada da genealogia feminista pela categoria das mulheres.
Acreditamos que o reconhecimento e a relevância do feminismo como sujeito político
de todas as mulheres são imprescindíveis.
De acordo com Telma Gurgel (2010), a luta pela igualdade e liberdade foi o
tema central na primeira expressão do feminismo como sujeito político das mulheres
brancas do ocidente europeu. No contexto da Revolução Francesa de 1789, a luta das
mulheres foi registrada pelo direito ao alistamento na carreira militar e ao acesso de
armas à defesa da revolução. Segundo a autora, além de lutarem pela consolidação do
poder popular em contraponto ao poder burguês, as mulheres também iniciaram uma
luta histórica em torno do direito de participar ativamente da vida pública, no campo
do trabalho5, da educação e da representação política parlamentar, a reclamar o direito
5Foi no contexto do movimento dos trabalhadores, Liga das Mulheres (1868) e Comuna de Paris (1871)
que as mulheres assumiram o compromisso delas com a luta socialista.
4Nos estudos sobre gênero, sexo e sexualidade, recomenda-se adicionar o primeiro nome quando
mencionado pela primeira vez, especialmente no caso de mulheres e pessoas transexuais, para dar
visibilidade a corpos que não se enquadram na categoria de homens cisheterossexuais e ampliar as
vozes não centradas no gênero masculino. Isso justifica a escolha deste recurso utilizado neste artigo.
3Por exemplo, na perspectiva da dominação masculina” de Bourdieu (1999), a dominação de gênero
está no centro da economia das trocas simbólicas. Em sua análise, esta prática es corporificada,
fazendo vítimas tanto as mulheres quanto os homens.
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ao amor livre e ao divórcio, bem como a fim de questionar o poder do homem como
chefe da família. Ao longo da história ocidental, outro tema do feminismo foi a
emancipação e a luta sufragista. Para Céli Regina Pinto (2010), justamente, o
movimento das sufragetes6foi a primeira grande manifestação do feminismo, como
sujeito das mulheres, ocorrido a partir das últimas décadas do século XIX. Gurgel
(2010) lembra que a reivindicação pelo direito ao sufrágio mobilizou mulheres por sete
décadas em diferentes países e por diversos formatos.
No contexto social dos Estados Unidos da América do Norte (EUA), Angela Davis
(2016) narra a conversa de Ida B. Wells e Anthony, em 1894, quando a primeira criticou
a segunda que legitimava a segregação das mulheres brancas do Sul na Associação
Nacional Americana de Sufrágio Feminino. Essa crítica se justifica porque havia
ausências de direitos às pessoas negras no Sul dos EUA, estavam bem estabelecidos o
sistema legalizado de segregação e a ordem do linchamento. Existiam demandas para
protestos contra o racismo, não podendo ocorrer a segregação entre sufragistas
brancas e negras para pressionar as exigências daquele contexto histórico. De modo
geral, nas várias regiões, as sufragistas lutavam pelo direito ao voto como garantia na
constituição federal7de seus Estados, o que exigia apoio parlamentar. Elas defendiam
que o voto universal permitiria o acesso das mulheres ao parlamento e, por
conseguinte, possibilitaria mudanças no ordenamento jurídico e das instituições
heteronormativas.
Com a centralidade da questão do direito para dispor com autonomia sobre sua
própria vida, nas décadas de 1960 e 1970, os temas acerca do corpo e da sexualidade
entraram na agenda feminista. As mulheres não escravizadas, em diferentes regiões do
mundo, com o apoio de estudantes, jovens, intelectuais, operários, artistas e outros
segmentos sociais, em grandes mobilizações populares, lutavam contra o
autoritarismo, o totalitarismo, o colonialismo e o militarismo sob a vida e dignidade
humana. Conforme Gurgel (2010), essas manifestações impulsionaram a luta do
feminismo pela desnaturalização do papel social da mulher, de modo que surgiram
questionamentos ao poder do Estado, da família e da igreja, considerados pontos de
7No Brasil, o direito ao voto às mulheres foi conquistado em 1932, quando foi promulgado o Novo
Código Eleitoral brasileiro.
6Como ficaram conhecidas as mulheres que promoveram grandes manifestações ao direito de votar, em
Londres.
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sustentação ideológica do modo de vida no patriarcado capitalista em todos os seus
mecanismos de dominação e de opressão na vida social. Logo, na seara do corpo e da
sexualidade, são temas das manifestações das mulheres o direito ao aborto e à
sexualidade livre; o enfrentamento ao paradigma patriarcal de família e à igualdade no
casamento, quando havia completa invisibilidade jurídica da mulher pela perda de
todos os direitos civis após o matrimônio; o direito ao trabalho, à terra, à saúde
materno-infantil; a luta contra a violência e o racismo.
No que se refere às pessoas com deficiência, uma das barreiras que dificultam a
participação político-social das pessoas com deficiência é o capacitismo. Trata-se de
“uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de self e
corpo (o padrão corporal) que se projeta como perfeito, típico da espécie e, portanto,
essencial e plenamente humano” (FIONA CAMPBELL, 2008, p. 44, tradução livre). Na
formação da ideia capacitista, a deficiência é apresentada como uma condição inferior
de ser humano. De modo inerente, ela é negativa e na oportunidade em que é exposta,
deve ser reparada, curada ou mesmo suprimida.
Como categoria analítica, o capacitismo se materializa por meio de “atitudes
preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos a
um ideal de beleza e capacidade funcional” (MELLO, 2016, p. 3266). Sob esta
mentalidade, classificam-se e discriminam-se pessoas com deficiência que se
encontram fora da hegemonia da norma de corpos não deficientes. Com isso, o projeto
capacitista, por um lado, tratam as pessoas com deficiência como incapazes de
realizações sociais. Por outro lado, espoliam as pessoas com deficiência de participação
política, sobremaneira na capacidade eleitoral passiva.
Por sua vez, no tocante à capacidade, Ana Pereira (2007) utiliza-se do conceito
de tradução proposto por Santos (1999) para criar inteligibilidade dentre as várias
perspectivas de abordagem da deficiência como forma de pensar uma sociedade mais
justa, inclusiva e emancipadora. Defendemos que é necessário pensar as situações
vivenciadas pelas pessoas com deficiência de modo multidisciplinar8, examinando os
aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Neste sentido, as questões de
8O conceito de deficiência engloba imensa variedade diversidades corporais e identidades,
incapacidades de inclusão no mercado de trabalho, situações desfavoráveis de emprego, dominação
cultural pelo padrão da “normalidade” que deve ser reconhecida e mencionada em análises
relacionadas com desigualdade, exclusão, dominação e opressão na sociedade contemporânea.
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deficiência apresentaram para a agenda das lutas sociais nas décadas de 1960 e 1970
reivindicações do eixo da exclusão. Os movimentos sociais e estudos sobre deficiência
trouxeram temáticas da identidade e da diferença ao debate político e de justiça social
como aspecto de luta por reconhecimento, redistribuição e representação política de
pessoas com deficiência.
Nancy Fraser (2007) traz a teoria do reconhecimento para o campo da
moralidade, sem, contudo, negar que possa existir casos em que a ética será necessária
como critério de justificação à luta por reconhecimento. Com isso, a teórica rompe com
o paradigma que enfatiza a estrutura psíquica em detrimento das instituições sociais e
da interação social. Notamos que, ao propor uma concepção não identitária de
reconhecimento, Fraser (2007) contraria a reificação do paradigma do reconhecimento.
Com isso, ela apresenta às lutas por reconhecimento o paradigma de status como
concepção alternativa, que visa reciprocidade e igualdade de status; o que possibilita a
combinação de reconhecimento com redistribuição e representação política. A
perspectiva de paridade participativa9constitui o princípio deontológico deste modelo.
Segundo esse princípio, todos os membros adultos da sociedade interagem entre si
como parceiros pelos arranjos sociais da justiça.
Com o presente estudo teórico, que analisa o desenvolvimento social a partir
dos eixos da opressão e da exclusão, é possível visualizarmos algumas confluências
entre gênero e deficiência. A saber, mulheres e pessoas com deficiência (mulheres e
homens) possuem baixa representação política nas tomadas de decisões nas esferas
parlamentares. Constatamos o controle e a estigmatização dos corpos como temas à
discussão comum sobre a opressão e a exclusão vivenciadas pelas pessoas com
deficiência e pelas mulheres.
A contar com esta introdução, o artigo está organizado em cinco seções. Na
segunda seção, “por uma teoria social plural”, criticamos os arranjos que elegem as
desigualdades como sistema fechado em detrimento às diferenças sociais para analisar
grupos marginalizados. Na terceira seção, a questão da deficiência e os problemas de
gênero sob os eixos de desigualdade e de exclusão”, propomos pensar gênero e
deficiência a partir da decolonialidade rumo à pós-colonialidade. Na quarta seção,
9Expressão cunhada por Fraser em 1995, em que “paridade” significa a condição de ser um par, de se
estar em igual condição com os outros, de partir do mesmo lugar com as mesmas oportunidades.
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“reconhecimento, redistribuição e representação na pauta da teoria social
contemporânea”, defendemos que as dinâmicas críticas para a produção de
interseccionalidades devem combinar os eixos de opressão e de exclusão.
Por fim, na última seção, concluímos que o enfoque interseccional sobre as
experiências de grupos marginalizados, como é o caso de mulheres e pessoas com
deficiência, deve atender ao hibridismo da desigualdade e da exclusão. Somente
assim, este enfoque possibilitará análises e políticas de enfrentamento à discriminação
que alcancem a todas as pessoas.
POR UMA TEORIA SOCIAL PLURAL
O fenômeno da desigualdade social passou a ser uma questão social a partir da
modernidade devido à transformação do social pelo mercado de trabalho e pelo
capital. Destarte, as análises clássicas da tradição sociológica objetivavam explicar e/ou
compreender as relações sociais estabelecidas no contexto capitalista. Por isso, a
desigualdade social foi explicada pelo modelo estruturado em que a posição de
mercado e a divisão do trabalho determinavam a segregação social.
Deste modo, a estratificação social foi fruto restrito do fator econômico voltado
ao mercado. De um lado, no modo de produção capitalista, a estrutura social
polarizava-se antagonicamente entre burguesia e proletariado, determinada pela
propriedade ou não dos meios de produção; por outro, em uma abordagem
multidimensional, a estrutura social foi determinada pelas oportunidades de vida
estabelecidas no mercado (MARX, 1992; WEBER, 2004). Marx (1992) não se interessou
pelas individuações10 e Weber (2004), por sua vez, não se interessou pela sociologia do
cotidiano. Ainda que este último tenha priorizado a ão, pela teoria compreensiva,
nas questões sociais, foi o debate estrutural do problema das classes e dos status
sociais em desigualdade que prevaleceu até a década de 1970 do século XX.
Dubet (2006), teórico crítico de fonte marxista e perspectiva weberiana,
procura revelar a sociedade em uma especificidade que ele chamou de segunda
modernidade. Ele fala de uma sociologia da experiência social, em que a ação da
10 Luta por autonomia e liberdade individual para afirmação de uma identidade individual no contexto
social, tendo o outro como referência.
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pessoa não se define mais pelo papel desempenhado no mercado unicamente, mas
pela singularidade subjetiva ou endógena em cada situação de tentativa de
autorrealização em sociedade. Ele apresenta as desigualdades a partir das
manifestações dos conflitos na relação economia/mercado para chamar atenção para
procedimentos e investigação nos aspectos dos movimentos sociais; sem, contudo,
acreditar em um movimento “total”11.
Desta forma, fala-se da sociologia da experiência em que a vida cotidiana é
interpretada pela experiência vivida pelas pessoas. Nessa gramática, são possíveis as
análises das formas de articulação e das criações de estratégias capazes de enfrentar
adversidades em situações limites em uma sociedade em processo de transformação.
Destarte, estudos que propõem debater sobre as desigualdades precisam reconhecer a
pluralidade que abarca a temática, pois as desigualdades não formam mais um sistema
fechado. Os marcadores de desigualdades constituem processo de tensões e de
problemas cada vez mais específicos. Daí a necessidade de aprender a ler por dentro
dos pequenos acontecimentos, por dentro das pequenas histórias” (DUBET, 1987, p.
423).
Em harmonia com a sociologia do cotidiano, com a reconfiguração da questão
social, Soulet (2006) sustenta que a relação entre as pessoas e a sociedade não é mais
instaurada do macro ao microssistema. A subjetividade dos atores sociais desenha as
linhas de força das formas contemporâneas da ão sobre a sociedade. Vale ressaltar
que, como defende esse autor, a subjetividade, na contemporaneidade, possui dupla
representação da nova questão social. A primeira consiste na base da norma de
individuação e a segunda incide no caráter vital de realização societal.
Cada um tenta se constituir como sujeito autônomo e responsável, não
somente para se realizar, mas também para ser plenamente membro da
coletividade, o que equivale a dizer que, quanto mais cada um é
individuado, tanto mais ele é socializado (SOULET, 2006. p. 84).
Sensibilizado a uma dimensão ontológica do ser humano em sociedade, Soulet
(2006) coloca em baila o paradoxo dessa socialização: se por um lado uma
11 Dubet (2006), apesar de ser herdeiro do pensamento de Alain Touraine quanto à sociologia da ão e
dos movimentos sociais, não aceita a lógica de um princípio central na representação de uma ão social
organizada; deixando de lado a ideia de sujeito histórico (WAUTIER, 2003).
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construção de si mesmo como sujeito responsável e autônomo; por outro, um custo
individual e um custo social. A transferência da coletividade ao indivíduo o deixa ante
ele mesmo o que por sua vez gera o cansaço de ser si mesmo”. A este mal-estar
(cansaço, sofrimento e depressão), consequência da inversão da positividade da
autonomia numa empreitada infinita, ele apontou como custo individual da
responsabilidade da fabricação de si mesmo. o custo social acusa-se àquelas pessoas
da coletividade que não conseguiram a liberdade, a autonomia e a responsabilidade; o
que por sua vez, reorienta a questão social por meio da fabricação assistida. Nesse
caso, a coletividade é acionada a contribuir nas políticas sociais que objetivam
minimizar a subjetividade inacabada”.
O pano de fundo dessa reconfiguração tem na integralidade a nova expressão
da questão social. Soulet (2006) denuncia que um fosso entre a integração social
plena e a integração relativa. A lógica da fabricação assistida es para a integração
relativa quando esta implica em uma personalização dos programas com planos
individualizados de reintegração e, de certa forma, estes programas possibilitam a
redução dos indivíduos em situações de vulnerabilidades. As ações de políticas
individualistas como condição da reintegração social não fazem da integração uma
finalidade absoluta, mas, torna-se ajustável. Consoante a isto, Soulet (2006) pontua
três problemáticas:
1) Esta relativização não manifestaria uma mudança profunda de filosofia
das políticas sociais, nomeadamente com o fim do ideal de uma igualdade
de tratamento? 2) Como apreciar então uma integração relativa? A escala
não se tornaria logicamente sempre individual (melhoria singular contra
tensão para alcançar um absoluto coletivo) numa altura em que o problema
original é um problema geral de empobrecimento e de desaparecimento do
social? 3) A integração relativa, parcial, portanto, mostrando que a realidade
é híbrida, aponta para uma concepção das políticas sociais que buscam
apoiar os indivíduos para que eles possam cooperar e partilhar. A
participação torna-se a medida da cidadania e a integração relativa se
politicamente legitimada por um objetivo de controle dos danos colaterais
(SOULET, 2006, p. 86).
Em nota, o autor indaga que ainda faltou explicitar, na terceira questão, a partir
de quando e até quando se considera que uma integração relativa é um sucesso. E por
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quê? Por seu turno, Castel (2006) acusa que o processo de integração relativa se
pela fraqueza das discussões estruturais a partir de 1970.
Segundo o autor, os debates da exclusão social camuflam a questão da
estratificação social; ao enfatizar a exclusão social, os pesquisadores e os agentes
políticos contribuem para amenizar o problema da desigualdade social. Sabe-se que o
Estado não é neutro na gestão da desigualdade estrutural, Castel (2006) critica o viés
reformista das políticas compensatórias do processo de integração relativa. Para ele, o
conflito perdeu a centralidade e o discurso da integração lógica de inserção dos
excluídos no sistema de produção e de consumo, e nunca a lógica de socialização dos
meios de produção é maior que a discussão da desigualdade. O autor é contundente
ao afirmar que o problema sociológico do conceito de exclusão consiste na substituição
da problemática da classe social. Todavia, Soulet (2006) contrapõe que análises
sociológicas acerca da noção de exclusão possibilitaram discussões dos mecanismos de
inclusão e regulação, a saber:
1) Em que princípio(s) basear a solidariedade no caso daqueles que não são
considerados nem como contribuintes para a riqueza coletiva, nem como
pertencentes ao mesmo mundo? 2) Como se forjam competências para
integrar indivíduos qualificados pela sua impotência, para ocuparem um
lugar numa dada sociedade? 3) Em que bases se assentam as formas de
regulação nas quais parece não estar incluída uma parte dos membros da
coletividade? (SOULET, 2006, p. 79).
Para Soulet (2006), apesar de muitas vezes as críticas radicais à noção de
exclusão serem legítimas, é necessário ir para além da exclusão, isto é, a sua necessária
superação. O que se constatou com esta noção é que ela permitiu pensar uma
ontologia do ser em sociedade, “uma vez que o excluído, no imaginário da referência à
exclusão, não é nada e, ao mesmo tempo, ele não tem nada” (SOULET, 2006, p. 80).
Estivill (2006) afirma que o debate conceitual sobre a exclusão social, tanto na
Europa quanto na América Latina, incide na qualificação da face não reconhecida das
sociedades, de modo que a pobreza e a exclusão social estão relacionadas com as
desigualdades estruturais. Desta forma, analisar e explicar a exclusão social, no sentido
stricto sensu, pelo contrário do que denunciou Castel (2006), é útil para todos que
lutam por uma sociedade menos excludente. A exclusão social, nesse sentido, é
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entendida pela acumulação de fenômenos convergentes, situados no debate político,
social, econômico e cultural. Estes fenômenos se traduzem em desigualdades social,
econômica, política e cultural que diminuem e afastam, por diferentes modos de
produção e de expressão da pobreza e da exclusão, a condição de pessoas,
comunidades e territórios em relação aos centros de poder, aos recursos e aos valores
dominantes.
Com a elasticidade do conceito de exclusão social, a face não reconhecida da
sociedade, devido a sua potencialidade de denunciar vários tipos de privações (política,
social, econômica e cultural), ganha espaço na agenda de lutas sociais
contemporâneas. Convém ressaltar que a questão da classe social não leva em conta a
questão da exclusão e, apesar de algumas violações se encaixarem mais no formato da
exclusão, a temática da exclusão social possibilita a discussão de classe social,
conforme arrazoamento de Estivill (2006). Todavia, ressalta-se que os dois tipos de
injustiças sociais (desigualdade social e exclusão social) não são sinônimos.
Se a discussão das formas de não reconhecimento social das pessoas com
deficiência e de mulheres é legítima nas ciências sociais como forma de dar visibilidade
à face não reconhecida da sociedade, avança-se à teoria social contemporânea com os
debates de reconhecimento, redistribuição e representação política.
A QUESTÃO DA DEFICIÊNCIA E OS PROBLEMAS DE GÊNERO NOS EIXOS DE
DESIGUALDADE E DE EXCLUSÃO
Vimos que o estudo das desigualdades ocupa lugar privilegiado no campo
sociológico para conceituar e compreender a natureza das injustiças sociais. Sobre a
teoria da segregação social, a influência geral de Marx (1992) e Weber (2004) incidem
no predomínio usual dos termos de classe social e status social como xicos da
desigualdade acometidos pela injustiça econômica. À luz da proposta teórica da
sociologia das ausências e da sociologia das emergências de Santos (2002), as
categorias de gênero e de raça tornaram-se presentes na teoria sociológica e, em geral,
sob duas formas de hierarquização híbridas12. Pereira (2007) defende que na
12 Santos (1999) relata que o racismo e o sexismo, na modernidade, representam os eixos da
desigualdade (sistema hierárquico de integração social) e da exclusão (sistema hierárquico da exclusão
social) como formas híbridas de análise dos princípios de emancipação e dos princípios da regulação no
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modernidade o sofrimento das pessoas com deficiência também emana de uma forma
híbrida de hierarquização, abarcando os eixos da desigualdade e o da exclusão. Ela
arrazoa que é de extrema importância trazer a discussão do capacitismo13 para o
âmago da teoria sociológica para denunciar experiências cotidianas de desigualdade e
lutas sociais vivenciadas pelas pessoas com deficiência e/ou doença crônica.
Por isso, a autora, em “O corpo (-) sentido: reflexões sobre deficiência’14 e
doença crônica”, problematiza e torna mais presente a questão da deficiência como
fulcral para pensar uma sociedade mais emancipada e livre de formas de opressão. À
luz dos estudos sobre a deficiência e da sociologia sociologia da deficiência,
sociologia da medicina, sociologia do corpo e sociologia da saúde e da doença –, bem
como das teorias pós-colonialistas, esta autora explicita os fundamentos teóricos que
permitem reflexões inclusivas e emancipatórias à questão da deficiência.
Dessa forma, ela busca a convergência entre Bhabha (1998) e Said (2011). Estes
teóricos pós-colonialistas, mesmo sem questionarem a condição das pessoas com
deficiência, aludem o pós-colonial como o sítio onde as minorias, os excluídos e os
apagados ganham voz e questionam a história” (PEREIRA, 2007, p. 6). Com isso, Pereira
(2007) harmoniza com Anita Ghai (2002) que pensa a questão da deficiência a partir do
Sul global. Segundo a autora, na literatura dos estudos pós-colonialistas a questão da
deficiência é nula.
Para Bhabha (1998), por natureza, o pós-colonial questionam a modernidade
do Norte ocidental que tentam normalizar as forças desiguais e irregulares da
representação cultural. Na lista dele constam mulheres, negros, homossexuais e
imigrantes. Said (2011) defende que um dos principais papéis da teoria pós-colonial
está em desocultar o que foi silenciado e dar voz àquelas pessoas que nas relações de
poder impositivas e desiguais foram apagadas. Na lista de Said (2011) aparecem
feministas, escritores africano-americanos, intelectuais, artistas, entre outros.
O pós-colonialismo serve também como um veículo à emancipação,
decorrente de sua capacidade de questionar as pretensões universalistas de uma
14 Ao longo da discussão, Pereira utiliza a expressão “deficiência” entre aspas, por entender que este
conceito inclui várias vertentes; sendo, portanto, mutável e não naturalizável.
13 A autora sugere esta tradução ao termo inglês ableism para designar a tirania sofrida pelas pessoas
com deficiência, seja pelo sistema capitalista opressor, seja pelas pessoas que se julgam capazes”.
desenvolvimento do capitalismo. Neste sentido, a desigualdade é um fenômeno socioeconômico e a
exclusão é sobretudo um fenômeno cultural e social.
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identidade com deficiência e uma cultura universal de deficiência” (GHAI, 2002, p. 96,
citado por PEREIRA, 2007, p. 6, tradução livre). Pereira (2007) inclui as pessoas com
deficiência no sítio do pós-colonialismo para desconstruir as teorias totalizantes que o
Norte ocidental produziu sobre a questão da deficiência. A autora ressalta que este
assunto tem sido abordado sob diferentes perspectivas, tanto pelas sociologias
apontadas acima, quanto pelos estudos sobre a deficiência. O esforço dela consiste em
demonstrar que o conceito de tradução proposto por Santos (1999) deve ser utilizado
para criar uma inteligibilidade dentre as várias perspectivas de abordagem da
deficiência. E assim, possibilitar formas de pensar uma sociedade mais inclusiva e
emancipadora. Frisa-se, de acordo com Pereira, que Santos (2002) deixa no exterior de
sua análise a questão da deficiência. Ele enfoca o racismo e o gênero como as duas
formas de hierarquização dos eixos de desigualdade e exclusão. Quanto ao conceito de
tradução, o teórico apresenta como alternativa a teoria geral do trabalho de tradução.
A tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca
entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis,
reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das emergências.
Trata-se de um procedimento que não atribui a nenhum conjunto de
experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva nem o estatuto de
parte homogênea. As experiências do mundo são vistas em momentos
diferentes do trabalho de tradução como totalidades ou partes e como
realidades que se não esgotam nessas totalidades ou partes. Por exemplo,
ver o subalterno tanto dentro como fora da relação de subalternidade
(SANTOS, 2002, p. 262).
Diversos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 do século XX, dentre
eles os movimentos antirracistas e feministas, sem perder a relevância que a
desigualdade econômica tem dentro da estrutura de injustiça, apresentaram para a
agenda das lutas sociais contemporâneas reivindicações de base cultural. Eles
trouxeram temáticas da identidade e da diferença ao debate político e de justiça social,
a fim de considerar a natureza sociocultural como aspecto de luta por reconhecimento
e redistribuição.
De acordo com o argumento de Pereira (2007), por entender que ele se justifica
por contribuir à maior emancipação das pessoas com deficiência. Para a autora, o
conceito de deficiência engloba uma imensa variedade que deve ser reconhecida e
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mencionada em análises relacionadas com desigualdade, exclusão, dominação e
opressão na sociedade. Trata-se de diversidades corporais e identidades, incapacidades
de inclusão no mercado de trabalho, situações desfavoráveis de emprego, dominação
cultural pelo padrão da “normalidade”. A categoria, portanto, deve ser relacionada com
as teorias emancipatórias que preconizam uma sociedade mais emancipada e livre de
formas de opressão e de exclusão.
Assim, engrossamos o discurso de que é necessário pensar as situações
vivenciadas pelas pessoas com deficiência e pelas mulheres de modo multidisciplinar
para examinar os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Para além dos
debates de desigualdades e de exclusão, que a discussão da integralidade destas
pessoas perpasse pelas ideias do reconhecimento recíproco, da redistribuição e da
representação política.
RECONHECIMENTO, REDISTRIBUIÇÃO E REPRESENTAÇÃO NA PAUTA DA TEORIA
SOCIAL CONTEMPORÂNEA
A categoria reconhecimento social apresenta-se como uma possibilidade de
repensar a desigualdade social. O debate é novo, mas o conceito não é. Ele é utilizado
na modernidade, a partir da literatura produzida por Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(1770-1831), nos primeiros escritos em Jena (1991). Na contemporaneidade, Charles
Taylor (1994), Axel Honneth (2003 [1995]) e Nancy Fraser (1995) destacam-se na
discussão sobre o reconhecimento.
Deve-se aos dois primeiros a retomada em Hegel (1991) para melhor
entendimento do reconhecimento intersubjetivo na autorrealização dos sujeitos na
construção da justiça social. Honneth (2003), ao atualizar o conceito de
reconhecimento por meio da psicologia social de George Hebert Mead (1986-1931),
avança na sistematização de uma teoria crítica que propõe para a categoria
reconhecimento. O esforço de Honneth (2003) consiste em buscar a ideia original de
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Hegel15 no modelo conceitual de uma “luta por reconhecimento” em que o conflito
social é o fundamento da teoria crítica.
Desta forma, o alicerce da interação social resulta de uma luta dos sujeitos e
sua gramática é a luta por reconhecimento recíproco e intersubjetivo. O teórico adota
o modelo de Hegel (1991), para fazer das pressuposições normativas da relação de
reconhecimento, como o ponto de referência de uma explicação dos processos de
transformação histórica e empírica da sociedade. Para isso, ele explorou a teoria
especulativa da intersubjetividade e do reconhecimento de Hegel16 para reconstruí-la à
luz da psicologia social, empiricamente sustentada por Mead.
As propostas da tarefa empreitada por Honneth (2003), podem ser assim
sintetizadas: 1) investigação de que a sequência ordenada das etapas de
reconhecimento pode resistir a considerações empíricas; 2) atribuição de experiências
de desrespeito social às respectivas formas de reconhecimentos recíprocos; e, 3)
evidenciações históricas e sociológicas à ideia de que essas formas de reconhecimentos
denegados foram, de fato, fonte motivacional de lutas sociais. O trabalho do teórico, ao
tratar da estrutura das relações sociais de reconhecimento, detecta uma gramática
moral dos conflitos sociais por meio da teoria social crítica. Busca no jovem Hegel
(1991) a ideia de confiança nos conflitos sociais, no sentido de sustentar que, com o
conflito a sociedade evolui, tendo êxito na sociedade moderna com a luta por
reconhecimento.
Este teórico contribui sobremaneira com a sistematização da ideia de que as
experiências de reconhecimento denegado, sofridas pelos sujeitos, os inutilizam como
parceiros de interação. Isso os motivam a lutarem contra os desrespeitos morais. Por
seu turno, a grande contribuição de Fraser (1995) consiste em possibilitar a
operacionalidade da luta por reconhecimento por meio da redistribuição e da
representação. Ela admite que a teoria produzida por Honneth (2003) possui ideias
16 O jovem Hegel desenvolveu três teses que foram objeto de interesse de Honneth (2003). A primeira
diz que a formação do eu” prático es ligada a pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois
sujeitos (o eu” autônomo é resultado do agente com o indivíduo). A segunda tese fala da existência de
três formas de reconhecimento (o amor, o direito e a eticidade). A formação da identidade via a
comunitarização num conflito intersubjetivo (luta moral) incide na terceira tese.
15 Por sua vez, o esforço de Hegel, em sua atividade de escritor em Jena, consistiu em retomar o modelo
conceitual de luta social entre os homens “luta por autoconservação” utilizado por Nicolau Maquiavel
(1469-1527), concorrência permanente de interesses”; e, Thomas Hobbes (1588-1679), guerra de
todos contra todos” –, para guinar a fundamentação da filosofia social moderna a partir da dinamização
realizada na doutrina de reconhecimento proposta por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814).
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elucidativas a respeito dos efeitos psicológicos dos movimentos sociais do período
pós-socialista.
O paradigma do reconhecimento apresenta claro avanço à comprovação
política e a um entendimento reconstruído da justiça social; todavia, Fraser (1995)
argumenta que o paradigma do reconhecimento gera novas lutas políticas. No centro
da acuidade da globalização, o debate de justiça social transfere o paradigma do
reconhecimento17, como luta pela distribuição de bens e serviços, à discussão sobre
representação, identidade e diferença.
Com o intuito de investigarmos em que medida os propósitos de uma teoria do
reconhecimento podem auxiliar medidas que justifiquem e avaliem políticas de
reconhecimento recíproco, redistribuição e representação destinadas às pessoas com
deficiência e às mulheres, em suas lutas intersubjetivas e de desigualdades materiais,
priorizamos as análises produzidas por Fraser (1995, 2001, 2002 e 2007). Esta teórica
criticamente propõe revisões da concepção de justiça social e do paradigma do
reconhecimento, de modo a oferecer um novo paradigma cujas abordagens
investigativas unem as problemáticas da distribuição e da subordinação cultural.
Ao argumentar o paradigma do reconhecimento, Fraser (1995) traz à plenária
dois problemas, os quais foram denominados de “problema da substituição” e de
“problema da reificação”. A autêntica guinada que Fraser (2002) oferece à teoria do
reconhecimento consiste na virada da discussão da ética para a esfera da moral. Para
ela, o seu paradigma de status admite que casos em que, depois de esgotada a
cadeia de raciocínio moral, demanda avaliação ética. Destarte, o esforço desta teórica
consiste na tentativa de solucionar as duas problemáticas iniciais levantadas por ela,
uma concepção ampla de justiça capaz de abraçar toda a extensão da injustiça social
no contexto da globalização.
Para contrariar o problema da substituição, Fraser (2002) oferece uma
concepção bidimensional da justiça social, a saber: a justiça é uma questão de
17 Apesar de teorizar o reconhecimento como categoria ampliada de forma abstrata com poucos critérios
à validação empírica, Honneth (2003) permite problematizar diversos tipos de reivindicações, dentre elas
a redistribuição de recursos materiais. Isso fica evidente quando o teórico argumenta sobre as alusões
normativas de igualdade perante as relações jurídicas. Ele defende que um tratamento equânime a
todos os membros de uma comunidade política para que haja igualdade de oportunidades, de modo
que todos os sujeitos tenham chances de serem socialmente estimados por suas realizações pessoais.
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redistribuição justa, por um lado, e, por outro, a justiça é uma questão de
reconhecimento recíproco (FRASER, 2002, p. 11). Frisa-se que esta lente bifocal não
significa priorizar uma em detrimento da outra. Conforme se percebe na história dos
períodos ante e pós-socialistas, nenhuma destas lentes, por si basta. Assim, pela
ótica da redistribuição, a injustiça é a distribuição (desigualdade de rendas, a
exploração, a privação e a marginalização/exclusão dos mercados de trabalho).
Neste caso, dirá Fraser (2002) que a redistribuição justa requer a transferência
de rendimentos, a reorganização da divisão do trabalho, a transformação da estrutura
da posse da propriedade e a democratização dos processos de tomadas de decisão
sobre investimentos. Sob a ótica do reconhecimento recíproco, a injustiça é o falso
reconhecimento (a dominação cultural, o não reconhecimento e o desrespeito). Por
seu turno, para que o reconhecimento aconteça, tornam-se necessárias as reformas
que visam revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos culturais de grupos
discriminados. Torna-se imprescindível, por um lado, elaborar medidas de
reconhecimento e valorização da diversidade e, por outro, transformar a ordem
simbólica e de desconstruir os termos que estão subjacentes às diferenciações de
status existentes. Somente assim mudará a identidade social de todos os pares.
Apesar de a leitura bifocal não ser uma tarefa de fácil realização18, Fraser (2007)
contraria suposições usuais19, argumentando, corajosamente, ser possível tratar de
lutas por reconhecimento como reivindicações por justiça dentro da nova concepção
que ela propõe. Ao adotar a noção ampliada de justiça social, ela defende que não
nenhuma necessidade de escolha entre a política da redistribuição e a política do
reconhecimento, haja vista que uma não inviabiliza a outra. Após revisitar o conceito
de justiça, Fraser (2007) traz a teoria do reconhecimento ao campo da moralidade;
sem, contudo, negar que possa existir casos em que a ética será necessária como
critério de justificação da luta por reconhecimento.
19 Retificações filosóficas, de acordo com Fraser, concordam que as lutas por redistribuição pertencem à
moralidade, ao passo que a ética pertence às lutas por reconhecimento recíproco; de modo que, ambos
nunca se encontrarão (FRASER, 2007, p. 105). Daí, a verdadeira contribuição desta teórica na discussão
contemporânea sobre reconhecimento consiste em dar guinada das lutas por reconhecimento ao campo
da moral e possibilitar que o paradigma do reconhecimento não exclua o paradigma da redistribuição e
vice-versa.
18 Para tomar conhecimentos sobre os dilemas ocasionados na leitura bifocal, ver: FRASER, Nancy. “From
redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist age”. In: S. Seidman; J. Alexander.
(orgs.). The new social theory reader. Londres: Routledge, 2001, p. 285-293.
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Com isso, a teórica rompe com o paradigma de reconhecimento que enfatiza
estrutura psíquica em detrimento das instituições sociais e da interação social.
Notamos que, ao propor uma concepção não identitária de reconhecimento, Fraser
(1995, 2002 e 2007) contraria a reificação do paradigma do reconhecimento. Assim, ela
apresenta às lutas por reconhecimento o paradigma de status como concepção
alternativa, que visa reconhecimento recíproco e igualdade de status; a fim de
possibilitar a combinação de reconhecimento com redistribuição. A perspectiva de
paridade participativa20 constitui o princípio deontológico deste modelo. Segundo esse
princípio, todos os membros adultos da sociedade interagem entre si, pelos arranjos
sociais da justiça, como parceiros.
Para a teórica construir política de redistribuição e política de reconhecimento
como duas perspectivas da justiça reciprocamente irredutíveis, debelam-nas a uma
norma deontológica de paridade participativa sob duas condições. A primeira,
denominada de condição objetiva da paridade de participação, significa assegurar a
independência e voz dos pares para excluir pedagogias de desigualdade material e
dependência econômica que impedem a paridade de participação. A condição
subjetiva da paridade de participação é a segunda necessidade a ser satisfeita. Ela
requer que os padrões institucionalizados de valoração cultural expressem igual
respeito a todos os pares, de modo a garantir igualdade de oportunidades ao alcance
da estima social. Portanto, é imperativo excluir, por sua vez, normas que
sistematicamente depreciam algumas categorias de pessoas, bem como as
características associadas a elas.
Destarte, o princípio da paridade participativa deverá ser utilizado pelas
políticas de redistribuição e de reconhecimento, tanto para justificar as lutas das
pessoas injustiçadas, quanto para avaliar as propostas que solucionarão estas
injustiças. Percebemos que o paradigma de status, sem recurso à avaliação ética,
oferece possibilidades concretas para justificar demandas pelo reconhecimento de
diferenças culturais, como é o caso de mulheres e pessoas com deficiência. Vale dizer
que, consoante Fraser (2002), a paridade participativa é necessária, mas não a única. O
20 Expressão cunhada por Fraser em 1995, em que “paridade” significa a condição de ser um par, de se
estar em igual condição com os outros, de partir do mesmo lugar em igualdade de oportunidades.
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valor ético é preciso quando o valor relativo é tão diretamente antitético. Ela afirma
que a avaliação ética é problemática, pois a injustiça não pode ser evitada.
Tanto Fraser (1995) quanto Honneth (2003) buscam determinar quais conflitos
serão justificáveis. Ela pautou pelo princípio da paridade participativa e ele pelo
princípio da autorrealização pessoal. Isso é explicado, segundo Mendonça (2007),
devido à concepção de justiça que cada um dos teóricos possui. Em uma dimensão
moral e intersubjetiva da política, a teoria do reconhecimento, na contemporaneidade,
tem a pretensão de diagnosticar o labéu de desrespeito, como salientado por Honneth
(2003), e de injustiça como denunciado por Fraser (2007). Ambos propõem uma
gramática moral para superação destas desgraças. Os dois possibilitam, com a
centralidade dos sujeitos em suas experiências cotidianas de lutas, uma ampliação
compreensiva da política da redistribuição, do reconhecimento e da representação. O
primeiro alvitra uma investida às investigações empíricas, com o intuito de averiguar os
processos de integração que geram desigualdades; e, o glamour, ímpeto pragmático de
Fraser (1995) es em sua operacionalidade explícita de algumas formas de
desrespeito.
Neste ponto, lembramos que a teorização da justiça social foi, em 1971, objeto
de estudo de John Rawls. A justiça social está na “forma pela qual as instituições
sociais mais importantes repartem os direitos e deveres fundamentais e determinam a
distribuição das vantagens obtidas através da cooperação social” (RAWLS, 1997, p. 29).
Para a distribuição dos bens sociais primeiros, Rawls teoriza três princípios, a saber: 1)
princípio de igualdade das liberdades de base (cada pessoa deve ter direito legal ao
conjunto mais amplo de liberdades de base iguais para todos); 2) princípio da justa
igualdade de chances (as desigualdades econômicas e sociais devem estar em
condições tais que possam ser ligadas a posições e funções abertas para todos; 3)
princípio da diferença (as desigualdades econômicas e sociais devem estar em
condições tais que sejam para benefícios dos membros mais desfavorecidos da
sociedade). Destarte, as teorias do reconhecimento e da redistribuição surgiram após a
teoria da justiça de Rawls, complementando-a.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentamos análises conceituais que giram em torno da desigualdade social.
Esta temática representa um dos fenômenos sociológicos mais antigos e universais
abordados nas ciências sociais. A discussão clássica volta-se à exploração em uma
relação de produção pela transformação capitalista de mundo. Toda discussão que não
estava nessa agenda, como é o caso das pessoas com deficiência e das mulheres, por
exemplo, fora ativamente ausentada dos debates sociológicos.
Com isso, “há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é
desqualificada e tomada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível”
(SANTOS, 2002, p. 246). Esta produção de não-existência pode ser compreendida como
epistemologia colonizadora, apesar de sua perspectiva transformadora de sociedade.
Os estudos que propõem analisar as desigualdades precisam reconhecer a pluralidade
que abarca a temática, pois as desigualdades não formam um sistema fechado. Os
marcadores de desigualdades constituem processo de tensões e de problemas cada
vez mais específicos.
Nas décadas de 1960 e 1970 do século XX, dentre eles os movimentos
antirracistas e feministas, sem perder a relevância que a desigualdade econômica tem
dentro da estrutura de injustiça, apresentaram para a agenda das lutas sociais
contemporâneas reivindicações de base cultural. Eles trouxeram temáticas da
identidade e da diferença ao debate político e de justiça social, a fim de considerar a
natureza sociocultural como aspecto de luta por reconhecimento, redistribuição e
representação política.
Na modernidade, o racismo e o sexismo representam-se como eixos da
desigualdade (sistema hierárquico de integração social) e da exclusão (sistema
hierárquico da exclusão social). Fala-se, portanto, de formas híbridas para analisar os
princípios de emancipação e os princípios da regulação no desenvolvimento do
capitalismo. Neste sentido, a desigualdade é um fenômeno socioeconômico e a
exclusão é sobretudo um fenômeno cultural e social. Esta inteligibilidade também cabe
dentre as várias perspectivas de abordagem da deficiência para possibilitar formas de
pensar uma sociedade mais inclusiva e emancipadora.
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Para Pereira (2007), o conceito de deficiência engloba imensa variedade que
deve ser reconhecida e mencionada em análises relacionadas com desigualdade,
exclusão, dominação e opressão na sociedade. Trata-se de diversidades corporais e
identidades, incapacidades de inclusão no mercado de trabalho, situações
desfavoráveis de emprego, dominação cultural pelo padrão da “normalidade”. Por isso,
entendemos que é necessário pensar as situações vivenciadas pelas pessoas com
deficiência e pelas mulheres de modo multidisciplinar para examinar os aspectos
sociais, políticos, econômicos e culturais.
Para além dos debates de desigualdades e de exclusão, que a discussão da
integralidade destas pessoas perpasse pelas ideias do reconhecimento recíproco, da
redistribuição e da representação política. Assim, neste artigo, tivemos o intuito de
investigarmos em que medida os propósitos de uma teoria do reconhecimento podem
auxiliar medidas que justifiquem e avaliem políticas de reconhecimento recíproco,
redistribuição e representação política de pessoas com deficiência e de mulheres.
Compreendemos que o princípio da paridade participativa deverá ser utilizado pelas
políticas de redistribuição e de reconhecimento, tanto para justificar as lutas das
pessoas injustiçadas quanto para avaliar as propostas que solucionarão estas injustiças.
Percebemos que o paradigma de status, sem recurso à avaliação ética, oferece
possibilidades concretas para justificar demandas pelo reconhecimento de diferenças
culturais, como é o caso de mulheres e de pessoas com deficiência. Essa guinada
teórica, para além do fator econômico, auxiliam à descolonização epistemológica. Os
estudos com enfoque aos problemas de gênero e às causas de deficiência possibilitam
uma abordagem de conhecimentos a partir do Sul global, pois concluímos que o
enfoque interseccional sobre as experiências de grupos marginalizados, como é o caso
de mulheres e pessoas com deficiência, deve atender ao hibridismo da desigualdade e
da exclusão para possibilitar análises e políticas de enfrentamento à discriminação que
alcancem a todas as pessoas.
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