https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n2p162-188
Vol. 29, n. 2, jul/dez, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
CONTORNOS DE UM COSMOPOLITISMO INTERCULTURAL
Gabriel Pedro Dassoler Damasceno1
Recebido em: 01/11/2023
Aprovado em: 20/12/2023
Resumo: A partir de um referencial teórico primordialmente descolonial, o presente texto tem
o objetivo de responder ao problema: como é possível pensar em um cosmopolitismo para
além das perspectivas europeias? Para tanto buscou-se responder ao problema por meio de
uma abordagem dialética a partir da compreensão qualitativa dos estudos de matriz
cosmopolita. Quanto à análise de objetivos, esta foi realizada de forma exploratória. Foram
utilizadas como procedimentos as ferramentas bibliográfica e documental. Oferecer-se-á um
novo projeto, uma nova opção: um cosmopolitismo intercultural.
Palavras-chave: Direito. Cosmopolitismo. Interculturalidade. Kant.
CONTOURS OF AN INTERCULTURAL COSMOPOLITANISM
Abstract: From a primarily decolonial theoretical framework, this text aims to answer the
problem: how is it possible to think of a cosmopolitanism beyond European perspectives?
Therefore, we sought to respond to the problem through a dialectical approach based on the
qualitative understanding of studies with a cosmopolitan matrix. As for the analysis of
objectives, this was carried out in an exploratory way. Bibliographic and documentary tools
were used as procedures. A new project will be offered, a new option: an intercultural
cosmopolitanism.
Keywords: Law. Cosmopolitanism. Interculturality. Kant.
INTRODUÇÃO
O termo cosmopolitismo” data pelo menos dos cínicos do século IV aC, que
cunharam a expressão cosmopolita, cidadão do cosmos”. A formulação pretendia ser
paradoxal e refletia o ceticismo cínico geral em relação ao costume e à tradição. Um
cidadão - polites - pertencia a uma determinada polis, uma cidade à qual devia
lealdade (APPIAH, 2007). O cosmos se referia ao mundo, mas não se limitando no
1Estágio Pós-doutoral em andamento na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Direito
Público pela UNISINOS. Mestre em Direito Internacional Contemporâneo pela UFMG. Especialista em
Direito Internacional pelo CEDIN. Atualmente é professor de Direito Internacional e Direito Empresarial
na UNIFIPMoc. Co-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa Direito Internacional Crítico
(DICRÍ/UFU). E-mail: gpmdamasceno@hotmail.com. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7742-3891.
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sentido da terra em si. Cosmos se referia ao universo. Então, originalmente, falar em
cosmopolitismo sinalizou uma rejeição da visão convencional de que toda pessoa
civilizada pertencia a uma comunidade entre comunidades. Abre-se espaço para
pensar em uma política ou abordagem moral da política centrada na humanidade
que compartilhamos, e não nas marcas de origem local, status, classe e gênero que nos
dividem (APPIAH, 2007).
Apesar da citada origem cínica do termo, as ideias cosmopolitas não são
exclusivas da sociedade ocidental, pelo contrário, é possível encontrá-las em diversas
tradições em todo o mundo, ressaltando a existência do pensamento cosmopolita nas
diversas obras antigas de numerosos egípcios, hebreus, chineses, etíopes, assírios e
persas. Nesse sentido, a partir de um referencial teórico primordialmente descolonial,
o presente texto tem o objetivo de responder ao problema: como é possível pensar em
um cosmopolitismo para além das perspectivas europeias? Para tanto buscou-se
responder ao problema por meio de uma abordagem dialética a partir da compreensão
qualitativa dos estudos de matriz cosmopolita. Quanto à análise de objetivos, esta foi
realizada de forma exploratória. Foram utilizadas como procedimentos as ferramentas
bibliográfica e documental.
Neste primeiro momento se apresentará pontos importantes da teoria
cosmopolita kantiana, em especial o seu projeto para a paz. Sendo este um trabalho
jurídico, o pensamento kantiano se destaca, pois Kant inaugura (mas não finaliza) um
projeto cosmopolita jurídico.
Em seguida, o presente estudo irá trazer ao debate reflexões cosmopolitas de
autores descoloniais. Por fim, partindo-se da reflexão de que o cosmopolitismo deve
ser considerado inteiramente aberto e não pré-determinado ou excluído pela
definição de qualquer sociedade ou discurso em particular (POLLOCK, 2002) -
apresentar-se-á as contribuições que a interculturalidade pode trazer aos
cosmopolitismos. Oferecer-se-á
AS INSUFICIÊNCIAS DO COSMOPOLITISMO KANTIANO
Os três principais textos kantianos que abordam a temática do cosmopolitismo
são Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita; Sobre a
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expressão concorrente: Isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática; e À
Paz Perpétua: um projeto filosófico.
Na primeira delas, Kant (1986) entende que as ações humanas são
determinadas por leis naturais. Assim, ao longo da história humana, estaríamos nos
direcionando rumo à uma cidadania mundial. A cidadania mundial e o cosmopolitismo
são, assim, pontos de chegada, algo a se alcançar.
Nesse aspecto, a principal conclusão kantiana dessa obra está em sua nona e
última proposição. Kant (1986) entende que é possível elaborar estudos que explicam a
história mundial segundo esse plano natural que objetiva a perfeita associação civil do
gênero humano sob a regência de um direito mundial. Ademais, Kant acredita que
esses estudos possuem a capacidade de desenvolver o cosmopolitismo.
Em Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correto na teoria mas nada vale
na prática, Kant (s.d.) repete a ideia de que o cosmopolitismo se trata da busca pelo
bem do gênero humano em seu conjunto, devendo ser alcançado através do progresso
das gerações de todos os tempos futuros.
Para Kant (s.d.), a miséria resultante das guerras permanentes entre os Estados
os levará, ainda que contra vontade, a ingressar numa constituição cosmopolita, um
estado jurídico de federação, segundo um direito das gentes comuns. Nesse sentido
afirma: Em nenhum lugar a natureza humana aparece menos digna de ser amada do
que nas relações mútuas entre povos inteiros. Nenhum Estado, em relação a outro, se
encontra um instante seguro quanto à sua independência ou propriedade.
A vontade de se subjugarem uns aos outros ou de empequenecerem o que é
seu está sempre presente e o armamento para a defesa, que muitas vezes torna a
paz ainda mais opressiva e mais prejudicial para a prosperidade interna do que a
própria guerra, jamais pode afrouxar. Ora, para tal situação nenhum outro remédio é
possível a não ser (por analogia com o direito civil ou político dos homens singulares) o
direito das gentes, fundado em leis públicas apoiadas no poder, às quais cada Estado se
deveria submeter (KANT, s.d., p. 45-46).
Importante, ainda, fazer menção à ideia de cosmopolitismo prevista em
Anthropology from a pragmatic point of view: O caráter da espécie, como é bem
conhecido pela experiência de todos os tempos e todas as nações, é a seguinte. A raça
humana considerada coletivamente (como toda a espécie humana) é um grande
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número de pessoas vivendo sucessivamente e simultaneamente. Eles não podem viver
sem uma coexistência pacífica e, ainda assim, não podem evitar desentendimentos
contínuos entre si.
Consequentemente, eles se sentem destinados pela natureza a se desenvolver,
por meio da compulsão mútua e das leis escritas por eles, em uma sociedade
cosmopolita (cosmopolitismus) que é constantemente ameaçada pela dissensão, mas
geralmente progride em direção a uma coalizão. A sociedade cosmopolita é em si
mesma uma ideia inalcançável, mas não é um princípio constitutivo (que espera a paz
entre as ações e reações mais vigorosas dos homens). É apenas um princípio regulador
que exige que nos rendamos generosamente à sociedade cosmopolita como destino da
raça humana; e isso não sem bases razoáveis para supor que haja uma inclinação
natural nessa direção (KANT, 1996. p. 249).
Na obra “Para a paz perpétua”, Kant (2006) estabelece condições importantes
ao Direito Cosmopolita: este não se trata de mera filantropia; e hospitalidade significa
que o estrangeiro não deve ser tratado de forma hostil, apenas por encontrar-se em
território alheio. Para Kant a existência de um Direito Cosmopolita não se trata de uma
representação fantástica nem extravagante. Em realidade, o Direito Cosmopolita
completa o Direito Político e do Direito de Gentes em um Direito Público da
Humanidade, “(...) sendo um complemento da paz perpétua, ao constituir-se em
condição para uma contínua aproximação a ela” (KANT, 2006, p. 82).
Alguns apontamentos são necessários acerca da referida obra kantiana. O
primeiro deles se refere à proximidade com a ideia de soberania absoluta da época,
que, atualmente, parece estar superada. Tal entendimento se em razão da própria
existência do direito internacional contemporâneo, que possui mecanismos de exigir o
cumprimento das normas internacionais. Alguma parcela dessa soberania se encontra
protegida, todavia, através de princípios gerais do direito internacional como a não
intervenção em assuntos internos e a autodeterminação. Contudo, mesmo esses
princípios se contrastam, por exemplo, com a atuação das empresas transnacionais,
que desafiam as fronteiras estatais, quando não interferem nos interesses dos próprios
Estados.
É também importante ressaltar que, na contemporaneidade, em que pese a
Carta da ONU não proíba a existência de exércitos permanentes, em seu Artigo 2
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estabelece que seus membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por
meios pacíficos, devendo evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da
força , permitida, todavia, em casos de legítima defesa, conforme o Artigo 51 .
Outrossim, ressalta-se que a limitação dos meios utilizáveis durante a guerra é,
contemporaneamente, regulada pelo jus in bellum, o Direito Internacional Humanitário
DIH. Conforme apontado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha CICV (s.d.), o
DIH tem fins genuinamente humanitários, objetivando limitar o sofrimento causado
pela guerra, “independe de questões sobre a justificativa ou os motivos para a guerra,
ou a prevenção da mesma - áreas cobertas pelo jus ad bellum”.
No que se refere aos três artigos definitivos pensados por Kant para alcançar a
paz perpétua, Galindo (2014, p. 82) afirma que estes exigem esforços a serem
empreendidos em três dimensões jurídicas: (...) o direito interno (Primeiro Artigo: A
Constituição civil em cada Estado deve ser republicana”), o direito internacional
(“Segundo Artigo: O direito internacional deve fundar-se em um federalismo de
Estados livres”), e o chamado direito cosmopolita (“Terceiro Artigo: O direito
cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal”). O não
cumprimento de qualquer um dos três dispositivos põe certamente em perigo a
instauração de uma paz perpétua.
Assim, identifica-se que a proposta kantiana para se alcançar a paz não é
apenas interna, por meio da instauração de repúblicas. O seu pensamento alcança o
relacionamento entre Estados e indivíduos para além das fronteiras do Estado
(GALINDO, 2014). Nesse aspecto, Kant realiza uma projeção do direito interno para que
o direito internacional e o direito cosmopolita sejam locais de promoção da paz. no
que se refere ao direito cosmopolita, que se aplica nos limites da hospitalidade
universal, este é dependente do direito interno e do direito internacional (um
complemento necessário). De tal modo, a aplicabilidade do direito cosmopolita
pressupõe um modelo de organização do poder fundado no Estado. Sem ele (o
Estado), o direito cosmopolita não conseguirá ser operado” (GALINDO, 2014, p. 83).
Galindo (2014, p. 83) aponta que, ainda que Kant tenha rejeitado de forma
expressa a existência de um Estado mundial, ele lança mão de uma analogia
doméstica: “(...) Estados precisam se unir em uma federação assim como os indivíduos
se uniram para formar um Estado (que deve evoluir para a forma republicana). A
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federação de Estados kantiana, embora não seja de imposição obrigatória os Estados
decidiram se nela entrariam ou mesmo dela sairiam teria o condão de repelir a
guerra, estipulando uma ordem coercitiva para os inimigos da paz”.
Arango (2017) aponta que a categoria de direito cosmopolita é uma das
inovações mais importantes de Kant, uma vez que o autor deixa claro que este é um
artigo se trata de direito, não mera filantropia. De tal modo, evidencia-se que Kant
coloca os esforços para estabelecer a paz no direito, não apenas na moral.
Por outro lado, Arango (2017) também aponta que limitar o cosmopolitismo ao
tratamento hospitaleiro não parece ser suficiente para regular a interdependência dos
seres humanos em um mundo cada vez mais conectado. Tampouco o dever de
hospitalidade parece satisfazer as exigências dos princípios republicanos sobre os quais
o próprio Kant funda a paz entre os povos.
Conforme apontado por Mignolo (2010), a ideia e o horizonte de uma
sociedade cosmopolita kantiana são preconizados com fundamento na relação entre a
autoridade, a liberdade e o direito. Considera-se, assim, quatro combinações possíveis:
direito e liberdade sem autoridade (anarquia); direito e autoridade sem liberdade
(despotismo); autoridade sem liberdade e direito (barbárie); e autoridade, com
liberdade e direito (república). Kant privilegia a última. Assim, os ideais cosmopolitas
pressupõem a organização republicana da sociedade em que a autoridade anda de
mãos dadas com a liberdade e o direito.
É importante ressaltar que por volta de 1700, as relações sociais (hierarquia)
dentro dos estados-nação eram definidas horizontalmente com base na
superordenação e subordinação das relações de classe (MIGNOLO, 2010). O modelo
planetário de sociedade era baseado nas relações hierárquicas dentro dos
estados-nação e era explicitamente cosmopolítico (uma vez que apresentava um
projeto global). Através das justificativas fornecidas por Kant a imposição de hierarquia
nas "classes inferiores" pela "melhor espécie" de pessoas seria arbitrária e egoísta.
Como a hierarquia espelhava a estrutura da natureza, a autoridade europeia era
autoexplicativa, autojustificadora e aparentemente racional (MIGNOLO, 2010).
Assim, a crença filosófica de que a natureza obedece a ''leis '' matemáticas que
garantirão sua estabilidade fornece o fundamento de que o hegemônico está
hierarquicamente superior ao subalternizado porque aquele que domina está em
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situação mais evoluída (MIGNOLO, 2010). Desse modo, se por um lado Kant estava
convencido de que o aperfeiçoamento moral da humanidade levaria ao
cosmopolitismo, sua visão se limita a crer que apenas um caminho, uma história,
um progresso, um cosmopolitismo.
Se aqui se aponta a insuficiência do cosmopolitismo kantiano, é importante
ressaltar que não se acredita que esta deve ser abandonada, tampouco rejeitada em
sua totalidade. Conforme exposto por Appiah (2007), a noção de cosmopolitismo
carrega dois principais valores. O primeiro corresponde à ideia de que temos
obrigações com os outros, obrigações que ultrapassam aquelas com quem nos
relacionamos pelos laços de amizade e de espécie, ou mesmo os laços mais formais de
uma cidadania compartilhada.
O segundo corresponde ao reconhecimento da importância da vida. Não
apenas a vida humana, mas de vidas humanas particulares, o que significa ter interesse
nas práticas e crenças que lhes conferem significado. O cosmopolitismo reconhece que
as pessoas são diferentes e que muito a aprender com nossas diferenças. O
pensamento compartilhado entre os cosmopolitas é que nenhuma lealdade local
poderia justificar o esquecimento de que cada ser humano tem responsabilidades para
com os outros. Nesse sentido, afirma: “(...) Por haver tantas possibilidades humanas
que valem a pena explorar, não esperamos nem desejamos que todas as pessoas ou
todas as sociedades convirjam para um único modo de vida. Quaisquer que sejam
nossas obrigações para com os outros (ou as deles para conosco), eles geralmente têm
o direito de seguir seu próprio caminho” (APPIAH, 2007. p. XV).
Haverá momentos em que esses dois valores preocupação universal e
respeito pela diferença entrarão em conflito. Em certo sentido, como aponta Appiah
(2007), cosmopolitismo é o nome não da solução, mas do desafio. Conforme apontado
por de Menezes (2016), até o século XX o cosmopolitismo representava muito mais
uma categoria filosófica kantiana, sendo constantemente associada a uma ideia de um
futuro utópico. Segundo o autor, aparentemente não haveria um espaço fático e
jurídico propício para o estudo do Direito Cosmopolita.
Há, entretanto, uma virada de chave estimulada por fatores como a aceleração
do fenômeno da globalização e a formação de redes globais; a institucionalização da
sociedade internacional; a percepção dos riscos à humanidade causadas pelas
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pandemias e pelos desequilíbrios ambientais; e pelo ressurgimento do pluralismo
jurídico. Essa virada de chave desenvolveu um espaço de discussão no âmbito
acadêmico, o que permitiu, ao que parece, o amadurecimento dos pressupostos
materiais necessários para que o cosmopolitismo seja reconhecido como um
fenômeno jurídico e não apenas uma categoria filosófica (DE MENEZES, 2016). É o que
se pretende abordar no próximo tópico.
Importantes pensadores contemporâneos têm contribuído para a elaboração de
arcabouços teóricos que buscam revisitar Kant (SALDANHA, 2016), atualizando-o para
um Direito Cosmopolita mais atual. Tais perspectivas não são necessariamente
unânimes. Em realidade são múltiplas, permitindo-se compreendê-lo como
cosmopolitismo filosófico, político, jurídico, sociológico, entre outros (MIGNOLO,
2010).
Para Mignolo (2010), o interesse no cosmopolitismo a partir da década de 1990
se em razão de quatro (principais) fatores: o primeiro se refere às preocupações e
limites anteriores generalizados do nacionalismo. O nacionalismo era o que o
cosmopolitismo estava tentando superar. Surgem propostas de diálogos interculturais e
planetários como novos caminhos para o futuro, ao invés de se defender e delimitar as
fronteiras das nações. A imigração contribuiu para o aumento do cosmopolitismo.
Enquanto os nacionalistas percebiam a imigração como um problema, os cosmopolitas
a viam como uma abertura para futuros globais.
O segundo é a necessidade de se construírem argumentações que se afastam
do nacionalismo, mas que não se limitem à visão hegemônica de uma globalização
neoliberal e econômica.
O terceiro fator, relacionado com os dois primeiros, é o desenvolvimento de
perspectivas multiculturais de concepção liberal que concentravam o cosmopolitismo
na figura do indivíduo, que era convidado a se ver como um cidadão do mundo,
incorporando várias "identidades".
O quarto fator, também compatível com os dois primeiros, mas distinto do
terceiro, foi a proposta legal de colocar na agenda internacional um ‘‘cosmopolitismo
de baixo para cima’’ que acabou se conectando com a agenda do Fórum Social
Mundial. Conforme apontado por Saldanha (2020a, p. 231), o reaparecimento do
cosmopolitismo na academia alcança uma intensidade sem precedentes em razão da
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emergência de uma nova era na história do capitalismo global “(...) que se posiciona na
confluência entre a idade da informação e da comunicação, ou seja, a do
desenvolvimento extraordinário da técnica e a do modelo econômico neoliberal”.
As construções teóricas sobre o cosmopolitismo e o direito cosmopolita se
contextualizam em uma sociedade internacional repleta de tratados internacionais de
direitos humanos, costumes e princípios gerais do direito internacional que também
normatizam a proteção da pessoa humana e a sua valorização. Ademais, os estudos
contemporâneos sobre esse direito cosmopolita acontecem na seara de um
ordenamento jurídico internacional que reconhece a personalidade jurídica
internacional do ser humano; e que estabeleceu cortes transnacionais de proteção a
esses direitos (MENEZES, 2016).
De acordo com Saldanha e Mello (2017), a Sociedade Internacional
contemporânea é caracterizada pela transnacionalidade, uma vez que a figura do
Estado é marcada pela intensa permeabilidade e porosidade de suas fronteiras. Assim,
o direito tradicionalmente produzido pelo Estado é marcadamente transformado pelo
pluralismo normativo e pela internormatividade. De tal modo, identifica-se que os
Estados e suas ordens jurídicas internas são atravessados por fluxos normativos
diversos, não sendo mais capazes de controlá-los ou contê-los.
Nesse sentido, Mignolo (2000) tenta responder ao questionamento: de que
forma o cosmopolitismo deve ser concebido em relação à globalização, capitalismo e
modernidade? Para tanto, o autor entende que, se por um lado o imaginário
geopolítico alimentado pelos termos e processos de globalização reivindica a
homogeneidade do planeta de cima - econômica, política e culturalmente; por outro o
termo cosmopolitismo” tem sido utilizado como um contraponto à globalização, ainda
que não necessariamente represente uma globalização a partir de baixo.
A globalização de baixo para cima, esclarece, invoca as reações à globalização
daquelas populações e áreas geo-históricas do planeta que sofrem as consequências
da economia global (MIGNOLO, 2000). Ou seja, existem histórias locais que planejam e
projetam designs globais (provindas do Norte Global) e outras que são obrigadas a
conviver com eles (o Sul Global). O cosmopolitismo não se alinha facilmente a nenhum
dos lados da globalização, embora o próprio termo implique um projeto global. Assim,
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propõe-se entender o cosmopolitismo em relação às alternativas provindas do Sul
Global.
De tal modo, Ramón Grosfoguel (2014) questiona a possibilidade de se formular
um cosmopolitismo crítico que extrapole o nacionalismo e o colonialismo. Para tanto, é
imperativo um cosmopolitismo que reconheça as diferenças da sociedade mundial, por
meio da alteridade. É necessário que se proponha uma conceptualização cosmopolita
descolonial alternativa do sistema-mundo. Surge, então, a transmodernidade como
projeto de libertação político, econômico, ecológico, erótico, pedagógico, religioso,
etecetera (DUSSEL, 2000).
Neste sentido, Grosfoguel (2014, p. 403-404) entende que: “(...) a
transmodernidade de Dussel visa concretizar o inacabado e incompleto projeto
novecentista da descolonização da América Latina. Em vez de uma única modernidade,
centrada na Europa e imposta ao resto do mundo como um desenho global, Dussel
propõe que se enfrente a modernidade eurocentrada através de uma multiplicidade de
respostas críticas descoloniais que partam das culturas e lugares epistémicos
subalternos de povos colonizados de todo o mundo. (...) A transmodernidade seria
equivalente à diversalidade enquanto projeto universal’, que é o resultado do
“pensamento crítico de fronteira” enquanto intervenção epistémica dos diversos
subalternos (Mignolo, 2000). As epistemologias subalternas poderiam fornecer (...)
uma diversalidade’ de respostas para os problemas da modernidade, conduzindo à
‘transmodernidade’”.
Neste mesmo caminho, Santos (2019, p. 26-27) apresenta um cosmopolitismo
subalterno, da base para o topo, que objetive a promoção da pluriversalidade,
consubstanciando-se em um pensamento “(...) que promove a descolonização
potenciadora de pluralismos articulados e formas de hibridação libertas do impulso
colonizador que no passado lhes presidiu, tais como a crioulização e a mestiçagem”.
Ainda, Mignolo (2011) apresenta o cosmopolitismo crítico ou descolonial, que,
para ele, deve ser pensado como localismo cosmopolita. Segundo o autor, se uma
ordem mundial cosmopolita é pensável e desejável, ela não pode ser universal, mas
deve ser pluriversal.
O que essas propostas têm em comum é o entendimento de que o
cosmopolitismo não pode ser uma ordem global de cima para baixo, nem pode
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permitir as atuais hierarquias coloniais/raciais globais. Repensam, assim, o mundo
colonial/imperial/moderno a partir da diferença colonial. Essa pluriversidade negada
pela história relatada pelo pensamento hegemônico é a seiva dos cosmopolitismos
provindos do Sul Global e ilustram que é possível imaginar alternativas distintas ao
pensamento hegemônico neoliberal, estimulando um processo sem precedentes de
reformas legais e novos regimes jurídicos internacionais de baixo para cima.
Assim sendo, conforme apontado por Saldanha (2018) a fundamentação
jurídica do cosmopolitismo es baseada nas normas internacionais, transnacionais e
regionais de direitos humanos e na cooperação, que é necessária para a concretização
dos valores comuns da humanidade. E a cooperação pressupõe que seja a
solidariedade repaginada para expressar não apenas os interesses coletivos com a
preservação do planeta e das gerações futuras, mas que, fundamentalmente,
transforme-se em um dever.
A POSSIBILIDADE DE PENSAR UM COSMOPOLITISMO O-KANTIANO
Para que os ideais cosmopolitas possam ser mantidos na contemporaneidade, é
preciso que se reconheça que a sua própria fundação como idealizado por Kant estava
em cumplicidade com a formação das potências imperiais europeias e de expansão
europeia na América, África e Ásia, bem como com a continuação da Europa nos
Estados Unidos. Ou seja, para manter ideais cosmopolitas, é preciso descolonizar o
cosmopolitismo, o que significa caminhar em direção a uma ordem cosmopolita
descolonial não mais modelada na lei da natureza descoberta pela narrativa científica.
Assim aponta Mignolo (2010. p. 117), “(...) o cosmopolitismo descolonial será o
devir de uma ordem mundial universal construída sobre e residindo nas fronteiras
globais da modernidade/colonialidade (...)”. No presente tópico, pretende-se dar
alguns passos para compreender de que forma o cosmopolitismo pode superar a
agenda oculta da modernidade.
Propondo que a globalização pode ser compreendida enquanto um conjunto de
projetos para administrar o mundo, enquanto o cosmopolitismo se trataria de um
conjunto de projetos voltados para o convívio planetário, Mignolo (2000) entende que
o primeiro desenho global do mundo moderno foi o cristianismo, causa e consequência
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da incorporação das Américas à visão global de um orbis christianus. Este desenho
global fez parte do Renascimento europeu e constituiu a modernidade e seu lado
sombrio, a colonialidade.
Em seguida, o desenho global é o da missão civilizadora, que parte do
Iluminismo europeu e de uma nova configuração da relação
modernidade/colonialidade (2000). Possuía o objetivo de civilizar o mundo segundo o
modelo dos modernos Estados-nação europeus.
Os dois desenhos representam projetos cosmopolitas que estiveram em ação
nos dois momentos da modernidade, ainda que com diferenças visto que o primeiro
foi um projeto religioso e o segundo era secular (2000). Os dois, todavia, estavam
ligados à colonialidade e ao surgimento do mundo moderno/colonial, o que, mais uma
vez, demonstra que a colonialidade é a face oculta da modernidade e sua própria
condição de possibilidade.
“(A colonização das Américas nos séculos XVI e XVII, e da África e Ásia nos
séculos XIX e XX, consolidou uma ideia de Ocidente: uma imagem geopolítica que exibe
movimento cronológico. Três macronarrativas sobrepostas emergem desta imagem. Na
primeira narrativa, o Ocidente se origina temporariamente na Grécia e se move do
noroeste do Mediterrâneo para o Atlântico Norte. Na segunda narrativa, o Ocidente é
definido pelo mundo moderno que se originou com o Renascimento e com a expansão
do capitalismo pelo circuito comercial atlântico. Na terceira narrativa, a modernidade
ocidental está localizada no norte da Europa, onde carrega a marca distintiva do
Iluminismo e da Revolução Francesa. Enquanto a primeira narrativa enfatiza o marco
geográfico Ocidente como a palavra-chave de sua formação ideológica, a segunda e a
terceira vinculam mais fortemente o Ocidente à modernidade (...)” (MIGNOLO, 2000, p.
722).
Nesse sentido, a colonialidade como lado constitutivo da modernidade surge
dessas duas últimas narrativas, que, em consequência, vinculam o cosmopolitismo
intrinsecamente à colonialidade. Mignolo (2000), todavia, esclarece que isso não
significa que seja impróprio conceber e analisar projetos cosmopolitas além desses
parâmetros. Veja-se: “(...) As narrativas de orientação cosmopolita podem ser
gerenciais (o que chamo de projetos globais - como no cristianismo, imperialismo do
século XIX ou globalização neoliberal do final do século XX) ou emancipatórias (o que
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chamo de cosmopolitismo - como em Vitória, Kant ou Karl Marx, deixando de lado as
diferenças de cada um desses projetos), mesmo que alheios ao dizer do povo que se
supõe que sejam emancipados. A necessidade de um cosmopolitismo crítico surge das
deficiências de ambos” (MIGNOLO, 2000. p. 722-723).
Se, por um lado, o discurso dominante enaltece ideias de cristianização,
civilização, progresso, modernização e desenvolvimento, por outro ele esconde que
para que tudo isso aconteça são necessários violência, barbárie, atraso e
subdesenvolvimento. Desde o século XVI, modernidade e colonialidade andam juntas:
não modernidade sem colonialidade, embora os discursos proferidos na perspectiva
da modernidade apresentem a colonialidade não como um fenômeno constitutivo,
mas um derivado. Nesse sentido Mignolo (2005, p. 139) afirma que: “(...) a grande
mentira (ou talvez o grande erro e a grande ignorância, se preferir) é fazer de conta (ou
acredite) que a modernidade vai superar a colonialidade quando, na verdade, a
modernidade precisa da colonialidade para se estabelecer, construir e sobreviver. Não
houve, não existe e não haverá modernidade sem colonialidade (...)”.
Por isso, Mignolo (2005) afirma ser necessário imaginar outro futuro e não mais
a plenitude do projeto incompleto da modernidade, nascido de um cosmopolitismo
não-kantiano, emergente do pensamento de fronteira e não da ordem "natural" dos
Estados-nação. Assim, a integração das diferenças em vez da marginalização do outro
lado das fronteiras é posta como uma possibilidade, uma outra opção, um “paradigma
outro”.
A partir da obra de Mignolo (2005), é possível compreender o cosmopolitismo
crítico como um projeto global que busque a integração das diferenças e a socialização
do poder e não a defesa dos territórios estatais; emergente do diálogo cujo objetivo é a
"libertação" dos laços impostos pela diferença colonial, pela tirania do moderno
pensamento e pós-moderno, alcançando-se uma comunidade em liberdade”.
A comunidade em liberdade’ surge da necessidade vital de pensar ‘nas e das
bordas’ em que sinto que vivo, mas que não são minhas (pelo contrário, são as bordas
que me fazem e não pertencem mim) nem são recentes; foram constituídas ao longo
da formação e configuração do mundo moderno / colonial (do século XV até à data)
(...)” (MIGNOLO, 2005, p. 144).
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Nesse viés, um “paradigma outro" é capaz de designar o espaço desordenado e
potente onde se possibilita realizar um projeto inacabado da modernidade a partir da
colonialidade, como processo permanente de descolonização. Um “paradigma outro"
nos leva a um "cosmopolitismo crítico" que es se construindo nas bordas onde o
pensamento liminar surge tanto da subalternidade quanto da hegemonia atenta,
consciente e aberta à colonialidade (MIGNOLO, 2005). Assim, o pensamento de
fronteira é um dos caminhos possíveis para o cosmopolitismo crítico e para uma utopia
que nos ajuda a construir um mundo onde muitos mundos se encaixam (MIGNOLO,
2005).
Esse cosmopolitismo deve ser pensado a partir da experiência da colonialidade
e não apenas a partir da experiência da modernidade. Assim, a colonialidade não é um
ponto de chegada como a ideia de modernidade ainda é. Pelo contrário, é um ponto de
partida de onde não se sabe ainda aonde chegar, mas que se quer urgentemente
abandonar. Assim, ao contrário do cosmopolitismo Kantiano, o cosmopolitismo crítico
proposto por um “pensamento outro” não apresentará o ponto de chegada, mas o
ponto de partida, de onde se quer sair. O cosmopolitismo crítico proposto é um projeto
para abandonar a violência colonial persistente no projeto neoliberal.
O cosmopolitismo crítico e dialógico caminha em direção à "diversalidade", em
vez de em direção a uma nova universalidade baseada no padrão eurocêntrico
(MIGNOLO, 2000). A diversalidade epistêmica deve ser a base para projetos
cosmopolitas, ou seja, a diversidade como projeto universal deve ser o objetivo, em vez
de almejar um novo universal abstrato e ensaiar uma nova universalidade alicerçada
no legado grego ou iluminista. De tal modo, a diversalidade como horizonte do
cosmopolitismo crítico e dialógico pressupõe um pensamento de fronteira alicerçado
na crítica de fundamentalismos e na fé na acumulação a qualquer custo que sustenta
as organizações da economia capitalista (MIGNOLO, 2000).
A diversalidade (ou diversidade como projeto universal) surge da experiência da
colonialidade do poder e da diferença colonial, devendo ser pensada como um
“paradigma outro” de projetar e imaginar, ética, política, filosófica e juridicamente a
partir de perspectivas subalternas. Deve ser capaz de deslocar os ideais cosmopolitas
universais abstratos (cristãos, liberais, socialistas, neoliberais) que criaram e mantêm o
sistema mundial moderno/colonial. Assim, a proposta do cosmopolitismo crítico é
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pensar a partir das perspectivas de histórias locais que foram obrigadas a lidar com
designs globais. A diversalidade deve ser a sua prática, ao invés de um projeto de uma
sociedade futura e ideal projetada do universal abstrato.
Essa visão, todavia, não é nova. É possível que seja trazido para a fronteira os
pensamentos e cosmovisões outras que não as europeias para um diálogo, a fim de
buscar soluções para questões que enfrentamos hoje. Em meados do século XVI, por
exemplo, muito antes de Immanuel Kant apresentar os seus textos acerca do
cosmopolitismo, a necessidade de normas internacionais havia emergido na
consciência dos cristãos ocidentais, que buscavam resolver dois problemas
inter-relacionados: em que medida os povos do continente invadido eram humanos e
em que medida, como consequência, eles têm direitos de propriedade.
Conforme apontado por Mignolo (2010), não passava na mente do europeu
pensar que os direitos de propriedade não eram universais, e que nas civilizações inca
e asteca, assim como em outras comunidades existentes no Caribe, os nativos não se
relacionam com a terra como propriedade, mas sim por Mãe Terra (Pachamama era o
nome em Aymará e Quéchua). Vivendo em uma era secular, Kant reformulou a palavra
grega cosmopolis e deu-lhe um significado diferente. Ocorre que, conforme apontado
por Mignolo (2010), os filósofos gregos não possuíam a mesma construção de
conhecimento da ciência moderna, da guerra religiosa cristã e do colonialismo imperial
moderno. O cosmopolitismo grego se aproxima mais do quechua-Aymara
Tawantinsuyu (o mundo [cosmos e a cidade] organizado em quatro suyus ou partes) do
que com o cosmopolitismo kantiano.
É possível pensar que Tawantinsuyu poderia ter servido igualmente bem para
imaginar uma organização global e social da espécie humana (MIGNOLO, 2010). Essa
era, inclusive, a proposta de Guaman Poma de Ayala (2009), um cronista de
ascendência inca da época do Vice-Reino do Peru, que em 1516 cerca de 250 anos
antes de Kant apresentou sua Nova Crônica e Bom Governo, propondo à Filipe III uma
organização de coexistência mista do domínio inca e espanhol no vice-reinado do Peru
e no Tawantinsuyu inca.
“(...) Guaman Poma conhecia sua própria história e a história do mundo que lia
em autores espanhóis, principalmente aqueles que escreviam sobre o Novo Mundo. A
organização interna de Tawantinsuyu ele resolveu dando um suyu para cada uma das
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etnias existentes em sua época: espanhóis, índios, mouros e negros. Por outro lado, o
mundo foi remapeado de acordo com Tawantinsuyu: ele desenhou um mapa e o
dividiu em duas partes. Na parte superior, ele localizou Tawantinsuyu e na parte
inferior, a Espanha. No entanto, os espanhóis não se viram abaixo de Tawantinsuyu e
prevaleceram (...)” (MIGNOLO, 2010. p. 118.).
Prevalecer, esclarece Mignolo (2010), não quer dizer que as forças da história,
conhecimentos e lutas foram mortas para sempre. As discussões ao redor de um
estado plurinacional e o processo contemporâneo de reescrita a Constituição na Bolívia
e no Equador representam continuação do problema que Guaman Poma viu emergir
500 anos atrás, quando o território de Incas e Aymaras se tornou uma mistura de
etnias.
Ressalta-se que o tratado político descolonial de Guaman Poma não era uma
proposta de coexistência com o inimigo. Em realidade, a própria ideia do inimigo não
estava em sua mente. Nesse sentido, Mignolo aponta que um dos primeiros passos do
cosmopolitismo crítico descolonial é livrar-se da ideia de amigos e inimigos, em que a
política encontra sua razão de ser, onde a proposta de Carl Schmitt “(...) faz sentido
com a ‘teologia política’ europeia, isto é, na secularização da teologia cristã, na qual o
mundo estava dividido entre o cristianismo e aqueles bárbaros que o odeiam e
querem destruí-lo’ (...)” (MIGNOLO, 2010. p. 118.). É por isso que o presente trabalho
propõe, no próximo tópico, a condição de um diálogo intercultural para o
cosmopolitismo crítico proposto por Mignolo.
A INTERCULTURALIDADE COMO CONDIÇÃO PARA O DIÁLOGO
Segundo Walsh (2008), o pluricultural e o multicultural são termos descritivos
que almejam indicar a existência de múltiplas culturas em um determinado espaço
geográfico, provocando assim, o reconhecimento, a tolerância e o respeito à
diversidade.
O termo “multicultural” possui suas raízes em Estados ocidentais e é de maior
uso global, apontando para um conjunto de culturas singulares sem relação entre si e
dentro de um quadro de uma cultura dominante, orientando as políticas de inclusão
estatais e transnacionais dentro de um modelo neoliberal que busca a inclusão no
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mercado, tendo sido introduzido no final dos anos 1980 e na década de 1990 e sendo
utilizado a a contemporaneidade (WALSH, 2008). É caracterizado por um relativismo
cultural que elimina a dimensão relacional e esconde a permanência das desigualdades
sociais (WALSH, 2008).
Nesse sentido, o multiculturalismo é compreendido enquanto o
reconhecimento da diversidade cultural por governos, Estados, Organizações
Internacionais e Não-governamentais, efetuado por meio de uma política de inclusão
que, na maioria das vezes, é vinculada aos interesses da ordem dominante,
permanecendo dentro da lógica do neoliberalismo e de seu projeto para pacificar a
resistência, fragmentar os movimentos e trazer os excluídos para a estrutura
consumidora do capitalismo global (WALSH, 2008). O termo multiculturalismo “(...)
instala e torna visível uma geopolítica do conhecimento que tende a fazer desaparecer
e a obscurecer as histórias locais, além de autorizar um sentido ‘universal’ das
sociedades multiculturais e do mundo multicultural” (WALSH, 2019, p. 21).
Ademais, conforme exposto por Bragato, Barreto e Silveira Filho (2017) o
multiculturalismo expressa um discurso universalista dos direitos humanos de forma
curta e insuficiente, uma vez que, apesar de assumir a diversidade cultural, não cede o
padrão de superioridade moral das sociedades liberais-individualistas do Ocidente.
Ademais, em razão de sua base liberal, o multiculturalismo não possui a capacidade de
tingir as particularidades dos grupos subalternizados pelo mesmo liberalismo. De
acordo com Bragato, Barreto e Silveira Filho (2017, p. 56): (...) tal discurso não se
preocupa com as estruturas de poder que regem as relações entre um grupo e outro, o
que torna ineficiente a política de reconhecimento que defende para combater o
discurso moderno/colonial dos direitos humanos. Por isso, o respeito pleno aos direitos
humanos não se pode efetivar por meio de políticas multiculturais que requerem a
subordinação dos grupos tolerados. Sem dúvidas, é possível afirmar que nessas
políticas persiste a ideia da inferioridade cultural e étnico-racial dos grupos
diferenciados e tolerados e, por conseguinte, sua exclusão e opressão.
Por outro lado, o termo “pluricultural” é mais utilizado na América do Sul e
busca refletir a particularidade e a realidade da região onde povos indígenas e negros
conviveram e convivem com descendentes dos europeus colonizadores por séculos e
onde a mestiçagem e a miscigenação racial desempenharam um papel significativo
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(WALSH, 2008). O pluricultural indica uma coexistência de culturas no mesmo espaço
territorial, embora sem uma profunda inter-relação equitativa (WALSH, 2008).
Noutro giro, a interculturalidade, conforme apontado por Walsh (2008) ainda
não existe: é algo para construir. Nessa perspectiva, não é uma condição existente ou
algo pronto e acabado. A interculturalidade vai além do pluri e do multiculturalismo,
que acabam por indicar apenas a existência de “muitas” culturas em um determinado
contexto ou espaço, enquanto a interculturalidade pressupõe relações mútuas (ALBO;
GALINDO, 2012).
Segundo Walsh (2019) o conceito de interculturalidade surge na América Latina
e assume, particularmente no Equador, um significado ligado a geopolíticas de lugar e
espaço, compreendendo as resistências dos povos indígenas e dos negros, produzindo
um projeto social, cultural, político, ético e epistêmico orientado em direção à
descolonialização e à transformação. A autora aponta que a interculturalidade vai além
do respeito, tolerância e reconhecimento da diversidade; em realidade, por meio dela
se aponta e se encoraja um processo e projeto político-social voltado para a construção
de novas e diferentes sociedades, relacionamentos e condições de vida. Walsh (2008)
ainda ressalta que não são apresentadas apenas novas condições econômicas, mas
também as que dizem respeito à cosmologia da vida em geral, incluindo o
conhecimento e o saber, a memória ancestral, a relação com a mãe natureza e a
espiritualidade, entre outros. Aponta-se e se representa “(...) processos de construção
de um conhecimento outro, de uma prática política outra, de um poder social (e
estatal) outro e de uma sociedade outra (...)” (WALSH, 2019, p. 09), que são pensados
por meio da práxis política. Em si, a interculturalidade faz parte do problema das
relações e condições históricas e atuais, de dominação, exclusão, desigualdade e
iniquidade, bem como do conflito que essas relações e condições engendram, ou seja,
a "colonialidade".
Nesse sentido, Albó e Galindo (2012) afirmam que a interculturalidade possui a
diversidade enquanto um ponto de partida que traz uma oportunidade uma vez que
uma perspectiva plural e ao mesmo tempo aberta ao diálogo costuma ser mais criativa
do que uma imposição monolítica e unificadora e não um obstáculo a ser superado
sem negar o risco de que isso também pode acontecer, ressaltando a necessidade de
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se zelar para que espécies ou variantes aparentemente mais bem-sucedidas de um
determinado ponto de vista sejam universalizadas em detrimento das demais.
É importante ressaltar que o projeto neoliberal começou, a partir dos anos
1990, a cooptar e utilizar o termo interculturalidade, principalmente em Estados onde
o termo havia sido cunhado e empregado pelos movimentos indígenas enquanto um
projeto contra-hegemônico de baixo para cima (WALSH, 2018). Desse modo, a
interculturalidade começou a ser utilizada dentro da linguagem de Organizações
Internacionais neoliberais como o Banco Mundial, especialmente em suas políticas
relacionadas aos povos indígenas, bem como na linguagem de políticas de Estado e
Constituições neoliberais (WALSH, 2018).
O uso do termo pelo projeto dominante não permite compreender a
interculturalidade enquanto transformadora nem crítica da ordem social, política e
econômica estabelecida (WALSH, 2018). Em realidade sua atuação passa a ser
funcional para a essa ordem e para a lógica multicultural do capitalismo, que tem por
objetivo a expansão do neoliberalismo e do mercado. Esta “interculturalidade
funcional/utilitarista” se constituiu em um modo complexo de dominação, que é capaz
de capturar, cooptar, pacificar, desmobilizar e dividir movimentos, coletivos e
lideranças, além de impelir o individualismo a complacência e a indiferença,
perpetuando de forma intensa e mais complexa o capitalismo e a colonialidade
(WALSH, 2018).
Por outro lado, Walsh (2018) aponta que a visão descolonizadora crítica da
interculturalidade contrasta com a visão funcional, exigindo uma mudança radical na
ordem social hegemônica e em sua base fundamental capitalista e moderna/colonial. A
interculturalidade crítica proposta por Walsh torna visíveis legados vividos e longos
horizontes de dominação, opressão, exclusão e diferença colonial (ontológica, política,
econômica, cultural, epistêmica, cosmológica e de existência) e as manifestações
desses legados em estruturas e instituições sociais, incluindo o próprio Estado.
Desse modo, a interculturalidade que este trabalho propõe se trata da desta
interculturalidade crítica e descolonial. O principal desafio é propor um projeto
transformador capaz de reconceitualizar e refundar estruturas e instituições colocando
diferentes lógicas culturais, práticas e formas de conhecer, pensar, agir, ser e viver em
relações equitativas, ainda que conflitantes. Walsh (2018), nesse sentido, aponta que
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interculturalidade propõe um processo transversal que não elimina a diferença, pelo
contrário, as diferenças socioculturais, ancestrais, políticas, epistêmicas, linguísticas e
existenciais são afirmadas enquanto termos coletivos e comunitários, e entendidas
como contributivas para a criação de novas compreensões, coexistências,
solidariedades e colaborações.
A interculturalidade, assim, tem suas bases na necessidade de uma
transformação radical das estruturas, instituições e relações da sociedade. Sem a
ocorrência dessa transformação radical, a interculturalidade é mantida unicamente no
nível funcional e individual, sem afetar efetivamente a colonialidade da estruturação
social e, portanto, o carácter monocultural, hegemônico e colonial do Estado (2008).
A proposta intercultural não corresponde ao mero reconhecimento, tolerância e
incorporação do diferente em uma matriz e estrutura dominantes estabelecidas;
pelo contrário, ela implode a partir da diferença nas estruturas coloniais de poder
como um projeto que tem por objetivo reconceituar e refundar as estruturas e trazer à
tona lógicas, práticas e formas culturais distintas de pensar, agir e viver (WALSH, 2008).
Desse modo, propõem-se um processo ativo e permanente de diálogo onde os grupos
e indivíduos não percam suas diferenças, mas que, por meio de suas diferenças se cria
novas compreensões, convivências e solidariedade.
De tal modo, é a partir da diferença colonial e da luta descolonial, da
particularidade das histórias locais e dos lugares de enunciação políticos, éticos e
epistêmicos, que a interculturalidade estende o seu projeto de uma lógica outra, uma
transformação concebida e impulsionada por aqueles que habitam a zona colonial
(WALSH, 2018).
Uma outra característica que diferencia a interculturalidade do
multiculturalismo e do pluriculturalismo é que ela não se trata de uma criação
acadêmica para análise de um caso específico. Em realidade, a interculturalidade surgiu
das lutas dos povos indígenas do equador na década de 1990, provém, assim, de um
movimento étnico-social mais do que de uma instituição acadêmica e, por isso mesmo,
reflete uma lógica que não se baseia nos legados coloniais eurocêntricos e nem nas
perspectivas da modernidade, contestando as discussões relativistas que se efetuam a
partir da diferença cultural e do multiculturalismo (WALSH, 2019).
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A primazia do Equador na formulação do conceito de interculturalidade se
em razão da sua aplicação enquanto princípio-chave do projeto político do movimento
indígena, questionando a realidade sociopolítica do neocolonialismo refletido nos
modelos de Estado, democracia e nação (WALSH, 2019), conceitos, estes, chaves para o
próprio Direito Internacional. Promove-se, de tal modo, a discussão sobre esses
modelos, dentro de um processo de descolonialização e transformação.
A interculturalidade, representa, assim, uma ruptura epistêmica fundamentada
na dominação, exploração e marginalização, que são ao mesmo tempo constitutivas,
como também consequências da colonialidade, se constrói desde uma lógica que parte
da particularidade da diferença colonial, mas que não se fixa nela (WALSH, 2019). A
lógica que a interculturalidade propõe trabalha para transgredir as fronteiras do que é
hegemônico, interior e subalternizado. Em outras palavras: “(...) a lógica da
interculturalidade compromete um conhecimento e pensamento que não se encontra
isolado dos paradigmas ou das estruturas dominantes; por necessidade (e como um
resultado do processo de colonialidade) essa lógica "conhece" esses paradigmas e
estruturas. E é através desse conhecimento que se gera um "outro" conhecimento. Um
pensamento “outro”, que orienta o programa do movimento nas esferas política, social
e cultural, enquanto opera afetando (e descolonizando), tanto as estruturas e os
paradigmas dominantes quanto a padronização cultural que constrói o conhecimento
"universal" do Ocidente” (WALSH, 2019, p. 15-16).
Ressalta-se que a interculturalidade não pode ser confundida com a mescla,
hibridização e apropriação de formas de conhecimento, tampouco com a criação de
um “melhor dos dois mundos”. Em realidade ela propõe a construção de um novo
espaço que permita uma inter-relação epistemológica, uma lógica radicalmente
distinta capaz de construir uma alternativa ao modelo hegemônico do Estado,
possibilitando uma nova organização, sociedade, educação e governo, na qual a
diferença não seja aditiva, mas constitutiva, permitindo se imaginar uma novo modelo
de Estado (WALSH, 2019).
Acrescenta-se, ainda, conforme apontado por Walsh (2019), que a
interculturalidade não pode se restringir às perspectivas indígenas, pois, desse modo,
estar-se-ia diante de uma insuficiência no que concerne à subalternização de outras
populações, como a própria população negra, devendo, portanto, reconhecer e
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visibilizar os conflitos racializados entre distintos grupos, incluídos indígenas e negros.
Evidencia-se, assim, que a colonialidade do poder não se trata de uma entidade
homogênea que é igualmente experienciada por todos os grupos subalternizados, bem
como que a interculturalidade não é um conceito isolado das sobreposições da
diferença e das histórias locais. Portanto, “(...) a interculturalidade faz parte desse
pensamento "outro" que é construído a partir do particular lugar político de
enunciação do movimento indígena, mas também de outros grupos subalternos; um
pensamento que contrasta com aquele que encerra o conceito de multiculturalismo, a
lógica e a significação daquele que tende a sustentar os interesses hegemônicos”
(WALSH, 2019, p. 20) .
Neste sentido, o professor Júlio Cesar de Tavares propõe uma abordagem que
enfatiza uma identidade afrodescendente resultante da dinâmica intercultural das
múltiplas experiências afrodiaspóricas. Tavares (2010) aponta que através da chamada
Diáspora Africana se tem ampliado a discussão acerca da valorização e da inclusão
social do negro, partindo do estabelecendo de uma nova agenda política presente em
vários Estados, em especial, latino-americanos. Promove-se, assim, uma nova lógica
que objetiva “(...) agregar o conjunto da população descendente de africanos que não
reside no continente e torná-la consciente, em uma perspectiva comparada, da rede
intercultural na qual se encontra enlaçada (...)”(TAVARES, 2010, p. 79).
Por fim, conforme apontam Bragato, Barreto e Silveira Filho (2017, p. 54) “(...) a
interculturalidade nos indica um caminho (...)”. Este proposto deve ser de inclusão, de
solidariedade com o diferente, possibilitando a sua aceitação e criando uma
oportunidade de enriquecimento e transformação de todas as partes envolvidas. De tal
modo, torna-se indispensável criticar os cânones da modernidade/colonialidade. O
enfrentamento desses cânones significa “(...) denunciar as diferentes estruturas
institucionais que seguem reproduzindo as relações assimétricas de poder, o racismo e
o patriarcado, que tornam perenes as violações massivas de direitos humanos (...)”
(BRAGATO; BARRETO; SILVEIRA FILHO, 2017, p. 56); bem como “(...) construir uma
possibilidade intercultural que rompa precisamente com a lógica moderna/colonial
excludente, pois defende essencialmente a humanidade do outro desprezada por essa
lógica (...)” (BRAGATO; BARRETO; SILVEIRA FILHO, 2017, p. 56), objetivando, assim, um
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diálogo horizontal e simétrico, em busca por uma sociedade livre, justa, solidária e em
paz. É, nesse sentido, que se propõe, portanto, um cosmopolitismo intercultural.
O cosmopolitismo intercultural se trata de um projeto jurídico global de
libertação, nascido na fronteira a partir de um diálogo qualificado, qual seja, um
diálogo intercultural, que pressupõe relações mútuas.
Nesse viés, a opção pelo estabelecimento de um cosmopolitismo intercultural
permitiria um diálogo não apenas com os Estados, mas também com os povos e os
movimentos sociais provindos do Sul Global, gerando um espaço de discussão sem
hierarquias, que não se limitaria aos espaços cognitivos do conhecimento hegemônico.
A partir da opção por adotar um cosmopolitismo intercultural pretende-se que
as instituições internacionais se transformem em um local para encontro,
transformação e aglomeração de saberes outros que foram anteriormente
subalternizados pela colonialidade.
O diálogo promovido a partir do cosmopolitismo intercultural pode permitir o
reconhecimento e respeito mútuo entre os grupos e sujeitos, rompendo com
hierarquias criadas e mantidas pela colonialidade. De tal modo, as práticas concretas
dos movimentos sociais e dos povos do Sul Global a partir da perspectiva da diferença
colonial forneceria uma nova práxis, rejeitando-se a projeção como universal de
particularidades geolocalizadas e rompendo com o ciclo colonial/imperial.
Por meio da interculturalidade, o cosmopolitismo se torna uma possível nova
fundamentação para o direito internacional, avançando para a comunicação e para a
superação dos problemas referentes às diferenças culturais entre os povos, de forma
que um diálogo transversal entre as culturas que emerge dos movimentos sociais se
mostra necessário para solucionar a interface do direito internacional, suplantando a
ideia padronizada e hierarquizante ocidental e europeizada centrada na figura do
Estado.
A partir dos desdobramentos do cosmopolitismo intercultural o próprio direito
internacional deve ser remodelado no intuito de abranger e respeitar as
incomensuráveis divergências entre os indivíduos e, consequentemente, haverá a
sobrepujança da luta e da valorização dos pensamentos e histórias dos povos não
ocidentais, em detrimento da decadência do discurso dominante da modernidade.
Acredita-se, desta forma, que o cosmopolitismo intercultural fornece fundamentação
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jurídica que deve ser capaz de promover mecanismos que permitam a proteção
adequada aos direitos humanos de povos não dominantes do Sul Global.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho apresentou-se os pontos importantes da teoria
cosmopolita kantiana, em especial o seu projeto para a paz, que inaugura (mas não
finaliza) um projeto cosmopolita jurídico. Buscando respeitar seu momento e espaço
histórico, identificou-se insuficiências no projeto cosmopolita kantiano, que, por vezes
se apoia na estrutura colonial, por outras, não é suficiente para romper com ela.
Contemporaneamente, diversos autores buscam revisitar as ideias cosmopolitas
kantianas, fornecendo outras roupagens, dentre elas, a própria proposta do FSM, que
pretendia um cosmopolitismo de baixo para cima. Nesse sentido, autores como Ramón
Grosfoguel questionam a possibilidade de se pensar o cosmopolitismo de forma crítica,
rompendo com as consequências da colonização, a possibilidade de um
cosmopolitismo descolonial. É onde surge a ideia de Walter Mignolo, que propõe um
cosmopolitismo crítico, que em outros escritos é denominado de cosmopolitismo
descolonial.
O cosmopolitismo crítico proposto por Mignolo repensa o mundo
colonial/imperial/moderno a partir da diferença colonial. Esse cosmopolitismo pode
ser compreendido como um projeto global que objetive a integração das diferenças e a
socialização do poder, emergente da fronteira, objetivando a libertação dos laços
impostos pela diferença colonial, alcançando-se uma comunidade em liberdade, ou
seja, uma comunidade sem hierarquizações.
O projeto cosmopolita crítico ou descolonial é um projeto de diversalidade, ou
seja, propõe a diversidade como projeto universal. Ocorre que não basta reconhecer a
diversidade (multiculturalismo) ou que o reconhecimento de diversas culturas em um
mesmo ambiente territorial (pluriculturalismo), é preciso que se reconheça, também, a
diferença colonial e se busque romper com as hierarquizações por ela mantidas. Assim,
o diálogo que surge do cosmopolitismo necessita ser um diálogo provindo das
fronteiras, um diálogo intercultural.
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A interculturalidade se trata de um projeto (não executado) capaz de
reconceitualizar e refundar estruturas e instituições colocando diferentes lógicas
culturais, práticas e formas de conhecer, pensar, agir, ser e viver em relações
equitativas, mesmo que sejam, também, conflitantes. Ultrapassa as ideias do pluri e do
multiculturalismo, que apenas indicam a existência de “muitas” culturas em um
determinado contexto ou espaço. A interculturalidade pressupõe relações mútuas,
rompendo com a dominação, a exclusão, a desigualdade e a iniquidade.
Assim, a presente tese apresenta o cosmopolitismo intercultural. O
cosmopolitismo intercultural visa ir além do cosmopolitismo crítico ou descolonial
proposto por Mignolo. Trata-se de uma proposta tanto cosmopolita, quanto
descolonial e uma abordagem terceiro-mundista do direito internacional. Isso porque o
cosmopolitismo intercultural se trata de um projeto, uma proposta jurídica que
qualifica o tipo de diálogo que deve surgir na fronteira, ou seja, um diálogo
intercultural que pressupõe relações mútuas e rompe com a colonialidade.
REFERÊNCIAS
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