https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n2p189-199
Vol. 29, n. 2, jul/dez, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
DESCOLONIZAR O CONHECIMENTO: A PERSPECTIVA DE LEWIS GORDON
Elen Nas1
Recebido em: 01/12/2023
Aprovado em: 20/12/2023
Resumo: O texto oferece um comentário que objetiva contextualizar a entrevista concedida
por Lewis Gordon em Janeiro de 2023 e publicada como podcast2, de modo a amplificar o
acesso ao pensamento de Lewis Gordon para a língua Portuguesa. Na entrevista ele fala sobre
as disputas de narrativa na filosofia e ciência, o apagamento e apropriação das influências
Orientais e do Sul nos sistemas de conhecimento e de como a universalização de teorias e
conceitos reforçam ideias de ‘perfeição’ e verdade que refletem o privilégio branco do Norte
Global. Lewis Gordon oferece-nos elementos para refletir sobre a necessidade da metafilosofia
e metaética para a crítica decolonial e lembra que nos espaços de privilégio não se deve
esperar aprovação desde que as perspectivas hegemônicas tendem a resistir à inclusões que
tragam diversidade ao campo epistêmico.
Palavras-chave: Decolonização. Educação. Filosofia. Tecnologia.
DECOLONIZING KNOWLEDGE: THE PERSPECTIVE OF LEWIS GORDON
Abstract: The text offers a commentary that aims to contextualize the interview given by Lewis
Gordon in January 2023 and published as a podcast1, in order to amplify access to Lewis
Gordon's thoughts in the Portuguese language. In the interview he talks about narrative
disputes in philosophy and science, the erasure and appropriation of Eastern and Southern
influences in knowledge systems and how the universalization of theories and concepts
reinforce ideas of 'perfection' and truth that reflect white privilege of the Global North. Lewis
Gordon offers us elements to reflect on the need for metaphilosophy and metaethics for
decolonial critique and reminds us that in spaces of privilege one should not expect approval
since hegemonic perspectives tend to resist inclusions that bring diversity to the epistemic
field.
Keywords: Decolonization. Education. Philosophy. Technology.
DESCOLONIZAR EL CONOCIMIENTO: LA PERSPECTIVA DE LEWIS GORDON
Resumen: El texto ofrece un comentario que tiene como objetivo contextualizar la entrevista
concedida por Lewis Gordon en enero de 2023 y publicada como podcast1, con el fin de
ampliar el acceso al pensamiento de Lewis Gordon en lengua portuguesa. En la entrevista
2Para melhor acompanhamento do texto, sugere-se o acesso aos arquivos de áudio da entrevista,
disponibilizados em https://soundcloud.com/decolonizai
1Elen Nas é posdoc no Instituto de Estudos Avançados/USP. Doutora em Bioética, Mestre em Design e
Cientista Social. Foi pesquisadora visitante da UCI (EUA) e Monash (Austrália). Colabora com o
laboratório de arte e ciência da Universidade do Texas (Artscilab/UTD), com o ELA IA (Estratégia
Latino-Americana da Inteligência Artificial). É fundadora e coordenadora do projeto DecolonizAI. ORCID
iD: https://orcid.org/0000-0002-6275-2799
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habla de las disputas narrativas en filosofía y ciencia, la eliminación y apropiación de las
influencias orientales y sureñas en los sistemas de conocimiento y cómo la universalización de
teorías y conceptos refuerza las ideas de "perfección" y verdad que reflejan el privilegio blanco
del Norte Global. Lewis Gordon nos ofrece elementos para reflexionar sobre la necesidad de
una metafilosofía y una metaética para la crítica decolonial y nos recuerda que en espacios de
privilegio no se debe esperar aprobación ya que las perspectivas hegemónicas tienden a
resistir inclusiones que traen diversidad al campo epistémico.
Palabras clave: Descolonización. Educación. Filosofía. Tecnología.
INTRODUÇÃO
Lewis Gordon (Lewis Gordon, 2023) é um filósofo americano, de origem
afro-jamaicana e judaica, formado Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade de
Yale. Dentre suas centenas de publicações estão “Fear of Black Consciousness”
(GORDON, 2022), “Freedom, justice and decolonization” (GORDON, 2020) e
“Geopolitics and Decolonization: Perspectives from the Global South ”(GORDON,
2017).
Na entrevista concedida em 27 de Janeiro de 2023 via Zoom, ele agradece a
todos que antes tiveram coragem para levantar suas vozes, como Ângela Davis, e que
se tornaram inspiração para pensadores como ele. Suas falas conjugam seu
conhecimento teórico com um modo leve de expor o pensamento que se assemelha a
contações de história”. Ele revela perspectivas menos influentes na epistemologia que
vão desde os conhecimentos do Oriente e do Sul apropriados e não citados, a os
divergentes do hegemônico dentro da própria tradição Ocidental.
Ao falar de metaestabilidade como a quintessência humana` (GORDON, 2020),
refletida na capacidade de afetar e ser afetado de maneiras tão rápidas e
organicamente indivisíveis, Gordon desvia do antropocentrismo para lembrar que a
centralização no humano sempre tendeu a favorecer narrativas focadas nos privilégios
da cultura ocidental, seus modelos e linguagens. Assim, ao apresentar a metafilosofia
ele lembra a importância da filosofia da filosofia, que é entender os modos pelos quais
os conhecimentos foram gerados e que histórias de fundo influenciaram as visões de
mundo da cultura ocidental (GORDON, 2020). Em outras palavras, quais são as ‘molas
propulsoras’ nas narrativas e seus modos de observar o mundo, que resultaram na
cultura, sua literatura, ciência e história.
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É sempre iluminador ouvir Lewis Gordon falar, quando ele lembra que o que
entendemos por inteligência como algo que torna os humanos a mais especial das
espécies’, possui diferentes conceitos em outras linguagens, suas culturas e territórios.
Em outras perspectivas divergentes do modo europeu, inteligência pode ser
explicada e interpretada de maneiras mais amplas desde que ela não se resume a um
atributo cognitivo do cérebro, ou que seja uma exclusividade humana, senão modos de
interagir com o espaço e tudo que nele habita.
Na entrevista, que está publica em partes, com edições no site DecolonizAI
(NAS; TERCEIRO, 2022), inauguramos o podcast publicado em plataforma de streaming
de áudio (NAS, 2023a).
Foram retirados do áudio as perguntas que continham comentários longos,
palavras e frases repetitivas, grandes pausas e expressões vocais de ligação como
ãn e “por exemplo quando não eram realmente necessárias para compreensão
da frase. A partir dos recortes feitos também saíram alguns trechos que eram
observações breves e genéricas sobre algo que foi dito no momento das perguntas.
Optou-se pelos cortes para otimizar a experiência dos ouvintes, e também em
função de ser um diálogo entre pessoas que falam línguas diferentes, que se
encontram em locações diferentes (São Paulo/Brasil e Connecticut/Estados Unidos),
fazem parte de gerações diferentes, entre outras especificidades de experiências,
histórias de vida e relações com os territórios. Tais distâncias tendem a tomar mais
tempo para algumas explicações e comentários adicionais.
Desse modo, torna-se necessário situar, neste texto, o conteúdo das perguntas
que resultou nas respostas oferecidas por Lewis Gordon, disponibilizadas nas
gravações (NAS, 2023a). Por exemplo, quando comenta sobre a questão de no Brasil
haver uma discriminação diferenciada nos tons de pele que faz com que pessoas da
mesma família sejam classificadas como brancas, pardas e pretas, ele comenta que isto
para ele não faz sentido, desde que é (assim como sua entrevistadora) pertencente a
uma família de diversos tons de pele, incluindo pessoas com cabelos dourados e olhos
claros. No caso da família do Lewis, todos são listados como negros nos Estados
Unidos. Ele acrescenta ainda que a divisão étnica baseada em cores é, de modo geral,
também uma consequência do colonialismo (NAS, 2023b).
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AS MENTIRAS DO COLONIALISMO
A questão da descolonização do conhecimento reúne camadas mais profundas
algumas intocáveis onde o que vemos é a ‘ponta do iceberg através de modelos
que se repetem e reproduzem-se em grandes escalas através da internet e nas faces
mais recentes da computação ubíqua que nutre, desenvolve-se e se espalha em seus
diversos modos, muitos denominados ‘inteligência artificial’.
Se toda estrutura do conhecimento filosófico, científico e humano do mundo
moderno reflete divisões tais quais colonizador/colonizado’, os desafios para
descolonizar o espaço web, as tecnologias e seus desenvolvimentos nos levam a
encontrar os problemas fundamentais que sempre moveram os debates éticos:
alteridade, desigualdade, exclusão, pertencimento, segregação, exploração e justiça
social, para citar alguns.
Lewis Gordon aponta alguns dos problemas fundamentais do colonialismo
Euromoderno que estimulou movimentos etnofilosóficos dentro de uma capa’ de
universalismo no entendimento do humano e natureza, além do que poderia ser
considerado ‘principal’ em termos de conhecimento. Assim, segundo ele, a história das
ideias e da ciência frequentemente representou racionalizações sobre a degradação
humana a que eram (e continuam expostos) grupos, em sua maioria ‘não-brancos’.
(GORDON, 2022) Assim, populações nativas/indígenas, escravizadas e colonizadas
sofrem continuamente de uma espécie de melancolia em consequência de um luto por
separação e perda de um mundo substituído por outro ao qual não pertencem com
dignidade. O sentimento ‘homelessness’, a falta de acolhimento e abrigo não é
geográfico, mas temporal.
Ele lembra, portanto, que celebrar a diversidade sem acolher a diferença é
resultado de uma centralização de uma teoria que precisa ser ‘branca’ para ser válida.
Que a separação entre teoria e prática, com a subalternização desta última, aumenta
as lacunas sociais refletidas nos campos do conhecimento, o que ele chama de uma
dependência epistêmica’ (GORDON, 2022) dos povos ‘não-brancos’ que se ancoram na
experiência e precisam ser ensinados’ até que aprendam a pensar e teorizar como
brancos.
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A deslegitimação da experiência tornou o pensamento colonial superior e a
aceitação de tais dinâmicas de poder na esfera acadêmica faz com que as demandas de
inclusão agreguem alguns gêneros e cores aos espaços sem contudo gerar
representatividade epistêmica. O próprio conceito de racionalidade que é um pilar do
pensamento moderno, tende a não representar a decolonialidade como meta-ética no
respeito à diversidade de saberes.
No Brasil, o ideal de mestiçagem criou uma cortina de fumaça’ sobre o racismo,
desde que o ideal sempre foi do embranquecimento da população, meta sem nenhum
sucesso, que a soma de pretos e pardos ultrapassa os 50% (Prudente, 2020), sem
contar ainda com todos que ainda se autodeclaram ou se identificam como brancos
sem de fato sê-lo, o fazem, seja em concordância com o seu registro de nascença, seja
por conveniência social, ou mesmo pela ignorância gerada pelo negacionismo do
racismo, apagamento das ancestralidades indígenas e a vergonha social expressa em
ditos como “fulano tem o na África” e outros ainda mais pejorativos como “preto
quando não suja na entrada, suja na saída”.
Entretanto não é incomum que muitos que são ‘lidos’ socialmente como
brancos não se identifiquem com esse saber que é o saber colonizado, sem contudo
identificar os problemas de adaptação no sistema educacional a partir dos problemas
de fundo apontados pela demanda decolonial.
Em outras palavras, muitos não se adaptam ao sistema educacional e são tidos
como intelectualmente inferiores, quando as causas das dificuldades de adaptação
tanto podem ser bem objetivas como não ter comida suficiente em casa, um lar
instável com situações emocionais de violência, assim como um meio envolto em
precariedades, violências interpessoais e institucionais. Ou mesmo questões mais
subjetivas, quando se tem uma experiência muito rica nas relações com a natureza e o
território e as abstrações da racionalidade fazem parte de uma linguagem alienígena
que desmerece a experiência humana sensorial como fonte de conhecimento.
No campo da educação, o problema quando as capacidades individuais são
julgadas, desde a infância, a partir da relação e adequação ao conhecimento que vêm
de uma perspectiva hegemônica e dominante, representando modos coloniais de ver o
mundo em todos os temas, desde a ciência, às artes e humanidades. Assim,
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frequentemente o conhecimento que muitos trazem de outras culturas, perspectivas e
microculturas não é entendido como conhecimento válido.
Quando questionado sobre o fato de que quando os indígenas vão para a escola
- e isso acontece tanto no Brasil como nos Estados Unidos - uma dificuldade em se
encaixar no conhecimento, Lewis reflete que nunca iremos nos encaixar
completamente em algo, que esta é uma ideia falaciosa onde se busca reduzir as
subjetividades aos sistemas reducionistas. Ele diz que se nos encaixamos
completamente não temos para onde crescer. E que então a perspectiva de estar
completamente ajustado aos padrões faz parte dos dispositivos de poder do mundo
industrial moderno que se desenvolve através da colonização/apropriação de
territórios. (NAS, 2023c)
Lewis Gordon enfatiza que o colonialismo é uma mentira que se através da
imposição de uma versão do mundo que tenta referendar a exploração, abuso e
violência dos que estão em posição de privilégio sobre as pessoas as quais se entende
como inferiores. E o que se procura gerar é um convencimento de ambas as partes de
modo que as ideias de inferioridade e superioridade encontrem como apoio conceitos,
formas de pensar que estabelecem limites e acessos à direitos essenciais a partir de
invenções racializadas, baseadas por exemplo em tons de pele.
Assim, a negritude que levou à construção da anti-negritude se ancora em um
imaginário onde ser valorizado é não ter limites. Enquanto o mundo da negritude teve
como limite final a escravidão, ser branco é poder fazer o que quiser, criando a noção
de que ser branco é desejável.
Entretanto, ele diz que é preciso trazer à tona a complexidade do que as
pessoas são quando falamos sobre mulheres, quando falamos sobre gênero, quando
falamos sobre raça, quando falamos sobre sexualidade, quando falamos sobre classe,
porque o colonialismo moderno criou uma noção de que algumas pessoas eram
perfeitas por serem, digamos, cristãs. Perfeito, por ser, digamos, masculino. Perfeito
por ser, digamos, branco. E perfeito por ser, por exemplo, rico” (NAS, 2023b).
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CIÊNCIA, PADRÕES E DESVIOS
Os povos colonizados tampouco são homogêneos. Temos influências de
diferentes origens, mesmo entre Brasil e Jamaica que são os locais de nascença dos
atores desta interlocução. Lewis Gordon foi perguntado sobre a questão de, quando
um colonizado de múltiplas ancestralidades chega na escola e percebe não ser
inteiramente representando pelo sistema de conhecimento, não apenas nos modos
que as histórias são contadas, como também a presunção de que alguns modos de
conhecer são melhores do que outros, o que fazer com o sentimento de nunca se
encaixar”?
Lewis Gordon comenta os sistemas de conhecimento a partir de sua biografia,
desde que faz parte de uma família mista, que tem pessoas de todo o mundo. Lembra
que a história dos impérios no passado criavam situações em que muitos grupos
precisavam sair de onde estavam e se mudar para outro lugar. E quando chega o
processo de colonização Euromoderna, a ilha da Jamaica, por exemplo, era composta
de Africanos forçados à escravidão enquanto muitos indígenas foram mortos
sistematicamente desde o desembarque de Colombo. E, em seguida, as pessoas que
foram trazidas aos bandos eram diferentes tipos de brancos. E, diz ele, “sempre
dizemos branco, mas branco inglês não é o mesmo que branco irlandês ou branco
escocês, branco alemão ou branco italiano.
Os ‘tons de branco’ também possuem diferentes tipos de status na ordem
geopolítica e econômica global, hoje, e no passado mais ainda. Assim, o Brasil e os
países da América do Sul foram majoritariamente colonizados pelos
mediterrâneos-brancos que são portugueses, italianos, e espanhóis.
Ele diz que, “no norte da África, embora historicamente negros, os africanos
não se autodenominavam negros” (NAS, 2023c). Nesta região no passado os europeus
foram escravizados, tendo gerado assim uma mestiçagem e clareamento da pele da
população.
Portanto as questões da multiculturalidade advindas do encontro de diferentes
povos não é algo novo e sempre influenciou a cultura e conhecimento de toda
humanidade. Porém no colonialismo da era moderna as pretensões de universalidade
criaram não apenas mal-entendidos.
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Entende-se na ciência e educação que “todos devem usar o mesmo sapato”.
Lewis Gordon faz uma analogia com um caso real quando relata que nasceu com o
torto, com síndrome de Tourette, que resultava em dificuldade de andar, dislexia,
epilepsias múltiplas, e que, ao mesmo tempo, o que eram desvantagens se tornaram
oportunidade para dedicar-se ao aprendizado e receber atenção de modos diferentes
dos demais. Assim ele começou a falar com três meses de idade e se desenvolveu
aprendendo a aprender em circunstâncias difíceis.
Mesmo que tenha sofrido bullying nas escolas ele não se perguntou o que
de errado comigo” como normalmente faria uma pessoa totalmente saudável e apenas
discriminada negativamente por circunstâncias externas. Do contrário ele se perguntou
o que havia de errado com aquelas crianças para zombar, maltratar e abusar de alguém
que não tinha as vantagens que eles tinham.
Depois, quando se tornou imigrante nos Estados Unidos aos 9 anos ele se
assustou em ver como as crianças zombavam dos pobres. Porque quando ia para a
escola com tênis muito baratos e limpos, e tinha muito orgulho de usá-los, as crianças
riam e apontavam para mim por usar sapatos baratos. (NAS, 2023c)
Lewis Gordon menciona alguns dos detalhes da biografia para demonstrar
como as questões em torno da educação diziam também respeito a colonização e o
imaginário do mundo industrial moderno.
Ele destaca que confusão nos ideais de igualdade, desde que o sentido ético
e político que seria a igualdade de forma a ter uma vida digna desde a infância à vida
adulta nunca foi acessível a todos. E as verdades e mentiras fazem parte de um
repertório homogeneizante onde um grupo ‘perfeito’ de pessoas possuem um
conhecimento perfeito’, capaz de tornar as pessoas ‘inferiores’ civilizadas.
Embora na antropologia tal característica denominada etnocêntrica’ seja
considerada errônea desde que é enviesada, sua influência, assim como o positivismo
e tantos outros conceitos, permanecem presentes.
Lewis Gordon enfatiza que a ideia de que um grupo perfeito’ de pessoas
construiu tudo ao nosso redor visando o bem comum, em geral exclui os créditos aos
envolvidos nas construções. Ele diz que os construtores são mulheres, homens, e
pessoas para além do binário evocado pela racionalidade moderna. São estes que
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trazem, não apenas os corpos e músculos para tornar sonhos realidades, como
também as ideias criativas de tudo que se cria, funciona e que se ergue no espaço.
E quando o assunto são as tecnologias, mais falácias se apresentam. A ideia de
que somos separados das tecnologias que usamos para ele não parece correta se
considerarmos tudo que entendemos sobre o surgimento e desenvolvimento do
humano desde a pré-história. Ele diz que os hominídeos “não ficaram sentados sendo
ignorantes por dois milhões de anos (eles) estavam encontrando maneiras de
sobreviver e desenvolveram tecnologias.
Claude Levy Strauss disse algo absolutamente correto: a diferença entre um
machado de pedra e um machado de o é que um é feito de aço e o outro de pedra.
Ambos cortam. Aquelas pessoas antes mesmo de aparecerem os homo sapiens,
encontraram uma maneira de desenvolver ferramentas para tirar a pele de animais,
fazer fogo, cortar madeira, fazer todo tipo de coisa, comunicar, (...) Então, quando
evoluímos, havia um mundo de tecnologia. E nunca houve uma separação entre o
Homo Sapiens e o tecnológico.(NAS, 2023c)
Lewis Gordon aponta que este ser que se desenvolve junto com as ferramentas
tampouco fazia parte de um grupo ‘puro’ e destacado como se quis crer por muitos
séculos dentro do conhecimento científico ocidental. Diz que nunca fomos uma
espécie única e fechada e que sempre houve mistura genética. Então não é do sentido
racista de mestiçagem que se fala, mas do encontro e troca entre grupos distintos.
Mas se evoluímos junto com a tecnologia, estamos em um momento em que a
tecnologia se esgota ou não funciona. Porque as tecnologias informacionais vão além
de melhoramentos de performance. Elas carregam multicamadas de saberes que estão
comprometidos com crenças capazes de produzir mais sofrimento, aumentando as
distâncias quando querem diminuí-las, causando maiores desigualdades quando
querem solucionar problemas.
Lewis Gordon afirma que a educação precisa ser repensada e que
decolonização é saber transformar os ideários de sistemas ‘perfeitos’ e fechados em
possibilidades abertas nas quais as pessoas podem aprender como aprender, e criar
uma sociedade em um mundo que se encaixará a elas e não o contrário, de modo a
trazer qualidade de vida em sentidos mais amplos.
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COMENTÁRIOS FINAIS
Nos trechos finais da entrevista Lewis Gordon comenta sobre a importância dos
mitos nos elos sociais de comunicação, nas contações de história que atribuem
significado às coisas e definem as culturas. Neste sentido, a linha tênue entre arte e
ciência seria de que a ciência requer evidências que podem ser comprovadas através
de um consenso. Que a arte imagina, intui e prevê, e a ciência é sobre aprender como
as coisas ‘funcionam’.
Ele ressalta também que as evidências aos quais a ciência requer pertencem à
comunidade, e que há, portanto, um desvio quando a ciência se torna um grupo
fechado’ que pode manipular narrativas, escapando às evidências, criando portanto
ficções com status e autoridade de verdade. Obviamente que tal crítica não se trata de
negacionismo da ciência, senão a constatação de desvios tais como a eugenia onde
buscou-se provar o improvável a partir das ideias de mundo dos cientistas.
Como a arte é associada ao mundo sensorial e subjetivo, integrá-la à ciência
seria também reconhecer que a ciência não é neutra e imparcial, que sempre existem
fatores individuais, culturais e sociais capazes de influenciar sua atenção, olhares e
processos de decisão. Este reconhecimento portanto seria um importante passo para
descolonizar a ciência de modo a agregar e melhor entender as perspectivas da
multiculturalidade.
Finalmente, Lewis Gordon conclui que tudo que é possível fazer hoje para falar
de decolonização, é porque antes de nós houveram pessoas que tiveram coragem de
confrontar as distâncias que separam os grupos sociais, fazendo crer que alguns são
mais aptos e cultos que outros. Assim ele cita Angela Davis e outros que tornaram suas
atividades no campo do conhecimento uma face do ativismo. Por outro lado, ele
também enfatiza que se tornou aceitável que mulheres e pessoas de cor falem da sua
experiência enquanto o espaço da teorização continua sendo majoritariamente
masculino e branco.
Nota ainda que quando uma mulher é integrada dentro de um espaço de
conhecimento e poder masculino se espera que ela assuma a capa’ masculina, de
modo que suas características desviantes’ do padrão comportamental podem ser
frequentemente apontadas como extremamente emocionais” com as cargas
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pejorativas das mais diversas (histérica, louca, descontrolada, etc.). Do mesmo modo,
das pessoas negras integradas a espaços historicamente ocupados por brancos se
esperam atitudes comportamentais que se encaixem nos modelos de tudo que se
entende como adequado. A etiqueta reúne um conjunto de atributos estéticos que
comunica os modos de pensar do grupo que emerge com maior poder no sistema
industrial da era moderna (EAGLETON, 1993).
Embora o policiamento comportamental tenha sido foco de críticas,
expressas em conceitos como a biopolítica (FOUCAULT, 2008) , ele continua em voga e
Lewis Gordon observa que o seu processo de inclusão como filósofo no ambiente
acadêmico foi brutal. Sua dica é não esperar aceitação e aprovação de ninguém.
Simplesmente ser e fazer o que deve ser feito, algo que ele considera um compromisso
moral, em especial de todos os que possuem ancestralidades suprimidas por sistemas
de poder impostos através de abusos, violência e má-fé.
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