-https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n2p94-113
Vol. 29, n. 2, jul/dez, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
“QUEM VAI QUERER SABER DA MINHA HISTÓRIA?”: REFLETINDO SOBRE
DECOLONIALIDADE COM ADOLESCENTES NA SOCIOEDUCAÇÃO EM
INTERNAÇÃO A LUZ DE ESTUDOS RACIAIS1
Ana Clara de Oliveira Peixoto2
Recebido em: 28/10/2023
Aprovado em: 20/12/2023
Resumo: A intencionalidade desta escrita é a de contribuir para o crescimento da discussão
sobre decolonialidade com adolescentes. A partir de autores que discutem a temática,
deseja-se aqui exemplificar através de plano de aula realizado com adolescentes internos do
Departamento de Gestão e Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE), como
é emergente pensar um olhar decolonial com adolescentes. Este trabalho pretende refletir não
apenas a partir de autores que são considerados no campo, como Palermo (2005), mas
também trazer tensionamentos de Segato (2021) que pensa a colonialidade como uma das
ferramentas principais para o encarceramento da população negra. Por fim, pretende-se
mostrar os efeitos que a abordagem sobre a temática teve nas concepções dos adolescentes
que cumprem medidas socioeducativas de internação, sobre raça, classe e gênero a partir do
conto “Rolézim” do escritor Geovani Martins (2018). Através da compreensão teórica destes e
de outros autores citados ao longo do artigo, somando a experiência prática em sala de aula,
será possível perceber que entender e aplicar decolonialidade na atuação enquanto
educadores e intelectuais, que pensam nas desigualdades presentes no tecido social, fará com
que seja possível construir ensinamentos sobre interseccionalidade e letramento racial com a
juventude marginalizada no Brasil.
Palavras-chave: Socioeducação. Decolonialidade. Adolescência. Interseccionalidade.
Letramento Racial.
“WHO WILL WANT TO KNOW MY STORY?”: REFLECTING ON DECOLONIALITY WITH
ADOLESCENTS IN SOCIOEDUCATION IN THE LIGHT OF RACIAL STUDIES
Abstract: The intention of this writing is to promote the growth of the discussion about
decoloniality with teenagers. Based on authors who discuss the topic, we wish to exemplify
here, through a lesson plan carried out with adolescent inmates of the Department of
Management and Socio-Educational Actions of the State of Rio de Janeiro (DEGASE), how it is
emerging to think about a decolonial perspective with adolescents. This work intends to reflect
not only on authors who are considered in the field, such as Palermo (1996), but also to bring
2Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestra em Educação (Linha
de pesquisa Estado, Trabalho-Educação e Movimentos Sociais) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2023). Graduada em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (2020). Email:
anaclaraoliveira.peixoto@gmail.com. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-6971-7307.
1O título em aspas faz menção a uma das falas dos educandos extraída dos diários de campo de
pesquisas e aulas realizadas pela autora do artigo entre os anos de 2018 até os dias atuais.
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tensions from Segato (2021) who thinks of coloniality as one of the main tools for the
incarceration of the black population. Finally, we intend to show the effects that the approach
to the theme had on the conceptions of adolescents who are socio-educational in deprivation
of freedom measures, about race, class and gender based on the short story “Rolézim” by
writer Geovani Martins (2018). Through the theoretical understanding of these and other
authors cited throughout the article, adding practical experience in the classroom, it will be
possible to realize that understanding and applying decoloniality in acting as educators and
intellectuals, who think about the inequalities present in this society, will make that it is
possible to build teachings about intersectionality and racial literacy with marginalized youth in
Brazil.
Keywords: Socioeducation. Decoloniality. Adolescence. Intersection. Racial Literacy.
“¿QUIÉN QUERRÁ SABER MI HISTORIA?”: REFLEXIÓN SOBRE LA DECOLONIALIDAD CON
ADOLESCENTES EN LA SOCIOEDUCACIÓN A LA LUZ DE LOS ESTUDIOS RACIALES
Resumen: La intención de este escrito es promover el crecimiento de la discusión sobre
decolonialidad con los adolescentes. A partir de autores que discuten el tema, se pretende
ejemplificar, a través de lección realizada con adolescentes internos del Departamento de
Gestión y Acciones Socioeducativas del Estado de Río de Janeiro (DEGASE), cómo es
surgiendo pensar en una perspectiva descolonial con los adolescentes. Este trabajo pretende
reflexionar no sólo sobre autores considerados en el campo, como Palermo (1996), sino
también traer tensiones desde Segato (2021) que piensa en la colonialidad como una de las
principales herramientas para el encarcelamiento de la población negra. Finalmente,
pretendemos mostrar los efectos que tuvo el abordaje del tema en las concepciones de los
adolescentes que pasan por medidas de internación socioeducativa, sobre raza, clase y género
a partir del cuento “Rolézim” del escritor Geovani Martins (2018). A través de la comprensión
teórica de estos y otros autores citados a lo largo del artículo, sumando la experiencia práctica
en aula, será posible dar cuenta de que comprender y aplicar la decolonialidad en el actuar
como educadores e intelectuales, que reflexionan sobre las desigualdades presentes en el
tejido social, hará que sea posible construir enseñanzas sobre interseccionalidad y
alfabetización racial con jóvenes marginados en Brasil.
Palabras-clave: Socioeducación. Descolonialidad. Adolescencia. Interseccionalidad.
Alfabetización racial.
ESTUDOS DECOLONIAIS: UM DIÁLOGO QUE PRECISA SER ACESSÍVEL
Tratar decolonialidade como diálogo é entender as premissas sobre as quais o
termo foi cunhado. Não ignorando a luta epistêmica que se travou e se trava a os
dias de hoje, inclusive nos espaços mais academicistas. A escolha desta escrita em
pensar o tema enquanto diálogo diz respeito a compreensão e trabalho contínuo que é
desenraizar o pensamento colonial no cotidiano dos adolescentes em privação de
liberdade.
De maneira geral, não é apenas esse grupo tratado nesta escrita que terá
necessidade de entender e aprender referências outras. Enquanto sociedade, inserida
no contexto da América-Latina, é possível perceber que o Brasil ainda precisa traçar um
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longo caminho no que tange assuntos como o pensamento decolonial, as interseções e
a consciência de nação que foi forjada a partir de expropriações do colonizador. É
debruçada no pensamento da antropóloga argentina Zulma Palermo que essa escrita
se baseia, quando diz que:
Pois se trata de um lugar político ao invés de cultural de produção de
significação que querem alternativas ao discurso colonizador como
empreendimentos antagônicos para a formação de um conhecimento outro
o que implica por isso subverter e substituir conhecer não para reproduzir
mas sim para transformar (PALERMO, 2005, p.23).
Ou seja, defender a decolonialidade como ação política é entender que o termo
não é apenas uma tendência. A expressão não deve ser apenas usada, como também
colocada em prática nas práticas educativas. Engana-se também quem acredita que
para ter atuação decolonial, o professor/educador precisa esboçar toda a teoria
decolonial para seus alunos/educandos. Evidentemente, se fará necessária base
teórica. No entanto, dificultar a compreensão do campo, unicamente para restringir
mais o debate a um grupo seleto, é conhecer para fazer reprodução de uma educação
excludente e não tentar transformá-la.
Pensar a construção de um diálogo que acessibilize é entender onde estamos
inseridos, até onde o discurso acadêmico chega, quem as publicações em periódicos
e o que fazer a partir de todo conhecimento obtido. Acessibilizar não é apenas tornar
público, mas é também entender que será necessário transformar esse conhecimento
em um discurso que chegue a população mais afetada pelas desigualdades sociais. bell
hooks (1994. p.22) em Ensinando a transgredir diz que: “Para lecionar em comunidades
diversas, precisamos mudar não nossos paradigmas, mas também o modo como
pensamos, escrevemos e falamos”. É de caráter emergencial que todo educador se
apoie nesse pensamento.
Neste artigo em questão, será realizada a reflexão desses pontos, a partir do
plano de aula “Decolonializando autores de livros”. Essa aula foi realizada no
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) do Estado do Rio de Janeiro,
na unidade de acautelamento3Centro de Socioeducação Gelson de Carvalho Amaral
3A unidade de acautelamento é a “porta de entrada” da socioeducação em internação. É onde acontece
a triagem dos adolescentes. Eles ficam acautelados até ser decidido se poderão responder o ato
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(CENSE-GCA). A partir deste encontro, será possível traçar paralelos e entender o que
esse texto defende sobre a importância de colocar a teoria em uma prática
acessibilitadora.
Antes de apresentar o plano de aula em questão, será apresentado alguns
dados do que confere a questão racial dentro do DEGASE. Também sinalizo ao leitor
deste trabalho que o plano de aula estará em primeira pessoa, que faz parte de um
episódio extraído de diários de campo dos cinco anos de aula e de educação popular
dentro do departamento.
RAÇA NA SOCIOEDUCAÇÃO EM INTERNAÇÃO
Segundo o relatório Trajetórias de vida de jovens em situação de privação de
liberdade no Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro” publicado em 2019
pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas em parceria com a Universidade
Federal Fluminense, sob coordenação de Cláudia Mendes e Elionaldo Julião, 45,9% dos
adolescentes no DEGASE se declaram pardos. A pesquisa foi realizada com um grupo
amostral em algumas unidades de internação no Estado do RJ, entre elas o PACGC4
(internação/ internação provisória feminina) e GCA (acautelamento).
(Extraído de: Trajetórias de vida de jovens em situação de privação de liberdade no Sistema
Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DEGASE, 2018.)
4Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (Cense PACGC) - Unidade de internação feminina situada na
Ilha do Governador - RJ.
infracional de outra forma (outra medida socioeducativa) ou se a medida escolhida será a última que
consta na gradação do Estatuto da Criança e do adolescente: a internação. ( Lei 8.069, de 13 de julho
de 1990. Artº 122)
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No gráfico, observa-se que 76,2% dos meninos e meninas que estavam no
DEGASE entre 2018 e 2019 são negros. Contudo, é necessário olhar para além das
informações que gráficos e pesquisas quantitativas apresentam. Dizer isso, não é dizer
que números, gráficos, tabelas e porcentagens não são importantes, pelo contrário, é
fundamental que o pesquisador consiga obter o máximo de elementos que o ajudarão
a se aproximar da realidade do campo que ele está investigando, porém, é necessário
que haja algo além. A porque, sabe-se que dados quantitativos, podem ser usados
com o intuito neoliberal, reforçando um discurso meritocrático falacioso. Saber ler para
além dos dados, entendendo as intersecções presentes na sociedade é obter reflexões
mais realistas acerca da realidade.
Além de apurar faces mais profundas dos dados, é necessário pensar quem são
esses adolescentes de forma a enxergar além dos números. Michel Thiollent nos
apresenta a pesquisa-ação. Para o autor, a pesquisa-ação ...é realizada em um espaço
de interlocução onde os atores implicados participam na resolução dos problemas,
com conhecimentos diferenciados, propondo soluções e aprendendo na ação.
(Thiollent; Michel, 2002, p.4) Esse método de pesquisa se aproxima da conceituação da
pesquisa do afeto e tem relação profunda com o pensamento de transformação e
movimentação social que pensamentos como o feminismo de cor e o marxismo
defendem. Ainda sobre o que essa forma de investigação se propõe, Thiollent (2011)
diz que é
[] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e
realizada em estreita associação com uma ão ou com a resolução de um
problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes
representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2011 p. 14).
Pesquisas realizadas dentro de ambientes em privação de liberdade terão
complexidades e questões específicas. Quando aplicações de questionários ou
entrevistas formais com os adolescentes, eles costumam se sentir acuados e entendem
que aquele momento é para a juíza decidir sobre a vida deles. É muito comum esses
adolescentes pensarem que os pesquisadores e grupos que estão desenvolvendo
algum tipo de atividade com eles, estão ali a mando da vara da infância, sendo assim,
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eles acabam se comportando, nos primeiros encontros, como se estivessem em uma
prova de moralidade.
Este relatório de pesquisa, assim como os outros, foi realizado entre uma
universidade em parceria com o DEGASE. Em 2017 a Universidade Federal Fluminense
também realizou em parceria com o MPRJ relatório sobre o perfil dos adolescentes na
socioeducação. Os dados, que mostraram resultados parecidos com esse, não
possuíam perguntas sobre a cor/raça dos internos. É possível compreender que
pesquisas como essas têm prazo para serem cumpridas, logo, não será possível discutir
as perguntas com os entrevistados. Contudo, estamos tratando aqui de adolescentes
que em sua grande maioria evadiram do sistema escolar público. Jovens que não
discutiram questões raciais.
Sabemos que um movimento muito forte de professores, militantes e
pesquisadores para fazer valer a leiº 10.639 de 9 de janeiro de 2003, nas escolas.
Mesmo assim, o racismo estrutural faz com que o imaginário racial nesses espaços seja
tratado, tantos nos livros didáticos quanto em eventos educativos, da velha forma: o
negro e o indígena escravizados. A história do Brasil é cunhada em cima de
apagamento de etnias não brancas. Em “O genocídio do negro brasileiro - processo de
um racismo mascarado” Abdias do Nascimento (1977) reflete com maestria sobre a
questão. O escritor, discute ideias como democracia racial” de um país que se declara
miscigenado mas apaga a negritude. Nascimento (2016 p.82 [1977]) diz: "Tudo era de
origem europeia, como agora quase tudo vem dos Estados Unidos. O país obtivera em
1822 uma independência apenas formal, permanecendo sua economia, sua
mentalidade e cultura, dependentes e colonizadas”.
No DEGASE, presenciamos meninos de pele retinta dizendo serem pardos.
Meninos e meninas negros e negras de pele clara, se autodeclarando brancos e a
maioria deles não sabendo o que dizer. O que significa 2,0% em uma pesquisa de
adolescentes que se afirmam outros” porque não sabem responder? Ou, mais de 40%
de meninos e meninas que se dizem “pardos”? A palavra “pardo”, que é ressignificada
por muitos movimentos negros como forma de aceitação da negritude, é também
extremamente discutida por esses grupos pela forma como ela foi aplicada pelo IBGE.
Por muito tempo a expressão “parda” foi adotada socialmente como forma de tentar
se distanciar do que é ser negro no Brasil. Seja na tela de Modesto Brocos (A redenção
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de Cam, 1895) às diversas formas de tentativa de embranquecimento, não debater
profunda e honestamente a questão racial no país, é não ter dados concretos de como
é a população brasileira. Isso refletirá significativamente nas pesquisas em ambientes
de privação de liberdade.
Aqui, tratamos de ambientes em privação de liberdade”, porque a realidade do
sistema prisional não difere da socioeducação. escassez de pesquisas que pensem a
raça de forma mais profunda dentro do cárcere. Não encontramos muitos trabalhos
que falem sobre atividades de letramento racial dentro desses espaços, ou que
justifiquem porque o sujeito privado de liberdade se autodeclara de determinada
forma. Não por coincidência, Segato (2021) traz uma reflexão interessante sobre a
questão racial nos presídios, pensando no contexto latinoamericano:
Além disso, tentar enunciar o que se ao entrar em uma prisão, fazer
referência à cara da população encarcerada, não é fácil, porque toca a
sensibilidade de vários atores entronizados: a da esquerda tradicional e
acadêmica, que implica dar carne e osso à matemática das classes,
introduzindo cor, cultura, etnicidade e, em suma, diferença; toca a
sensibilidade sociológica, porque os números sobre esse tema são escassos
e muito difíceis de precisar com objetividade devido às complexidades da
classificação racial; e toca ainda a sensibilidade de quem opera o Direito e
as forças da lei, porque sugere um racismo estatal. (SEGATO, 2021, p.292.)
Aqui a antropóloga suscita um ponto fundamental quando se trata de
pesquisas que envolvam a privação de liberdade: a quem interessa discutir essas
perspectivas? Quando as pessoas encarceradas, seja na socioeducação ou no sistema
prisional, são olhadas para além das reflexões sobre seus atos infracionais/crimes e
passam a ser encaradas como sujeitos que também são vítimas de um Estado
repressor e racista. Investigar dados que discorrem sobre raça, gênero e classe, de
forma profunda, é mostrar que esse mesmo Estado “falhou” com esses sujeitos muito
antes de eles cometerem atos delinquentes.
Obviamente, falhar es entre aspas, porque sabe-se de muito que essa
inatividade do Estado e da sociedade para alguns assuntos, é proposital. Com o plano
de aula trabalhado dentro da unidade GCA, será possível observar esse e outros pontos
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levantados aqui sobre a visão de raça nesses espaços e como ela é impregnada de uma
noção que antecede a trajetória desses adolescentes na internação.
DECOLONIALIZANDO AUTORES DE LIVROS: O PLANO DE AULA NO GCA
(DECOLONIALIZANDO AUTORES DE LIVROS - Terça-feira, 26 de julho de 2022,
DEGASE GCA - Ilha do Governador, RJ).
Entro na sala com meu companheiro de aula, Rick, às 14 horas. quatro meninos
entre 14 e 18 anos aparecem 15 minutos depois. Dou aula no DEGASE desde 2018, mas
atuo no GCA desde o início do ano e como é uma unidade de acautelamento, toda
semana temos alunos diferentes. Cada encontro um novo rosto naquela prisão. Nossa
aula iria até às 16h. No início é sempre aquilo: caras fechadas, silenciosas e mãos para
trás.
Boa tarde, gente! Como es a animação? Brinco com eles. Alguns abrem um
sorriso, respondem e outros permanecem sérios. Em seguida entram Carlos e Alex,
dois irmãos que estão cumprindo medida juntos. Para não perder mais tempo de aula,
começo a falar. Explico o porquê de estar ali, do que acredito como sendo educação
e falo que essa aula é um pouco diferente porque quero pensar com eles sobre
Decolonialidade.
DecolaniO que, professora? Perguntou, Messias. Uhm, Decolonialidade.
Assim, sabe quando dizem que fora tem coisa boa? Que gringo é inteligente e
sabe das coisas? Então, decolonialidade, ajuda a pensar nisso tudo! Conversamos um
pouco mais sobre o assunto.
É comum fazermos uma rodada de apresentação rápida para nos conhecermos
um pouco melhor. Em seguida eu e Rick fizemos a proposta de um jogo para quebrar o
gelo com eles. Como o plano de aula foi uma proposta minha, Rick me deixou “puxar o
bonde” e foi me dando suporte nas atividades. O jogo era simples: Eles tinham que
tirar um papel do saquinho e precisavam continuar a história da pessoa que falou
antes, incluindo a palavra que pegou. No saco coloquei as seguintes palavras:
PRETO
ÁFRICA
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FUTEBOL
LIVRO
INTELIGENTE
SUAVE5
LIBERDADE
PRISÃO
TRAJADO6
CRIANÇA
SONHOS
GRINGO
DINHEIRO
PATRICINHA
ESCOLA
FAVELA
PROFESSOR
POESIA ACÚSTICA7
Pensei em palavras que eles sempre falam em nossos encontros. Como
estávamos em oito pessoas, não usamos todas elas. Haviam dois irmãos que não
quiseram participar, estavam para baixo porque tinham acabado de falar com o pai no
telefone. Ficamos conversando sobre como criar história é difícil e falamos sobre as
mentiras que contamos para os pais, namoradas, amigos e como precisamos ser
criativos para criarmos essas ficções. Perguntamos a eles o que eles gostavam de ler na
escola. Dois dos meninos, que tinham 16 e 17 anos, não sabiam ler. Durante a
discussão, Thiago, um outro menino que estava falando com a assistente social, entrou
na sala.
Gente, vamos aproveitar que o Thiago entrou agora e vamos fazer outra
atividade que vai ajudar a gente a pensar nesse jogo que fizemos agora? Desligamos a
luz, ligamos o projetor do Rick e mostramos a primeira imagem:
7Poesia Acústica é um projeto, nascido no Rio de Janeiro, que apresenta canções de rap com diferentes
temas.
6Gíria para designar alguém que es muito bem vestido.
5Gíria usada em algumas comunidades cariocas para indicar que tudo está tranquilo.
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Figura 1 - Representação de Anne Frank
Fonte: Imagem extraída de “Porvir - Inovações em educação - O Diário de Anne
Frank como suporte para o seu projeto escolar8
Vocês conhecem essa menina? Ninguém conhecia. Ela é da época dos escravos?
Messias perguntou. Respondemos que não e eles disseram que não tinham ideia de
quem era a garota na foto. Tá bem, vocês não sabem quem ela é, mas se a gente
pedisse pra vocês dizerem o que vocês acham que ela é. Vocês chutariam? Ah, ela é
rica! Respondeu um deles e perguntamos o porquê. Tá de roupa chique, relógioAcho
que ela é estudante!
Aos poucos eles foram falando sobre a foto parecer velha por estar em preto e branco
e dela não parecer brasileira. Falaram sobre ela ser branca e parecer estar em uma boa
escola. Contamos então, quem foi Anne Frank e falamos um pouco sobre o período
que ela enfrentou enquanto escrevia seu diário.
Por que vocês acham que o diário dela fez tanto sucesso assim?
Ah é porque ela também era de fora, né? E tem esse negócio que a
senhora estava explicando do nazismo. Se fosse aqui, ninguém ligava.
Porque quem vai se importar com nossa história?
É, todo mundo conhece esse negócio aí. onde moro mesmo, tem um cara
que é esqusito e a gente chama ele de nazista por causa desse negócio
que teve. Mas, aqui não tem essas coisas. Num sei se ia fazer sucesso não.
8O Diário de Anne Frank como suporte para o seu projeto escolar Último acesso em: 26 de setembro de
2023 às 12h15min.
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Logo depois que acabamos de discutir sobre Anne, exibimos outra mulher na
tela.
Figura 2 - Representação de Carolina Maria de Jesus
Fonte: Imagem extraída de “Estadão Expresso - Consciência negra: um Brasil de
muitas Carolinas”9
E essa mulher? Vocês conhecem? Também não conheciam.
O que vocês diriam que ela é?
Eu acho que ela é da Bahia. Disse Luis.
Não sei se ela tem dinheiro, ela com cordão.
Vocês concordam com o Luis? Acham que ela é brasileira?
Ah deve ser sim. Não parece gringa.
Por que não?
Porque ela é muito preta. Ou é da Bahia ou é da África. Todos concordam.
Conversamos mais sobre o que eles achavam e enquanto eles falavam, de
dentro da bolsa, tiro o livro “O quarto do despejo” de Carolina. Mostro para
eles. Eles querem pegar o livro, folhear.
Vocês imaginam porque o nome do livro é esse? Pergunta Rick.
Despejo é o que ninguém quer. Responde um deles.
É igual a gente, ninguém quer. Diz um deles.
Contamos a história de Carolina para eles, lemos alguns trechos de seu diário e
perguntamos o que eles achavam daquilo. Conversamos sobre a fome e sobre coisas
que Carolina traz na sua escrita que fazem parte da realidade deles. Falamos sobre
como Carolina Maria de Jesus enfrentou uma guerra diferente, que até hoje é
enfrentada por muitas pessoas no Brasil e no Rio de Janeiro: a guerra contra a fome.
Em seguida, mostrei a última imagem que levamos.
Figura 3 - Representação de Geovani Martins
9Consciência negra: um Brasil de muitas Carolinas - Último acesso em: 26 de set. de 2023 às 12h21 min.
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Fonte: imagem extraída de “REVISTA Z CULTURAL - NOTÕES DA CIDADE NO
CONTO ‘ROLÉZIM’, DE GEOVANI MARTINS”10
E se eu dissesse pra vocês que tem muita gente interessada no que vocês
tem a dizer? Esse daí é o Geovani Martins. Ele escreveu esse livro aqui.
Saquei outra “arma da bolsa e mostrei “O Sol na cabeça”.
Vamos falar sobre o Geovani, mas, eu trouxe um conto dele para lermos
juntos. Dei pra eles as cópias do “Rolézim” conto do Geovani que foi
premiado.
Vocês sabem o que é Rolézim?
Claro, né! Rolézim é sair com os cria pra uma praia, um shopping.
Isso! Vamos ver o que mais vocês entendem da história.
Coloquei o conto para eles ouvirem na voz do Geovani. Durante a leitura, das
palavras que eram comuns a eles, vimos todos rindo, refletindo e presos na história.
Eram 3 páginas, mais de 12 minutos de áudio e todo mundo atento à leitura. Depois do
áudio, conversamos sobre o “Rolézim” do Geovani, sobre a polícia, praia, dinheiro,
drogas e também sobre como o Geovani escrevia de maneira que eles conseguiam
entender. Perguntamos se eles tinham lido algo assim na escola. Um dos meninos,
Messias, nunca frequentou a escola. Os outros foram falando:
Ah professora, na escola tem texto difícil e eu não sei ler muito bem.
, assim nunca li não. Entendi tudo. Escreve que nem gente!
Essa aula é boa pra gente pensar nas coisas, espairecer. Disse o Aldemário,
um menino que estava quieto e que depois descobrimos que na noite
10 NOTAÇÕES DA CIDADE NO CONTO ‘ROLÉZIM’, DE GEOVANI MARTINS. Leandro Souza Borges Silva e
Ricardo Oliveira de Freitas. Último acesso em: 26 de setembro de 2023 às 12h30min.
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anterior a aula ele tentou se enforcar e estava com os braços machucados
porque havia tentado suícidio de outras formas.
Tua história é importante. A história de todo mundo aqui é!
Discutimos sobre o Geovani morar na favela e escrever um livro, sobre como é
importante ter representatividades e colocar o que sentimos e o que passamos em um
papel, expressarmos nossas verdades para o mundo, entendendo que somos
relevantes. Que eles são relevantes. Lançamos a proposta deles escreverem alguma
coisa, o que quisessem. Disse que poderiam usar o vulgo, caso preferissem não colocar
o nome. Perguntei se poderia tirar foto dos textos. Eles se mostraram muito animados
com a ideia de que outras pessoas fossem ler o que escreveram.
Alguns se sentiram mais à vontade em escrever em dupla, que tinham
dificuldade com a escrita e ainda se sentiam um pouco envergonhados para
compartilhar conosco, preferindo buscar apoio nos seus pares. Não nos mostramos
incomodados com isso, pelo contrário, incentivamos a escrita coletiva. Um dos textos
que mais nos chamou a atenção foi de um adolescente que tinha acabado de
completar 17 anos. Ele escolheu o pseudônimo de “Semente” (apelido bem comum
entre os adolescentes internos). O texto é o que se encontra a seguir.
Figura 4 - Poema compartilhado em sala de aula
Fonte: acervo dos autores (2023).
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REFLEXÕES A PARTIR DO PLANO DE AULA TRABALHADO COM OS ADOLESCENTES
É possível fazer reflexões diversas a partir deste encontro com os adolescentes.
Na realidade, todo encontro com adolescentes é um lugar de muito aprendizado.
Principalmente quando esses educandos/alunos, mostram uma bagagem que vem
através de vivências outras. Contudo, focando na discussão que foi levantada,
algumas passagens desta aula que não podem deixar de ser pontuadas.
O primeiro ponto diz respeito ao que foi mencionado: a importância de
mudar a abordagem para falar sobre determinado assunto. Não é possível não pensar
em ferramentas e didáticas novas para auxiliar o adolescente na compreensão de um
tema. Imagine como essa aula seria diferente se ela fosse composta por textos de
Mignolo, Quijano ou outros autores que são essenciais para a construção da discussão,
mas falam de um lugar diferente. É necessário construir formas de alcançar não a
juventude privada de liberdade, mas a população como um todo. Não tem sido esse
um dos maiores desafios enfrentados? A elaboração de um discurso que chegue até as
massas e, que para além disso, faça com que ela se aproprie e entenda a força política
que possui. Vale lembrar da célebre obra de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido,
quando ele diz que:
O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam”
o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos,
da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram
“hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua
pedagogia libertadora (FREIRE, 1974, p. 20).
Ou seja, por mais doloroso que possa ser entender a estrutura social na qual se
está inserido, ter esse discernimento é também o primeiro passo para se entender
detentor de sua própria liberdade. Não cabe a nós e nem devemos assumir papel
salvacionista, como se tivéssemos resposta para todas as aflições desses sujeitos. Não
temos. Porém, o conhecimento que é apreendido dentro da academia, tem que estar
em função da sociedade e isso inclui acessibilizar esse conhecimento para que, pessoas
de lugares e condições diversas, possam compreender.
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Outra discussão que é emergente diz respeito a fala dos adolescentes quando
não conseguiam compreender que os autores negros apresentados eram capazes de
escrever algo relevante e como isso está associado ao que eles pensam a respeito da
própria capacidade deles. O olhar que os adolescentes possuem e o entendimento de
que ela é empregada” porque é negra ou “não é gringa” porque é preta, revela como
esses sujeitos são construídos no imaginário dos adolescentes. Essas impressões não
foram criadas dentro da socioeducação em internação. Elas estão atreladas a algo
maior, ao racismo estrutural, a como negros são apresentados pela mídia, seja em
novelas, seriados ou reportagens. Na maioria das vezes em papéis de subalternidade e
marginalidade.
O que se faz necessário então, é a apresentação desses grupos e indivíduos em
outro lugar. É adotar nas práticas autores que fazem um movimento contra
colonialidade. É urgente que tenhamos mais trabalhos que referenciam pessoas
negras, autores periféricos que estão pensando raça, gênero e classe de outros espaços
e com narrativas mais realistas para jovens que estão em vulnerabilidade
socioeconômica. Tratar tais autores como referenciais teóricos e não apenas como
leitura de recreação. Mostrando para quem quer que seja, dentro das universidades,
nas escolas públicas ou na privação de liberdade, que muitos teóricos que não
representam um viés eurocêntrico.
Conceição Evaristo discute o conceito de escrevivência” para lembrar-nos a
importância que a escrita possui. A autora trata da importância da Escrevivência com
foco especial nas mulheres negras, como base da pirâmide social. Em entrevista para o
programa Estação Plural da TV Brasil, Evaristo (2017) disse:
Quando eu usei o termo é... escrevivência [...] se é um conceito, ele tem
como imagem todo um processo histórico que as africanas e suas
descendentes escravizadas no Brasil passaram. Na verdade, ele nasce do
seguinte: quando eu estou escrevendo e quando outras mulheres negras
estão escrevendo, é... me vem muito na memória a função que as mulheres
africanas dentro das casas-grandes escravizadas, a função que essas
mulheres tinham de contar história para adormecer os da casa-grande, né...
a prole era adormecida com as mães pretas contando histórias. Então eram
histórias para adormecer. E quando eu digo que os nossos textos, é..., ele
tenta borrar essa imagem, nós não escrevemos para adormecer os da
casa-grande, pelo contrário, pra acordá-los dos seus sonos injustos. E essa
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escrevivência, ela vai partir, ela toma como mote de criação justamente a
vivência. Ou a vivência do ponto de vista pessoal mesmo, ou a vivência do
ponto de vista coletivo. (EVARISTO, 2017a).
A escrita desses adolescentes precisa ser incentivada. algo que eles
entendem que, em toda a teoria acadêmica, não será possível encontrar. Narrativas
que falam de um Brasil atual, que sofre as mazelas do presente e que pode auxiliar na
construção de um futuro menos desigual.
Por fim, analisando a escrita do “Semente”, pode-se perceber que ali estão
presentes elementos que não deveriam, no mundo ideal, fazer parte da preocupação
de um adolescente. Quando ele diz: "o que me faz virar a mente é ver minha mãe
trabalhar semana toda. É no final de semana ter que comprar mantimentos pra dentro
de casa." Fica evidente que além da decolonialidade, pensar na intersecção raça,
gênero e classe, se faz imprescindível para compreender o contexto que esses jovens
se encontram. De um lado temos um garoto que acabou de comemorar seu
aniversário de 17 anos na internação, preocupado com a questão financeira da família.
Grande parte dos adolescentes no DEGASE estão por associação ao tráfico, como
podemos observar na tabela. Além de tráfico de drogas, o segundo ato infracional mais
cometido é roubo e furto.
Figura 5 - Atos infracionais praticados por adolescentes no DEGASE
Fonte: DEGASE e COOMSE (2022).
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Os internos geralmente atribuem à contravenção a situação de extrema
pobreza que eles e sua família enfrentam. Essa necessidade de dinheiro urgente não é
uma visão inerente apenas aos adolescentes que estão na socioeducação. Na
sociedade capitalista na qual vivemos, o dinheiro irá representar um traço
fundamental, principalmente para jovens em vulnerabilidade socioeconômica. Em
1978 o sociólogo Pierre Bourdieu em entrevista afirmou que:
(...) uma das razões pelas quais os adolescentes das classes populares
querem sair da escola e começar a trabalhar muito cedo, é o desejo de
ascenderem o mais depressa possível ao estatuto de adulto e às
capacidades econômicas que lhe encontram associadas: ter dinheiro é
muito importante como afirmação perante amigos, perante as meninas (...)
e serem reconhecidos e reconhecerem-se como “homens” (BOURDIEU,
1978, p. 115).
Quando, em aula, são questionados sobre suas motivações para entrarem para
o tráfico de drogas, a maioria deles alegam que é por enxergarem nesse caminho a
forma mais rápida de ascensão social. As figuras de maior representatividade dentro
das comunidades do Rio de Janeiro, quando o assunto é dinheiro, são os traficantes
ostentação” como são conhecidos. Esses jovens identificam nesses sujeitos uma
maneira de conseguirem seu próprio dinheiro, carros, mulheres e fama dentro da
comunidade. Rappers nacionalmente conhecidos e popularmente difundidos dentro
das comunidades, como é o caso do Xamã, Mc Poze do Rodo, Cabelinho, Filipe Ret e
Orochi exprimem em suas letras a realidade desejada por esses adolescentes.
Em A cara do crime - Nós incomoda” vemos trechos como: “meio quilo de ouro
no meu pescoço, BMW com banco de couro. Pelo meus crias eu também mato e
morro. Fora da lei”. Falas como esse trecho da música aparecem repetidamente no
discurso dos adolescentes, que mostram essa necessidade de consumir roupas de
marca e objetos de luxo como forma de ter valor e reconhecimento social.
Se em uma ponta da corda, temos um jovem com todas essas questões de
classe na cabeça, na outra, teremos a figura da mulher: “ver minha mãe trabalhar
semana toda. Não existem relatórios e estudos atualizados que falem sobre a
configuração familiar dos adolescentes internos, porém, em sala de aula é muito difícil
encontrar adolescentes que tenham presença paterna. A ausência dos pais é presente.
Não no DEGASE. Segundo pesquisa realizada em agosto de 2022 pela Associação
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Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) mais de 100 mil crianças
não receberam o nome do pai este ano. No DEGASE, temos filhos que foram criados
por mulheres.
Em diversas passagens dos diários de pesquisa, a questão de gênero surgirá.
Seja em relação às companheiras dos adolescentes, que na maioria são mães, seja
na figura materna, personificada por vó, mãe, irmãs mais velhas ou tias. Também pode
surgir a partir de ideias transfóbicas, machistas e LGBTfóbicas. Porém, refletindo
especificamente sobre a escrita do “Semente”, e pensando sobre abandono paterno e
violências de gênero, pode-se realizar conexão direta ao que conhecemos como
"Feminização da pobreza”. Como visto referente a raça, a maioria dos adolescentes
internos são negros. Entende-se por isso que grande parte desses adolescentes
possuem em seu núcleo familiar mais próximo pessoas pretas e pardas. Mulheres que
estão na base da pirâmide e que enfrentarão opressões de gênero, raça e classe. Para
além disso, serão elas as culpabilizadas socialmente por não terem dado a devida
criação aos seus filhos.
Negar a importância do debate de gênero (e suas intersecções) é se omitir
frente a uma estrutura que invisibiliza e violenta todo e qualquer corpo que foge a
norma de uma sociedade que beira o precipício e se alimenta das mais diversas
opressões. Acreditar que essa discussão pertence a um grupo específico e não
expandi-la, de modo acessível, para outros espaços é fechar-se para a realidade social
do Brasil. Muitas vezes, na temática da socioeducação em internação, é trabalhado
com os adolescentes, principalmente os do sexo masculino por serem maioria,
assuntos atrelados ao crime, tráfico e a aspectos que tangenciam a passagem deles.
Porém, é fundamental que também se façam discussões outras, tais como: falar sobre
raça, questões de classe e gênero. Deveríamos, imediatamente, discutir feminismo
com os meninos em internação. Em “O feminismo é para todo mundo: políticas
arrebatadoras” bell hooks (2020 p. 30) diz que:
Conscientização feminista para homens é tão essencial para o movimento
revolucionário quantos grupos para mulheres. Se tivesse havido ênfase em
grupos para homens, que ensinassem garotos e homens sobre o que é
sexismo e como ele pode ser transformado, teria sido impossível para a
mídia de massa desenhar um movimento como sendo anti-homem.
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Também teria prevenindo a formação de um movimento antifeminista de
homens. [...] Homens de todas as cidades precisam de ambientes em que
sua resistência ao sexismo seja reafirmada e valorizada. [..] O feminismo é
antisexismo (HOOKS, 2020, p. 30).
Adotar o pensamento de bell hooks nas práticas educacionais nas quais nos
propomos a estar, é defender que esses adolescentes são capazes de apropriar-se
desses discursos e das pautas decoloniais e interseccionais. Para além disso, é também
plantar uma semente que pode germinar e fazer a diferença nos territórios que esses
sujeitos estão inseridos.
Loic Wacquant (2001), ainda no prefácio “Rumo a uma ditadura sobre os
pobres?” para edição brasileira, em sua obra Prisões da Miséria escreveu:
Pois, em última análise, o que está em jogo na escolha entre a edificação,
por mais lenta e difícil que seja, de um Estado social, e a escalada, sem
freios nem limites uma vez que se auto-alimentam, da réplica penal é
simplesmente o tipo de sociedade que o Brasil pretende construir no futuro:
uma sociedade aberta e ecumênica, animada por um espírito de igualdade
e de concórdia, ou um arquipélago de ilhotas de opulência e de privilégios
perdidas no seio de um oceano frio de miséria, medo e desprezo pelo outro.
(WACQUANT, 2001, p.8).
O livro do autor discorre sobre as questões socioeconômicas que circundam o
cárcere. São páginas que terão paralelos com o sistema prisional no Brasil e que podem
ser elaboradas questões para pensar a socioeducação em internação. Nesse trecho, o
sociólogo faz um convite para que o Brasil seja pensado para além de suas paisagens e
seja posto como uma sociedade que luta politicamente pelos seus. É justo que esse
movimento seja feito internamente. Não esperemos mais o algoz trazer a chave.
Libertemo-nos.
CONSIDERAÇÕES (QUE O SEJAM) FINAIS
O objetivo dessa brincadeira com o tópico final desta escrita é a de convidar o
leitor deste trabalho a não parar de refletir sobre a questão após ler as palavras finais
deixadas aqui. É importante que essa escrita seja criticada, repensada e que se criem
mais produções que apliquem decolonialidade e intersecção atreladas a outros
assuntos.
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Que elas não sejam um fim nelas mesmas. Assim como a socioeducação não
seja vista como algo isolado que corresponde apenas a trabalhadores que atuam com
esses adolescentes. Todos somos responsáveis pela educação das crianças e
adolescentes. Como diz o provérbio popular africano: é preciso uma aldeia inteira
para educar uma criança. Olhar os adolescentes que cumprem medidas
socioeducativas como outros. Segmentar o debate como se apenas um grupo de
intelectuais devesse discutir ou saber sobre isso, é manter o olhar colonial de exclusão
de perspectivas e narrativas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90. São Paulo, Atlas, 1991.
EVARISTO, Conceição. Escritora Conceição Evaristo é convidada do Estação Plural:
depoimento [jun. 2017]. Entrevistadores: Ellen Oléria, Fernando Oliveira e Mel
Gonçalves. TVBRASIL, 2017. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Xn2gj1hGsoo. Acesso em: 15 jan. 2023.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade.
Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2017.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras / bell hooks;
tradução Ana Luiza Libânio. 1. ed. - Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
MARTINS, G. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MENDES, Claudia Lucia e JULIÃO, Elionaldo. Trajetórias de vida de jovens em
situação de privação de liberdade no Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: DEGASE, 2018.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
PALERMO, Zulma. Desde la otra orilla: pensamiento crítico y políticas culturales en
América Latina, Córdoba: Alción, 2005.
SEGATO, Rita. A cor do cárcere na América Latina. In: Crítica da colonialidade em
oito ensaios e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011.
WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Paris: Raisons d'Agir, 1999.
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