https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v30n1p7-32
Vol. 30, n. 1, jan/jun, 2024
ISSN: 2179-6807 (online)
REFLEXÕES SOBRE OS PROCESSOS DE TOMBAMENTO DE TERREIROS EM
O PAULO1
Vagner Gonçalves da Silva2
José Pedro da Silva Neto3
Recebido em: 04/09/2024
Aprovado em: 18/09/2024
Resumo: Apesar da grande presença e importância das populações negras na formação da
cultura brasileira e na constituição das bases materiais da economia nacional os seus legados
somente em época recente têm sido objeto de reconhecimento e salvaguarda por parte dos
órgãos públicos de patrimonialização, os quais durante muito tempo estiveram comprometidos
em reforçar uma visão eurocentrada da história oficial do Brasil promulgada pelo Estado e suas
elites. No artigo abordamos a tramitação dos processos de tombamento material e registro
imaterial dos terreiros paulistas no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e
Artístico (Condephaat), incluindo os debates ocorridos do âmbito do grupo de trabalho
Territórios tradicionais de matriz africana tombados em São Paulo”.
Palavras-chave: Patrimônio cultural. Religiões afro-brasileiras. Povos tradicionais de matriz
africana. Candomblé. Umbanda.
REFLECTIONS ON THE PROCESSES OF LISTING TERREIROS IN O PAULO
Abstract: Despite the great presence and importance of black populations in the formation of
Brazilian culture and in the constitution of the material bases of the national economy, their
legacies have only recently been the object of recognition and safeguarding by public heritage
bodies, which for a long time were committed to reinforcing a Eurocentric vision of Brazil's
official history promulgated by the State and its elites. In the article we address the processing
of the processes of material listing and immaterial registration of terreiros in São Paulo at the
Council for the Defense of Historical, Archaeological and Artistic Heritage (Condephaat),
including the debates that took place within the scope of the working group Traditional
territories of African origin listed in São Paulo".
Keywords: Cultural heritage. Afro-Brazilian religions. Traditional people of African origin.
Candomblé. Umbanda.
3Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (PPGAS-FFLCH-USP). ORCID iD:
https://orcid.org/0000-0002-7062-2441. E-mail: inatobi@usp.br .
2Antropólogo; professor da Universidade de São Paulo; pós-doutor pela Harvard University e pela City
University of New York (Fulbright Scholar Program). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1253-5681.
E-mail: vagnergo@usp.br.
1Uma versão integral deste artigo está disponível em SILVA, 2021, pp.242-283.
7
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REFLEXIONES SOBRE LOS PROCESOS DE PATRIMONIALIZACIÓN DE TERREIROS EN O PAULO
Resumen: A pesar de la gran presencia e importancia de las poblaciones negras en la
formación de la cultura brasileña y en la constitución de las bases materiales de la economía
nacional, sus legados han sido sólo recientemente objeto de reconocimiento y salvaguarda por
parte de los organismos públicos del patrimonio, que durante mucho tiempo estaban
comprometidos a reforzar una visión eurocéntrica de la historia oficial de Brasil promulgada
por el Estado y sus elites. En el artículo abordamos la tramitación de los procesos de
catalogación material y registro inmaterial de terreiros de São Paulo en el Consejo de Defensa
del Patrimonio Histórico, Arqueológico y Artístico (Condephaat), incluyendo los debates que
tuvieron lugar en el ámbito del trabajo. grupo Territorios tradicionales de origen africano
listados en São Paulo.
Palabras-clave: Patrimonio cultural. Religiones afrobrasileñas. Pueblo tradicional de origen
africano. Candomblé. Umbanda.
INTRODUÇÃO
No estado de São Paulo, cabe ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico e Artístico (Condephaat) conduzir os processos de tombamento ou
registro de bens culturais. O Conselho foi criado em 22 de outubro de 1968,
subordinado à então Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo. Desde então, tombou
mais de 500 bens que, segundo informações do site institucional, formam um
conjunto da história e da cultura no Estado de São Paulo entre os séculos XVI eXX4.
A concepção de “história memorável” e de cultura mensurada pelo seu “valor
folclórico” que moldou as políticas de patrimonialização do órgão estadual não
diferiram daquelas que predominaram no órgão federal (Sphan e posteriormente Iphan
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), voltadas sobretudo a uma
visão nacionalista da história oficial, contada geralmente do ponto de vista das elites
brancas. Itens associados ao poder econômico, militar e religioso, como casarios
coloniais, sede de fazendas, monumentos, fortificações, igrejas católicas etc.,
compõem, consequente e majoritariamente, a lista dos bens tombados.
Foi a partir desse contexto que se colocou o problema da patrimonialização de
bens afro-brasileiros no estado.
Neste artigo abordamos a tramitação dos processos de tombamento material e
registro imaterial dos terreiros paulistas no Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Arqueológico e Artístico (Condephaat), incluindo os debates ocorridos do
4Site do Condephaat. Disponível em: http://condephaat.sp.gov.br/o-condephaat-e-a-upph/ Acesso em
21 jan. 2021.
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âmbito do grupo de trabalho Territórios tradicionais de matriz africana tombados em
São Paulo”. Trata-se de uma experiência pioneira de discussão dos encaminhamentos
dos processos de tombamento com a participação das comunidades tradicionais de
matriz africana, dos acadêmicos e dos técnicos dos órgãos de patrimonialização.
PATRIMÔNIO NEGRO E INVISÍVEL
Por ser o estado mais populoso do Brasil, São Paulo tem a maior população
preta e parda em números absolutos5. Todavia, bens associados à cultura afro-paulista
passaram a ser listados somente a partir dos anos de 1970, e ainda de forma muito
restrita. Elisabete Mitiko e Heloisa Cruz6apontaram a existência de apenas cinco
tombamentos de bens ligados, direta ou indiretamente, à cultura de matriz africana
ocorridos nos anos de 1970 e 1980: uma capela, um cemitério, duas igrejas e um bairro
negro. Ainda assim, um rápido olhar sobre esses processos revela que em muitos deles
o bem tombado é acionado sem fornecer uma narrativa alternativa, pelo ponto de
vista de seus produtores negros, à história oficial. Senão, vejamos.
O primeiro tombamento, ocorrido em 1974, foi a Capela Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos7, construída no século XVIII por africanos escravizados no
hoje reconhecido Quilombo de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira. Entretanto, o
tombamento não se deu em reconhecimento aos valores associados à cultura negra
paulista e a sua luta pelo território no qual a Capela é um marco de resistência e
memória8. Justificou-se a preservação do bem pela antiguidade, estilo arquitetônico,
técnica de construção e representatividade em relação ao ciclo econômico. Nenhuma
palavra é proferida em relação aos seus construtores e devotos, africanos e seus
descendentes, que, impossibilitados de frequentar a igreja matriz, pagaram com seu
“próprio ouro”9a construção de uma capela mais próxima a eles e cuja consagração
9Assim descreve o padre da região no livro de tombo da fundação da Capela: Concorrendo pois os
Senhores dos sobredittos escravos com a Sua approvação e auxílios, mormente o Capitão Joaquim
8O direito ao registro e uso coletivo das terras dessa região pelas comunidades quilombolas conquistado
em 2010 resultou de uma longa luta iniciada nos anos de 1980 contra a criação de barragens e parques
estaduais.
7Processo Condephaat n. 18.942/74.
6WATANABE, Elisabete Mitiko. e CRUZ, Heloisa de F., 2019, p. 11.
5Segundo dados do Censo IBGE (2010) pretos e pardos correspondiam a 34,63% da população paulista. A
cidade de São Paulo ocupava o primeiro lugar em todo o país, com cerca de 4,2 milhões de pretos e
pardos, seguida do Rio de Janeiro (cerca de 3 milhões) e Salvador (cerca de 2,7 milhões).
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levou oito décadas para ser realizada. A história de resistência social, econômica,
política e religiosa das populações negras que a Capela representa está ausente nos
autos de tombamento, que a valoriza apenas por ser uma construção intacta
pertencente ao Ciclo do Ouro paulista”.
O tombamento do “Cemitério de Escravos”, em São Jose do Barreiro, Vale do
Paraíba, foi solicitado em 1974. Sua aprovação ocorreu em 1977, mas foi
homologado em 198910. Embora o nome do espaço faça referência às populações
negras, trata-se de um cemitério paroquial destinado ao sepultamento das elites
brancas e praticamente desativado após o surgimento dos cemitérios laicos. Ficou
conhecido como cemitério dos escravos em decorrência de um túmulo construído em
1959 pelo arquiteto Benedito Calixto em homenagem aos últimos escravos que teriam
sido enterrados ali.
O cemitério, apesar do nome, foi tombado por sua “alusão significativa ao ciclo
econômico do café” e pela arte tumular, em geral feita de esculturas em mármore
presentes nos jazigos das famílias abastadas.
Os tombamentos da Igreja São Benedito, em São José dos Campos11, e da Igreja
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Penha de França12, na capital paulista,
também se deram em função da representatividade desses marcos arquitetônicos para
os núcleos urbanos onde se localizam e não pela importância desses santos e suas
igrejas para a devoção e organização social das comunidades negras.
Em 1990 dois tombamentos representaram avanços na patrimonialização de
bens culturais das populações negras.
O primeiro foi o tombamento do bairro negro do Cafundó13 em Salto de
Pirapora, município próximo à capital paulista. Esse processo ocorreu no contexto da
promulgação da Constituição de 1988 que prescrevia o direito à terra para as
populações afrodescendentes quilombolas. No Cafundó essas populações
13 Processo Condephaat n. 26.336/88.
12 Processo Condephaat n. 20.776/79.
11 Processo Condephaat n. 20.993/79.
10 Processo Condephaat n. 00496/74. Vale lembrar que esse cemitério es localizado na Fazenda Pau
d'alho, tombada pelo Iphan em 1968 (Processo n. 0577-T-58) e pelo Condephaat em 1982 (Processo n.
22049/82).
Machado de Moraes de quem fallamos, erigio-se debaixo da Faculdade Ordinária a referida Capella no
lugar em que existe, pagando-se todo o trabalho dos taipeiros e carpinteiros com o oiro dos mesmos
escravos. Processo Condephaat n. 18.942/74, p. 5.
10
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empreendiam luta semelhante à dos habitantes de Ivaporunduva contra fazendeiros,
barragens e áreas de preservação ambiental. O tombamento baseou-se na
identificação dessa comunidade em suas várias dimensões conjugadas: econômica
(grupos rurais com livre acesso à terra por meio de produção coletiva), linguística
(persistência de línguas africanas, a cupópia”) e religiosas. O segundo tombamento foi
o do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, solicitado em 1988 e ocorrido em 199014. Foi o
primeiro nessa modalidade em São Paulo e, até onde sabemos, o quarto em nível
federal e estadual no Brasil15.
Esses marcos resultaram da conjugação de alguns fatores. Além das mudanças
políticas por conta da redemocratização, tendo como ápice a Constituição de 1988,
estava havendo em São Paulo algumas transformações no âmbito do órgão estadual
em direção a uma visão mais ampla da ação de patrimonialização. Contribuíram para
essas transformações, além obviamente das lutas e reivindicações por reconhecimento
das populações negras, a abertura do Colegiado do Condephaat às universidades
públicas paulistas e as gestões, ocorridas a partir dos anos de 1980, na presidência do
órgão feitas por acadêmicos das áreas de ciências humanas (geografia e antropologia)
e uma significativa renovação de seu quadro técnico (com a inclusão de historiadores e
arquitetos)16.
O bem foi tombado no livro de história, não no etnográfico, por seu valor
cultural, pois, segundo a resolução, “não apresentava atributos arquitetônicos que
justificassem o tombamento”. O tombamento nesses termos foi visto como um avanço
e antecipação importantes quanto às políticas de registro de bens culturais intangíveis.
Vale lembrar que somente uma década depois o governo federal iria instituir e
regulamentar o registro de bens culturais de natureza imaterial nos termos do Decreto
Federal n. 3.551/2000.
Apesar do avanço inegável que foi o tombamento desse terreiro, paira nas
justificativas presentes no encaminhamento do processo a resiliência de uma visão
parcial na qual prevalece uma percepção de “valor arquitetônico reconhecível”. Ou
16 Sobre esses aspectos, veja CORRÊA, 2005; NASCIMENTO e SCIFONI, 2018; RODRIGUES, 2000, 2018;
WATANABE e CRUZ, 2019.
15 Os três tombamentos de terreiros anteriores foram: Sitio do Pai Adão (Recife/PE) 1985; Casa Branca
do Engenho Velho (Salvador/BA) 1986 e Terreiro Filhos de Obá (Laranjeiras/SE) 1988.
14 Processo Condephaat n. 26.110/88.
11
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seja, quando esse “valor não é reconhecido, justifica-se tombar pelo “valor imaterial
ou intangível que ele encerra, sem questionar a qual tipo de referência se está
pautando a avaliação. Reafirmam-se, ainda que indiretamente (ou mesmo
diretamente), certas hierarquias entre diferentes concepções arquitetônicas”.
De qualquer forma, esses tombamentos, sejam quais forem suas justificativas e
encaminhamentos, iniciaram um debate, que infelizmente não teve prosseguimento,
abordando a possibilidade de novas reflexões sobre os instrumentos de
patrimonialização e, sobretudo, o direito à memória e à história dos segmentos
populacionais negros na formação diversa da sociedade paulista.
É bem verdade que se pode argumentar que o Condephaat funciona segundo
uma “política de balcão” atendendo como pode, a partir de um corpo técnico reduzido
e recursos financeiros escassos, às solicitações que lhe são feitas. Mas isso ainda não
justificaria a ausência de uma política permanente de preservação de bens
afro-brasileiros, cuja implementação seguiria de acordo com os contingenciamentos
reais.
Em 1993, três anos após o tombamento do Axé Ile Obá, foi solicitado o
tombamento do Terreiro de Candomblé Santa Bárbara, mas o estudo ficou estagnado
por anos entre idas e vindas de solicitação de documentação. Em 2004, a líder morreu
e um projeto da prefeitura de readequação da malha viária colocou em risco as
edificações do terreiro, as quais foram parcialmente destruídas. Em função disso, o
Iphan, órgão federal, foi acionado e instaurou a abertura de processo para reconhecer
o terreiro como área de interesse arqueológico e histórico, evitando a demolição. Em
2005, o Condephaat foi inquirido sobre o andamento do processo de tombamento que
finalmente foi aberto para estudos, sendo, porém, arquivado no ano seguinte.
TOMBAMENTO E REGISTRO IMATERIAL EM SÃO PAULO
Em 2011, o governo estadual publicou o Decreto no. 57.439/11 que em
consonância com a legislação do Iphan estabeleceu as diretrizes para os registros de
patrimônio imaterial de São Paulo nos seguintes termos:
§1º - Constituem o patrimônio cultural imaterial do Estado de São Paulo, as
formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver, os conhecimentos e
12
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técnicas fundados na tradição, na transmissão entre gerações ou grupos,
manifestadas individual ou coletivamente, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória como expressão de identidade cultural e
social, tais como: 1. conhecimentos e modos de fazer enraizados no
cotidiano de comunidades; 2. rituais e festas que marcam a vivência coletiva
do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da
vida social; 3. manifestações orais, literárias, musicais, plásticas, cênicas e
lúdicas; 4. espaços onde se concentr[a]m e se reproduzem práticas culturais
coletivas. §2º - Os instrumentos, objetos, artefatos, lugares, elementos da
natureza e demais suportes materiais que são associados às manifestações
culturais imateriais paulistas, poderão ser objeto de registro desde que,
obrigatoriamente, feito em conjunto com a prática cultural. (DOE/SP, 18 out.
2011, p. 1.)
Essa legislação bastante avançada, como se percebe, abriu inúmeras
possibilidades para a valorização de bens culturais das populações geralmente não
contempladas nas políticas de patrimonialização anteriores. Baseando-se no decreto,
uma segunda solicitação de registro do Terreiro de Candomblé Santa Bárbara como
patrimônio imaterial foi feita em 2014.
Nesse período, entre 2013 e 2017, outros cinco pedidos de tombamento de
terreiros foram protocolados no Condephaat: Casa de Culto Dâmbala Kuere-Rho
Bessein, Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy, Ilê Alaketu Asé Airá, Ilê Olá Omi Asé Opo Araka e
o Santuário Nacional da Umbanda. Três dessas comunidades haviam sido
reconhecidas pelos órgãos municipais de defesa de patrimônio de suas localidades.
Nesse período registra-se também um aumento na demanda por tombamento
e registro de bens ligados às populações afro-brasileiras, tais como congadas17, igrejas
do catolicismo negro (Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São
Paulo no Largo do Paissandu)18, comunidades quilombolas do Vale do Ribeira19 e clubes
sociais negros do interior paulista20,21.
Em 2016, finalmente ocorreu o primeiro registro de patrimônio imaterial do
estado de São Paulo: o samba rural paulista22, prática musical e coreográfica negra
22 Este termo genérico procurou englobar as várias denominações que a manifestação possui, como
samba rural e samba de bumbo.
21 Veja WATANABE, 2018, p. 17.
20 Processo Condephaat n. 72.294/14.
19 Processos Condephaat n. 68.971/13 a 68.977/13.
18 Processo Condephaat n. 69.577/13.
17 Processo Condephaat n. 66.573/12.
13
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originária de cidades do interior como Pirapora, Tietê e Campinas, entre outras23. E em
2020 foi aprovado o parecer favorável ao registro das práticas carnavalescas do estado
de São Paulo como patrimônio imaterial, incluindo os saberes e fazeres ligados às
escolas de samba24.
No caso da tramitação dos processos de tombamento dos terreiros, vários
fatores contribuíram para sua dinamização a partir de 2017.
Primeiro, as solicitações dos grupos religiosos afro-paulistas eram demandas
legítimas e urgentes, sobretudo se comparadas com o que estava ocorrendo em outros
estados e cidades do Brasil nos quais o número de terreiros patrimonializados era
crescente.
Segundo, as solicitações formavam uma amostra” significativa do candomblé
(em suas diferentes “nações”) e da umbanda paulista, o que permitiria que os
processos pudessem ser agrupados e analisados em bloco, justificando cada solicitação
em si e a sua contribuição para a formação desta amostra”25. Além disso, a análise em
bloco dava celeridade às várias etapas da tramitação dos processos (instrução de
pareceres, visitas técnicas, análise pelo Colegiado, despachos etc.) que em geral
demoram muito tempo para serem avaliados devido ao quadro limitado de técnicos do
Condephaat.
Terceiro, a presença nos processos de laudos antropológicos bastante
pormenorizados (com história das comunidades, práticas rituais, medições,
plantas-baixas, fotografias etc.) elaborados por Vagner Gonçalves da Silva, um
antropólogo especialista nesses estudos, em parceria com as comunidades religiosas,
25 Assim, cada terreiro poderia ser visto como representante de uma vertente (nação) do candomblé:
Terreiro de Candomblé Santa Bárbara (candomblé angola), Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessem
(candomblé jeje), Axé Batistini (candomblé queto), Ilê Olá Omi Asé Opo Araka (candomblé nagô-vodum),
Ilê Afro-brasileiro Odé Loreci (candomblé queto reafricanizado) e Santuário Nacional da Umbanda
(umbanda).
24 Processo Condephaat n. 80.418/2018. O pedido fora feito pela Liga Independente das Escolas de
Samba de São Paulo e o estudo foi elaborado por: Tomara! Educação e Cultura, Clara de Assunção
Azevedo, Felipe Gabriel Oliveira, Vagner Gonçalves da Silva, com a colaboração de Ana Luiza Mendes
Borges, Camila Iwasaki e Julia Picchioni. DOE/SP, 5 fev. 2020, p. 61.
23 Processos Condephaat n. 01.065/11 e 69.504/13. O pedido foi feito por Tadeu Kaçula em 2011, mas o
processo de patrimonialização efetivado em dezembro de 2015 foi resultado da organização do Fórum
para as Culturas Populares e Tradicionais junto às mestras, mestres e pesquisadores como Marcelo
Simon Manzatti, Tião Soares e José Pedro da Silva Neto. Processo completo disponível no link:
http://www.patrimonioimaterial.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/Samba-Processo-N%C2%BA-69
504_2013.pdf Consultado em 21 de jan. 2021. O Samba de Bumbo Paulista tornou-se patrimônio
cultural do Brasil em 09/05/2024 pelo colegiado do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura (MinC).
14
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contribuiu para a agilizar a instrução dos pareceres técnicos na fase de abertura dos
estudos e na elaboração final dos encaminhamentos de tombamento.
Quarto, o fato de alguns desses terreiros terem sido patrimonializados em
nível municipal e dois deles terem recebido do Iphan o Prêmio Patrimônio Cultural
dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana/2014 dava um indicativo de
sua importância26.
Quinto, houve a criação de um grupo de trabalho (GT) denominado Territórios
Tradicionais de Matriz Africana Tombados em São Paulo”, proposto por José Pedro da
Silva Neto27 e Vagner Gonçalves da Silva que, desde 2017, estavam se reunindo
individualmente com as lideranças religiosas e os técnicos dos órgãos de
patrimonialização e perceberam a necessidade de uma ação conjunta.
GT TERRITÓRIOS TRADICIONAIS DE MATRIZ AFRICANA TOMBADOS EM SÃO PAULO
A criação do GT no estado de São Paulo, além das diversas e históricas lutas
empreendidas pelas organizações da sociedade civil em busca de ações e políticas
antirracistas, teve como inspirações a “Oficina Nacional de Elaboração de Políticas
Públicas de Cultura para os Povos Tradicionais de Terreiro”, ocorrida em 2011 em São
Luís (MA)28, a elaboração e implementação do “I Plano Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015)”29, e
a instituição do Grupo de Trabalho Interdepartamental para Preservação do
Patrimônio Cultural de Terreiros (GTIT)”30, composto por técnicos de vários
departamentos e superintendências do Iphan, além de um grupo formado por
30 OGTTI foi instituído pela Portaria Iphan n. 489/2013. Mais informações disponíveis em:
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1313 Consultado em 21 de jan. 2021.
29 Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/plano_nacional_desen_sustentavel_povos_comun
idades_trad_matriz_africana.pdf. Consultado em 21 de jan. 2021.
28 Relatório Final (2012). Disponível em:
https://issuu.com/ireayo/docs/oficina_politicas_publicas_cultura_ Consultado em 21 de jan. 2021.
27 Na ocasião era consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) da ONU, da
Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR) e
dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana; Membro do Colegiado Setorial de Cultura
Afro-brasileira do Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (CNPC/MINC) e
secretário-executivo do Grupo de Trabalho Samba Rural Paulista como Patrimônio Brasileiro
(Condephaat e Iphan).
26 O catálogo dos premiados es disponível em:
https://issuu.com/ttcatalao333/docs/premio_iphan_-_palmares_-_deppir_ma. Consultado em 21 de
jan. 2021.
15
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representantes de todos os territórios tradicionais de matriz africana tombados pelo
Iphan. Este grupo, que em 2011 reuniu-se a partir do curso de extensão31 em Gestão e
Salvaguarda do Patrimônio Cultural, idealizado pelo Iphan e pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA), transformou-se na “Comissão de Preservação e Salvaguarda dos
Terreiros Tombados”.
Esse GT paulista teve por objetivo acompanhar o andamento dos processos e
auxiliar técnica e academicamente ações conjuntas entre sociedade civil (autoridades e
lideranças tradicionais32 de matriz africana e acadêmicos) e os órgãos de
patrimonialização, envolvendo ainda, quando necessário, diálogos com os poderes
legislativo, executivo e judiciário. E como propósito, futuramente, ajudar na elaboração
do plano de salvaguarda desses territórios em casos de registro de bem imaterial.
A partir daí, o encaminhamento e discussão coletiva dos processos de
tombamento dos terreiros assumiu uma dinâmica inédita em São Paulo, pois pela
primeira vez as tomadas de decisões durante a instauração e tramitação dos processos
foram frutos de debates coletivos realizados no âmbito deste GT, numa estratégia
estabelecida conjuntamente com a diretora técnica da Unidade de Preservação do
Patrimônio Histórico (UPPH), a historiadora Elisabete Mitiko Watanabe, que ficara
encarregada de elaborar os estudos e pareceres33.
Os representantes dos territórios tradicionais de matriz africana em processo de
patrimonialização ou patrimonializado que compõem o GT são: Mãe Paula e Douglas
Sobaloju pelo Axé Ilê Obá; Mãe Pulquéria, Manoel Donato e Makota Natália pelo
Terreiro de Candomblé Santa Bárbara; Pai Dancy, Abajigan Fábio e Baba Diego pela
Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessein; Mãe Luisinha, Pai Carlinhos, Mãe Daniela e
Pai Gilberto pelo Ilê Alaketu Asé Ayrá; Pai Leo, Baba Adeoxun e Ivan Gregov Filho pelo
Ilê Afro-brasileiro Ode Lorecy; Mãe Carmen, Pai Karlito e Pai Cláudio pelo Ilê Olá Omi
Axé Opô Aràkà e Pai Ronaldo, Maria Aparecida e João Rodolfo pelo Santuário Nacional
da Umbanda; Elisabete Mitiko Watanabe representando a Unidade de Preservação do
33 Vale lembrar que o fato de a historiadora Elisabete Mitiko ser uma praticante da umbanda garantia-lhe
uma certa familiaridade com o tema e sua análise.
32 Autoridades são os mais velhos, investidos da autoridade que a ancestralidade e suas comunidades
lhes conferem” e lideranças são os sujeitos assim constituídos pela “hierarquia própria dos territórios e
das casas tradicionais”. (SILVA NETO, 2016, p. 25)
31 Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/3503/terreiros-terao-planos-de-salvaguarda-elaborados-em
-curso-de-extensao. Consultado em 21 de jan. 2021.
16
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Patrimônio Histórico (UPPH) do Condephaat, Marco Monteiro Rabelo representando a
superintendência do Iphan em São Paulo e os coordenadores do grupo, José Pedro da
Silva Neto e Vagner Gonçalves34.
OGT realizou sete reuniões entre 2018 e 2019, participou de três sessões
ordinárias do Colegiado do Condephaat nas quais foram discutidos os processos de
tombamento e organizou um seminário sobre o tema da patrimonialização. Por meio
de uma página do Facebook na internet as atividades do GT foram noticiadas35.
A primeira reunião, quando se deu a fundação do grupo, ocorreu em 5 de
fevereiro de 2018 na sede da Superintendência do Iphan em São Paulo. As demais
reuniões aconteceram nos terreiros, em forma de rodízio: em 6 de abril de 2018 no Ilê
Alaketu Asé Ayrá; em 8 de maio de 2018 no Ilê Afro-brasileiro Ode Lorecy; em 31 de
agosto de 2018 no Ilê Olá Omi Axé Opô Aràkà; em 5 de outubro de 2018 no Terreiro de
Candomblé Santa Bárbara; em 14 de dezembro de 2018 no Santuário Nacional da
Umbanda e em 18 de fevereiro de 2019 na sede do Condephaat.
Nessas reuniões foram discutidos temas relacionados aos processos de
patrimonialização, tais como suas etapas regimentais: solicitação pelo interessado,
protocolo, estudo preliminar ou instrução do processo pela UPPH, produção de relatoria,
colocação do processo na pauta de reunião do Colegiado, realização de oitiva, debate e
votação do colegiado pela abertura do estudo ou arquivamento do processo com
direito à vista dos autos pelos conselheiros, realização ou prosseguimento do estudo
pela UPPH, produção de relatoria sobre o estudo finalizado, debate e votação no
colegiado com direito à vista dos autos pelos conselheiros, aprovação ou arquivamento
do processo, encaminhamento do processo aprovado para o setor jurídico, assinatura
da resolução pelo executivo (secretário de cultura) e sua publicação no Diário Oficial do
Estado. Para muitas dessas etapas havia trâmites burocráticos específicos: no caso de
abertura de estudo de tombamento, por exemplo, havia o envio de notificação ao
proprietário do imóvel, à prefeitura e à delegacia civil locais informando o início do
processo de tombamento e a consequente proibição de modificação das características
35 Veja https://www.facebook.com/gtterreirostombadossp/. Essa página foi criada e é administrada por
José Pedro da Silva Neto.
34 Um aspecto merece ser mencionado: muitos sujeitos desse coletivo, embora estivessem
“representando” certos campos profissionais, mobilizavam nessas discussões também suas experiências
pessoais de familiaridade com os sistemas religiosos do candomblé e da umbanda, aos quais possuíam
laços de pertencimento.
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do imóvel ou mesmo solicitação ao interessado de envio de outros documentos
necessários. O GT procurou centralizar essas informações e assessorar as comunidades
sempre que possível. Debatemos também a legislação vigente e os instrumentos
jurídicos sobre tombamento, diferenças entre tombamento material e registro de bem
imaterial, direitos e deveres dos proprietários de bens tombados, expectativas do
grupo quanto às contrapartidas do poder público em relação aos imóveis tombados,
motivos da solicitação de patrimonialização, critérios de escolha de bens tombados,
discriminação e enfrentamentos vividos pelas comunidades causados por outros
grupos religiosos (intolerância e racismo religiosos), necessidade de apoio e valorização
das comunidades tradicionais de matriz africana e alianças com o poder público e
sociedade civil para inseri-las em redes mais amplas de gestão cultural e de cidadania.
Foi muito importante para as comunidades conhecerem a legislação relativa ao
tombamento, seus direitos e deveres. Por exemplo, que o tombamento do terreiro não
garantia a continuidade das práticas rituais (que deveriam ser preservadas pelos
próprios grupos)., muitos pedidos de tombamento foram motivados pelo desejo de
preservação e continuidade da comunidade para além da morte da liderança, em geral
proprietária do imóvel onde se localiza o terreiro. Mas se o tombamento ajudava na
preservação do imóvel diante de possíveis disputas entre futuros herdeiros legais das
lideranças, como aconteceu com o Axé Ilê Obá, ou eventuais desapropriações, como
havia sido o caso do Terreiro de Candomblé Santa Bárbara, ele não garantia a prática
ritual, sendo por isso recomendável a conjugação do tombamento com outros recursos
legais, tais como o registro da comunidade do terreiro como sociedade civil (pessoa
jurídica) a quem se pudesse atribuir a posse do imóvel para fins de uso religioso.
O debate no GT sobre o enquadramento dos territórios tradicionais de matriz
africana e sua cosmovisão às categorias de patrimônio material e imaterial, tangível e
intangível, também permitiu questionar os instrumentos legais de patrimonialização e
os melhores caminhos a serem seguidos de acordo com a demanda das comunidades.
Dessa forma, a expertise dos técnicos dos órgãos públicos, dos acadêmicos envolvidos
no conhecimento das religiosidades de matrizes africanas e das lideranças puderam ser
acionadas numa intensa, interativa e dialógica troca de experiências, conhecimentos e
saberes.
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As visitas de vistoria técnica aos terreiros foram realizadas entre novembro e
dezembro de 2017 e em janeiro de 2018, por Elisabete Mitiko e a arquiteta Adda
Alessandra Piva Ungaretti, por parte da UPPH, e Vagner Gonçalves e Pedro Neto pelo GT.
Em fevereiro do mesmo ano foi finalizado o estudo temático no âmbito do
GEI/UPPH intitulado “O candomblé em São Paulo Estudo de Patrimonialização de
Terreiros”, elaborado por Elisabete Mitiko com a colaboração de Adda Ungaretti,
Elizabeth Terto de Carvalho (estagiária de ciências sociais na GEI/UPPH) e Vagner
Gonçalves. Esse estudo apresentou o contexto histórico de formação de candomblé no
Brasil e em São Paulo e apontava as experiências de patrimonialização dos terreiros
pelos órgãos federais e pelo órgão estadual, enfatizando os dois modelos de
patrimonialização prescritos pela legislação o tombamento (como patrimônio
material) e o registro como bem imaterial e suas diferenças básicas: o primeiro
protege o imóvel, mas não a prática cultural, enquanto o segundo protege e estimula a
prática cultural, mas não protege o imóvel onde esta se realiza. Nesse estudo foram
apresentados os critérios estabelecidos e discutidos coletivamente para avaliação dos
processos em andamento, lembrando que tais critérios eram balizadores e não
obrigatórios:
1) Registro do imóvel em nome do terreiro ou de associação civil (jurídica)
ligada às atividades do terreiro.
2) Ligação com algumas denominações representativas das religiões de matrizes
africanas (candomblé, tambor de mina, batuque, umbanda etc.) e de suas modalidades
internas de rito (“nações”), tais como queto, jeje, angola.
3) Terreiros fundados por lideranças que historicamente iniciaram o candomblé
em São Paulo, ainda que hoje esses terreiros estejam sendo liderados por sucessores
das primeiras lideranças.
4) Terreiro com um período mínimo de existência desde a sua fundação, de
preferência, no mesmo endereço.
5) Terreiro com atividades religiosas consolidadas e em plena atividade. Ou seja,
terreiro que realize o ciclo de celebrações públicas em homenagens às divindades
cultuadas (em geral definido em calendário anual e de acordo com práticas
estabelecidas pelos conhecimentos e saberes compartilhados pelas comunidades
historicamente), que apresente continuidade na iniciação de novos adeptos e na
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formação de quadros que garantam sua sucessão, e que realize atendimento espiritual
e social à comunidade.
6) Existência dos espaços no terreiro que tradicionalmente configuram sua
cosmografia e arquitetura sagradas: barracão, quarto dos assentamentos dos orixás,
cozinha, quarto para iniciações, assentamentos externos, árvores consagradas, poço
etc.
7) Ter atividades socioeducativas dirigidas à comunidade interna e externa,
ações ligadas aos movimentos contra intolerância religiosa, racismo e outras ações
visando a valorização das culturas de matriz africana.
Em seguida, cada processo foi instruído com um parecer técnico específico
elaborado pela UPPH seguindo uma estrutura comum: 1. Repertório de despachos (a
documentação apresentada por ocasião da solicitação de tombamento, que em geral
incluía itens como: solicitação do requerente, atas de fundação da sociedade civil do
terreiro e do processo de tombamento municipal quando era o caso –, jornais e
estudos acadêmicos referentes à comunidade, escritura de propriedade do imóvel,
planta baixa do terreiro, entrevistas das lideranças, abaixo-assinados, cartas de apoio
ao pedido, levantamento fotográfico feito durante a visita técnica ao templo, laudo
antropológico etc.; 2. Análise do objeto (uma explanação do terreiro e do seu contexto
histórico), adequação aos critérios de inclusão estabelecidos; 3. Proposta de
encaminhamento (as justificativas para a abertura do processo de estudo de
tombamento). Neste item, para cada terreiro foi elaborada uma justificativa específica.
Destaco os principais trechos de cada uma delas:
Terreiro Santa Bárbara: De acordo com estudo constante dos autos, o
Terreiro Santa Bárbara exemplar desta modalidade de rito que atraiu
parcelas significativas de umbandistas para as fileiras do candomblé, a partir
dos anos 1960, mas também porque nele se processaram os inevitáveis
diálogos que esta tradição teve de estabelecer com uma modalidade de rito
mais tardia em São Paulo, porém vista com mais legitimidade a partir dos
anos de 1970, a tradição jeje-nagô ou queto". Além disso, configura-se
como o primeiro terreiro de Candomblé registrado em cartório no Estado de
São Paulo, funcionando no mesmo local desde 1962, com exceção do
período pós-morte de Mãe Manaundê, quando as atividades foram
paralisadas. Trata-se, portanto, de uma referência histórica da religião em
São Paulo. Deste modo, analisando a documentação juntada aos autos,
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entendemos que o Terreiro Santa Bárbara apresenta características que
justificam sua proteção, sugerindo abertura de processo, de modo que
possamos aprofundar as discussões sobre a definição do melhor
instrumento a ser utilizado para proteção e valorização deste bem.36
Ilê Alaketu Asé Ayrá: De acordo com estudo constante dos autos, o Ilê
Alaketu Asé Ayrá, além de ser, como todos os demais terreiros de
candomblé do país, um lugar de preservação da memória dos
afrodescendentes, é também, por seu tamanho, pelo porte e pela tradição
de que descende, uma das casas representativas das grandes linhagens da
nação Ketu, integrando a constelação dos herdeiros dos grandes babalorixás
e iyalorixás brasileiros do culo XX, além de se configurar como um dos
precursores do desenvolvimento do Candomblé em São Paulo. Deste modo,
entendemos que o Templo de Culto Sagrado Tatá Pércio do Battistini “Ilê
Alákétu Asé Ayrá” apresenta características que justificam sua proteção. 37
Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessein: De acordo com estudos
constantes dos autos, a Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessein
apresenta características históricas e sociais que justificam sua proteção
[] O terreiro é constituído de práticas e significância singular, uma vez que
se trata de uma das poucas casas de culto jeje-mahin do Brasil e a única no
Estado de São Paulo, estando em atividade desde 1971, fazendo assim parte
do processo de constituição do candomblé em São Paulo. 38
Ilê Ode Lorecy: De acordo com estudo constante dos autos, o Ilê Ode Lorecy
se configura: Como um dos melhores modelos de organização do culto aos
Orixás, obedecendo a ritos, tempo e espaço num único lugar, "resultado de
sua ampla dimensão que possibilitou abrigar as concepções brasileiras, de
reunião de divindades, e africanas, de separação destas em templos
individuais" (fl. 18); como um exemplo típico do processo de formação e
transformação do candomblé em São Paulo; que uma preocupação
efetiva por parte do dirigente da Casa e de todos os seus membros de
manter as atividades do terreiro em prática; deste modo, entendemos que o
Ilê Ode Lorecy apresenta características que justificam sua proteção,
sugerindo abertura de processo, de modo que possamos aprofundar as
discussões sobre a definição do melhor instrumento a ser utilizado para
proteção e valorização deste bem. 39
Ilê Olá Omi Axé Opô Aràkà: De acordo com estudo constante dos autos, Ilê
Olá Omi Axé Opô Aràkà "reproduz o formato dos compounds ou egbes de
39 Resumo nosso do parecer técnico UPPH n. GEI 580/2018 (Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy).
38 Resumo nosso do parecer técnico UPPH n. GEI 578/2018 (Casa de Culto Afro-Descendente Dambala
Kuere-Rhon Bessein).
37 Resumo nosso do parecer técnico UPPH n. GEI 590/2018 (Ilê Alaketu Asé Ayra).
36 Resumo nosso do parecer técnico UPPH n. GEI 582/2018 (Terreiro de Candomblé Santa Bárbara).
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origem ioruba, nos quais os laços de parentesco consanguíneo se
sobrepõem aos de parentesco mítico-religioso formados por meio das
iniciações. Neste sentido, é uma comunidade que rompe a clássica divisão
ocidental entre o sagrado e o profano presente nas religiões monoteístas.
Os orixás habitam o cotidiano das pessoas que habitam aquele espaço
como uma presença constante orientando as mínimas ações do dia a dia".
Além disso, o Ilê Olá, considerando suas instalações em terreno de grandes
proporções, cerca de 5.000 m2, com vegetação densa e presença da represa,
permite a prática do candomblé de forma privilegiada, que muitas vezes não
é possível para muitos terreiros localizados em áreas urbanas. A visita
realizada ao local permitiu perceber uma grande preocupação com os filhos
da casa, na valorização do papel da mulher no cotidiano do terreiro, nos
cuidados com a manutenção das instalações para uso ritualístico, além de
haver forte atuação das lideranças do Ilê Olá na defesa e preservação das
religiões de matriz africana. Deste modo, entendemos que o Ilê Olá Omi Axé
Opô Aràkà apresenta características que justificam sua proteção, sugerindo
abertura de processo.40
Santuário Nacional da Umbanda: Considerando que: A umbanda é uma
religião que, ao longo de sua história, buscou se firmar como brasileira,
trazendo em suas práticas a diversidade cultural paulista, com culto a orixás
e entidades que, reconhecidamente, fazem parte da identidade popular do
Estado como o caboclo, preto-velho, baiano, boiadeiros; o Santuário
Nacional da Umbanda se configura como um espaço de referência para as
práticas umbandistas, sendo historicamente utilizado para este fim desde a
década de 1960, antes mesmo da existência de uma estrutura para tanto;
congrega em seu espaço as práticas de diversos terreiros de umbanda do
Estado de São Paulo em um único espaço; conta com diversas estruturas e
recursos naturais, que permitem a realização de trabalhos religiosos,
oferendas e outros rituais ligados, principalmente, à umbanda; passou por
um longo processo de recuperação ambiental e tem sido objeto de cuidados
por parte de seus usuários; somos pela abertura do processo de estudo de
tombamento da área do Santuário Nacional da Umbanda.41
Em todos os processos foi proposta uma recomendação comum:
Ressaltamos que no âmbito do ETGC Escritório Técnico de Gestão
Compartilhada foi criado um grupo de trabalho para discussões sobre
patrimônio imaterial. Além disso, os representantes dos terreiros, em
conjunto com o Departamento de Antropologia da USP, na pessoa do Prof.
Vagner Gonçalves da Silva, e o Fórum para as Culturas Populares
Tradicionais, representada por Pedro Neto, criaram um fórum de discussões
41 Resumo nosso do parecer técnico UPPH n. GEI 637/2018 (Santuário Nacional da Umbanda).
40 Resumo nosso do parecer técnico UPPH n. GEI 593/2018 (Ilê Olá Omi Asé Opo Araka).
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sobre o tema patrimonialização dos terreiros, que também contará com a
participação de técnicos da UPPH e Iphan. Desta forma, o assunto está sendo
amplamente discutido, o que auxiliará na definição do melhor instrumento
de preservação destes espaços. Considerando que o instrumento do
tombamento se encontra devidamente consolidado e que as discussões
sobre o uso do registro de patrimônio imaterial, principalmente no que se
refere a terreiros, ainda estão em curso, sugerimos abertura do processo de
estudo de tombamento, com vistas a proteger o bem e de modo que
possamos aprofundar as discussões sobre a definição do melhor
instrumento a ser utilizado para proteção e valorização deste bem. Contudo,
considerando as obrigações que passam a recair sobre o bem, com a
abertura do processo de estudo de tombamento, solicitamos, caso a
decisão seja favorável, que se estabeleça desde a recomendação que
constou da resolução de tombamento do Axé Ilê Obá, que em caso de
adaptação das edificações a futuras exigências de reelaboração de culto, as
intervenções devem ser analisadas conforme as "interpretações do grupo
religioso responsável e na preservação das representações materiais que
conferem ao espaço os significados específicos do Candomblé".42
As discussões feitas no âmbito do GT definiram as diretrizes dos processos,
inclusive das possíveis adequações dos instrumentos de patrimonialização ou mesmo
da relativização destes, pois no caso do tombamento do imóvel (na categoria de bem
material), o parecer ressaltou a resolução aprovada no processo do Axé Ilê Obá na qual
se previa, em caso de necessidade de alteração das edificações, uma avaliação por
parte do órgão patrimonial à luz das interpretações e justificativas religiosas do grupo.
Ou seja, a edificação, ainda que tombada, não deveria ser um possível obstáculo à
prática religiosa, porque isso poderia eventualmente ocasionar o próprio definhamento
daquilo que pretendia salvaguardar: a dinâmica da expressão ritual e cosmológica.
Em 2 de abril de 2018, na 1915ª sessão do Colegiado do Condephaat, dirigida
pelo presidente do órgão, Carlos Augusto Mattei Faggin, foi realizada uma oitiva sobre
os pedidos de tombamento dos terreiros e do Santuário Nacional da Umbanda com a
presença dos representantes das comunidades que se apresentaram trajando suas
vestes solenes tradicionais. Por solicitação do presidente, o grupo indicou um
interlocutor (Vagner Gonçalves da Silva) para fazer a apresentação e responder às
perguntas dos conselheiros.
42 Idem notas 36, 37, 38, 39, 40 e 41.
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Dois meses após essa oitiva, os processos de tombamento finalmente entraram
na pauta da 1923ª reunião do Colegiado do Condephaat, realizada em 4 de junho de
2018, também com a presença dos membros do GT.
Os debates ocorridos nessas duas reuniões (oitiva e abertura de estudo de
tombamento) demonstra que os temas da cultura religiosa afro-brasileira e sua
patrimonialização ainda não são familiares à maioria dos conselheiros, os quais
manifestaram dúvidas sobre a “legitimidade cultural” dos terreiros paulistas, a
condição legal do imóvel, a capacidade das comunidades de atender à legislação de
tombamento e o próprio instrumento mais adequado para sua realização.
De fato, uma questão que se colocou desde a patrimonialização do primeiro
terreiro em São Paulo foi a suposta falta de antiguidade” ou representatividade destas
tradições religiosas para a cultura paulista por meio da qual se justificasse a
patrimonialização, principalmente quando comparados com os centenários terreiros
nordestinos. Foi preciso esclarecer que os terreiros paulistas estavam afiliados às
grandes casas religiosas do Brasil e até da África, sendo, portanto, reconhecidos por
estas como galhos” locais de “raízes” antigas. Além disso, participavam de uma rede
de trocas e alianças responsável pela difusão de práticas e saberes, além de permitir a
circulação de bens materiais entre essas comunidades. Outro questionamento foi se as
comunidades de terreiro teriam condições de obedecer a legislação de tombamento
que determina a não descaracterização das edificações sem o consentimento prévio do
Condephaat, como teria ocorrido com o Terreiro de Candomblé Santa Bárbara, cujo
processo, depois da abertura para estudo, foi arquivado porque a casa estaria
passando por alterações nas suas edificações e não realizava mais atividades
religiosas., Na época do estudo, a comunidade passava pelo período de mukondo ou
axexê (rito funerário) quando, por tradição religiosa, o fechamento da casa e
suspensão temporária das atividades públicas. Após esse período, escolhe-se a nova
liderança e a casa é reaberta, porém isso em geral se faz com muitas disputas internas
e conflitos, podendo haver inclusive dissidências, hiatos ou adaptações na rotina ritual.
E as modificações nas edificações foram realizadas em função da necessidade de
reconstrução e ampliação da casa, devido à destruição parcial ocasionada pela
tentativa de desapropriação da prefeitura.
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Enfim, com a aprovação da abertura do estudo dos seis territórios o que
assegurava sua a preservação até a decisão final43 –, as reuniões do GT focaram nos
instrumentos adequados de proteção disponíveis pela legislação vigente. As reuniões
colocaram em contato as dúvidas e expectativas dos representantes dos terreiros com
as contribuições da historiadora Elisabete Mitiko (UPPH-Condephaat), que forneceu os
parâmetros legais e possibilidades de proposição para o encaminhamento das minutas
de tombamento a serem consideradas pelo Colegiado; do cientista social José Pedro da
Silva Neto, que participara de diversas políticas públicas voltadas às populações negras
e do registro do samba rural como primeiro bem imaterial do estado de São Paulo; e
do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva que elaborara os laudos de tombamento.
A legislação do Condephaat (seguindo a do Iphan) permite que um bem seja
declarado patrimônio material ou registrado como bem imaterial. São instrumentos
diferenciados e com consequências legais distintas. De forma breve, no caso do
tombamento material o acautelamento recai sobre a “materialidade” do bem que
pode ser edificações, imóveis, conjuntos urbanos ou paisagísticos, obras artísticas e
históricas, entre outras. As justificativas em geral recaem sobre sua monumentalidade,
seu estilo, estética, originalidade, representatividade de técnicas etc. O bem tombado
passa a ser protegido e qualquer intervenção que altere as características materiais
que justificaram seu tombamento deve ser submetida à aprovação do Colegiado. Em
geral é feita uma lista de itens vistos como focos do tombamento. Uma área ao redor
do bem pode ainda ser definida para garantir a preservação da propriedade, ficando
essa região também proibida de modificações sem autorização prévia. O tombamento
de um imóvel (igreja, terreiro etc.) não assegura, entretanto, que o uso cultural nele
existente seja preservado. o registro de bem imaterial, como vimos na legislação
paulista citada anteriormente, incide sobre aspectos intangíveis da cultura, como
saberes, práticas, tradições, conhecimentos, técnicas, rituais, festas, manifestações
orais, artísticas, literárias etc. Sendo impossível separar esses aspectos de seus
suportes materiais (instrumentos, objetos, artefatos, lugares etc.), estes também são
43 Nos termos do Artigo 142 do Decreto 13.426 de 16 de março de 1979, a abertura de processo de
estudo para tombamento assegura a preservação do bem até a decisão final, ficando proibida
qualquer intervenção que descaracterize a referida área, sem a prévia autorização do Condephaat. O
descumprimento deste disposto pode ser punido com as sanções legais previstas no artigo 63 da Lei
Federal n. 9.605, de 12 de dezembro de 1998.
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arrolados no registro. Outra característica importante é que registro de bem imaterial
prevê obrigatoriamente um plano de salvaguarda por parte do poder público visando
auxiliar a manutenção e reprodução das práticas culturais. Por fim, diferentemente do
tombamento, o registro imaterial é menos restritivo em relação à proteção física dos
bens ou modificações nos imóveis.
No caso dos terreiros, o registro imaterial foi de início considerado o mais
recomendável, tendo em vista a citada experiência do arquivamento do processo do
Terreiro de Candomblé Santa Bárbara e as possíveis dificuldades das casas de manter
as edificações sem alterações.
Essa possibilidade, entretanto, não foi aceita pelas lideranças religiosas.
Primeiro, porque julgavam que os riscos de fechamento de terreiros envolviam em
geral problemas pela posse e preservação do imóvel ameaçadas por situações como
disputas entre herdeiros do sacerdote proprietário, desapropriação urbana,
especulação imobiliária etc. Se o terreiro fosse tombado (ainda que o foco recaísse
sobre o imóvel e não sobre a prática) seria mais difícil dar outro uso ao espaço senão a
prática religiosa. Segundo, porque as lideranças percebiam que colocar o terreiro (sua
“materialidade”) sob a proteção do Estado indiretamente valorizava a história e
memória das comunidades. Os terreiros, em seus diferentes endereços e modelos, são
marcos de resistência afro-brasileira presentes na paisagem urbana que geralmente a
história oficial tendeu a relegar como referências menos importantes da ocupação da
cidade em comparação com outras apropriações populacionais44. anos, por
exemplo, se tenta mudar o nome da rua Ruiva, onde se situa o Terreiro de Candomblé
Santa Bárbara, para rua Manaundê, em homenagem à fundadora deste terreiro, mas
sem sucesso até agora. E não são poucos os terreiros que são demolidos, como o
terreiro de Pai Ildérito, em Guarulhos, demolido por ordem dos proprietários logo após
a comunidade religiosa ter ingressado com um pedido de tombamento. Terceiro,
porque no senso comum a figura do tombamento era muito mais familiar e valorizada
do que a de registro de bem imaterial. Como disse um sacerdote, se as igrejas católicas
eram tombadas, havendo ou não missa nelas, os terreiros também teriam de ser
considerados no mesmo de igualdade. Além disso, seria mais fácil defender uma
casa contra agressores alegando ser ali um terreiro “tombado” (porque todos sabem o
44 SILVA, 1995.
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que isso significa) do que “registrado como bem imaterial”. Vê-se que o tombamento
era visto como uma estratégia a mais de resistência cultural e luta contra a
discriminação e o racismo.
A discussão evidenciou também que no caso dos terreiros a própria distinção
entre materialidade e imaterialidade não fazia sentido, visto serem complexos culturais
em que partes do imóvel (barracão, paredes, chão, cumeeira, portas etc.) são vistas
como elementos vivos: recebem oferendas (“dar de comer”) e são dedicadas a algumas
divindades. A abertura de um terreiro implica em “plantar o axé ou o fundamento da
casa (o ariaxé) no solo ao centro do barracão, ao redor do qual as pessoas dançam para
louvar e receber as divindades. Vista como uma espécie de árvore plantada”, cujas
raízes são os antepassados, e os galhos e frutos, as gerações atuais e futuras, a
comunidade sente-se referenciada por este epicentro em que se torna o terreiro.
De qualquer forma, ainda que o terreiro fosse tombado como um todo, a lista
de bens patrimonializados poderia incluir somente as edificações essenciais para o
culto. Por este motivo, foi apresentado uma planta com os princípios gerais da
organização espacial dos terreiros no Brasil (Figura 1) e a partir das plantas baixas dos
cinco terreiros paulistas discutiu-se quais os itens que poderiam compor a lista de bens
patrimonializados. Considerou-se como edificações essenciais aquelas envolvidas
diretamente com o culto público às divindades (o barracão), o culto privativo
envolvendo as iniciações (roncó), a preparação de oferendas (cozinha ritual) e o
alojamento dos assentamentos das divindades (peji e casas dos orixás). Demais
dependências ou edificações, como moradias dos habitantes do terreiro e espaços de
convivência social ou destinados às outras atividades culturais, não foram listadas, o
que facilitaria a autorização em caso de futuras alterações necessárias. Na imagem a
seguir, as edificações essenciais estão assinaladas em traço pontilhado vermelho:
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Figura 1 - Planta baixa do terreiro. Elaboração dos autores
Nos terreiros de umbanda, entretanto, a relação com o espaço (o imóvel da
prática religiosa) não se verifica da mesma forma. Seguindo a lógica dos centros
espíritas kardecistas, nos terreiros de umbanda o espaço é comparativamente menos
importante do que as atividades rituais nele realizadas. E ainda que nos terreiros de
umbanda possa haver pontos de energia localizados espacialmente, como o conga
(altar) ou a “firmeza” na porta de entrada, a cosmovisão do grupo não os torna
imprescindíveis ao culto. Um terreiro de umbanda pode ter sua sede numa casa
alugada, num salão situado numa sobreloja etc. No candomblé isso não é visto como
ideal, pois o contato com o solo (chão) é necessário, e ter um espaço próprio é uma
garantia de que o que se planta ali não será removido.
No caso do Santuário Nacional da Umbanda a discussão, portanto, tomou outro
rumo. Primeiro, porque não se tratava de “um” terreiro de umbanda, mas de um
espaço natural utilizado coletivamente por várias comunidades religiosas. Segundo,
porque a continuidade do Santuário dependia da renovação periódica da concessão de
uso pelo poder público municipal que detinha a posse do espaço. Julgou-se, nesse
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caso, que acautelando o uso religioso do lugar, por meio do registro de bem imaterial,
atribuía-se legitimidade ao seu uso, abrindo possibilidades para a criação de
instrumentos de salvaguarda.
O registro de bem imaterial, segundo o Decreto Federal n. 3551, de 4 de agosto
de 2000, que o instituiu, pode ser realizado em quatro categorias (livros): I - Livro de
Registro dos Saberes (“onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados
no cotidiano das comunidades”); II - Livro de Registro das Celebrações (“onde serão
inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade,
do entretenimento e de outras práticas da vida social”); III - Livro de Registro das
Formas de Expressão (“onde serão inscritas manifestações literárias, musicais,
plásticas, cênicas e lúdicas”); e IV - Livro de Registro dos Lugares (“onde serão inscritos
mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e
reproduzem práticas culturais coletivas”)45.
Em São Paulo, como mencionado anteriormente, o Decreto Estadual n. 57.439,
de 17 de outubro de 2011, seguiu a legislação federal e instituiu os parâmetros de
registro imaterial nos mesmos termos. E, como se vê, os santuários estão previstos no
livro de lugares.
Por fim, com o intuito de aprofundar o debate dessas questões, subsidiar os
processos e promover a participação da sociedade civil, o Grupo de Trabalho em
parceria com a Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria da
Cultura do Estado de São Paulo (UPPH/SEC) e a Superintendência do Iphan/MinC em São
Paulo, realizou o “Seminário Territórios Tradicionais de Matriz Africana
Patrimonializados em São Paulo”, ocorrido em 10 de novembro de 2018 na sede da
Secretaria da Cultura do Estado46.
46 Representando os territórios tradicionais, participaram: Mãe Paula (Axé Ilê Obá), Pai Leo (Ilê
Afro-brasileiro Ode Lorecy); Maria Aparecida e João Rodolfo Linhares (Santuário Nacional da Umbanda);
Pai Carlos (Ilê Alaketu Asé Ayrá); Mãe Carmen e Pai Karlito (Ilê Olá Omi Axé Opô Aràkà); Mãe Pulquéria e
Makota Natália (Terreiro de Candomblé Santa Bárbara) e Doné Iara e Vinicius de Olissa (Casa de Culto
Dambala Kuere-Rhon Bessein). Entre os especialistas, pesquisadores e técnicos, participaram: Marly
Rodrigues (historiadora); Elisabete Mitiko Watanabe (UPPH-Condephaat); Desirré Ramos Tozi (doutoranda
em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA); Vagner Gonçalves (antropólogo), Pedro Neto (cientista social) e
Marcos Monteiro Rabelo (técnico de patrimônio imaterial da superintendência do Iphan em São Paulo).
45 O Decreto criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) aos cuidados do Iphan e instituiu,
no mesmo órgão, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm Consultado em 20 de jan. 2021.
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Todas essas discussões, por fim, embasaram os pareceres técnicos que foram
preparados por Elisabete Mitiko. Os cinco terreiros foram analisados em pareceres
individuais, porém com a mesma estrutura, diferenciando apenas a minuta final de
resolução ou recomendação de tombamento47. O Santuário foi alvo de um parecer à
parte, pois se tratava de uma avaliação distinta da dos terreiros e com a recomendação
final diferente: a de registro de bem imaterial na categoria de lugar48.
Os pareceres sobre os terreiros retomaram as reflexões presentes na instrução
inicial dos processos e as discussões realizadas no Grupo de Trabalho de
Patrimonialização de Terreiros. O estudo apresentou informações sobre os espaços
físicos dos terreiros de candomblé em áreas urbanas, com a planta referida acima e
alguns exemplos das edificações dos terreiros.
Por fim, a proposta de encaminhamento procurou, ao sugerir o tombamento,
que se flexibilizasse as diretrizes em relação às necessidades do grupo para que sua
prática religiosa fosse de algum modo também considerada em conjunto com o bem
tombado.
Os processos contendo esses encaminhamentos foram então enviados aos
conselheiros Afonso Pola e Valéria Domingos, que elaboraram a relatoria. Finalmente,
foram submetidos ao colegiado do Condephaat em sua 1948ª sessão, realizada em 28
de janeiro de 2019. Essa reunião, presidida por Carlos Augusto Faggin, contou com a
presença do Secretário de Cultura e Economia Criativa Sérgio Leitão e
representantes dos terreiros e do GT. Elisabete Mitiko fez uma apresentação dos
processos e dos encaminhamentos sugeridos pela UPPH e os relatores leram o parecer
no qual se posicionaram favoravelmente à aprovação dos tombamentos dos terreiros e
do registro de bem imaterial do Santuário. Foi realizada a votação e o Colegiado,
seguindo os relatores, aprovou por unanimidade o tombamento49.
49 A ata da 1948ª reunião foi publicada no DOE/SP, 14 fev. 2019, p. 35.
48 Parecer técnico UPPH n. GEI-3176-2018.
47 Parecer técnico UPPH n. GEI-3171-2018, GEI-3172-2018, GEI-3173-2018, GEI-3174-2018 e
GEI-3175-2018. A correspondência desses pareceres com os processos é a seguinte (O primeiro número
refere-se ao dossiê preliminar de solicitação de tombamento; o segundo ao parecer técnico que
recomendou a abertura do estudo para tombamento; o terceiro ao processo de estudo aberto e o
quarto ao parecer técnico final): Casa de Culto Afro-Descendente Dambala Kuere-Rhon Bessein
(01145/2013; GEI 578/2018; 81174/18; GEI 3171/2018); Terreiro de Candomblé Santa Bárbara
(01162/2014; GEI 582/2018; 81175/2018; GEI 3172/2018); Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy (01163/2014;
GEI 580/2018; 81176/2018; GEI 3173/2018); Ilê Alaketu Asé Ayra (01214/2016; GEI 590/2018; 81177/18;
GEI 3174-2018); Ilê Olá Omi Asé Opo Araka (01223/2017; GEI 593/2018; 81178/18; GEI 3175-2018);
Santuário Nacional da Umbanda (01227/2017; GEI 637/2018; 81179/2018; GEI 3176-2018).
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Nos meses seguintes procederam-se os trâmites jurídicos e burocráticos que
antecedem a homologação final, com a assinatura do executivo ocorrida em 19 de
dezembro de 2019. No dia 21 de dezembro de 2019 o Diário Oficial do Estado de São
Paulo (pp. 75-78) publicou as homologações e áreas de proteção dos tombamentos dos
cinco terreiros, bem como o registro de patrimônio cultural imaterial do Santuário
Nacional da Umbanda.
CONCLUSÃO
Como se vê, a experiência inédita deste grupo de trabalho em termos de
participação, organização e articulação das lideranças tradicionais de matriz africana,
da academia e dos órgãos de patrimônio construiu um caminho qualificado para que o
Condephaat reconhecesse os territórios tradicionais como patrimônio do Estado de
São Paulo a partir de um processo participativo e dialógico, procurando atender às
demandas dos grupos e aos marcos legais e critérios técnicos.
Houve um amplo debate junto às lideranças tradicionais presentes na
perspectiva de atendimento do que preconiza a Convenção 169 da OIT promulgada pelo
Decreto Presidencial n. 5.051, de 19 de abril de 2004, que tem força de lei no Brasil, e
define um trajeto a ser seguido, pois efetiva direitos aos povos e comunidades
tradicionais, tal como a obrigação do Estado em garantir o protagonismo e
consentimento dos sujeitos de direito na elaboração, execução e implementação de
projetos e políticas públicas sempre precedidas de consulta prévia, livre e informada às
populações tradicionais às populações tradicionais.
REFERÊNCIAS
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penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente,
e outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, p. 1, 13 fev. 1998.
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Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e outras providências. Diário Oficial da
União: Brasília, DF, p. 2, 07 ago. 2000.
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