https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v30n1p48-64
Vol. 30, n. 1, jan/jun, 2024
ISSN: 2179-6807 (online)
CIRCUITOS DO AXÉ, CIRCULAÇÃO E VISIBILIZAÇÃO DA SANTERÍA CUBANA
NA ESFERA PÚBLICA HABANERA
Yumei de Isabel Morales Labañino1
Recebido em: 04/09/2024
Aprovado em: 18/09/2024
Resumo: A partir da década de 90 do século passado cresceu de maneira significativa a
presença de símbolos religiosos na esfera pública cubana, e as religiões afro-cubanas foram
parte essencial neste fenômeno. Começou assim o aparecimento de objetos vinculados à
Santería ou à Regla Ocha em lugares não relacionados com a religião, sendo reconhecido por
uma população não pertencente ao povo de santo cubano. Além disso, ganhou destaque em
espaços onde sua presença era habitual, como museus, mas que tinha passado por um
processo de esquecimento. O objetivo do artigo é refletir sobre a presença na esfera pública
de símbolos da Santería, usando como elemento para a análise a cultura material produzida
para uso religioso. Por este motivo, exploraremos a tríade que se cria entre o mercado, a
casa-templo e o museu.
Palavras-chave: Símbolos religiosos. Objetos. Santería cubana. Mercado. Museu. Casa-templo.
CIRCUITOS DEL ACHÉ, CIRCULACIÓN Y VISIBILIDAD DE LA SANTERÍA CUBANA EM LA ESFERA
PÚBLICA HABANERA
Resumen: A partir de la década de 1990, la prevalencia de símbolos religiosos en la esfera
pública cubana aumentó significativamente, y las religiones afrocubanas fueron una parte
esencial de este fenómeno. Se inició así la aparición de objetos vinculados a la Santería o Regla
Ocha en lugares ajenos a la religión, y siendo reconocidas por parte de población que no es
parte de la religión afrocubana. Ganó protagonismo en espacios donde era habitual su
presencia (museos), pero que habían pasado por un proceso de olvido. El objetivo de este
artículo es reflexionar sobre la presencia de los símbolos de la Santería en la esfera pública,
utilizando como elemento de análisis la cultura material producida para uso religioso. Para ello,
exploraremos la tríada que se crea entre el mercado, la casa-templo y el museo.
Palabras-clave: Símbolos religiosos. Objetos. Santería cubana. Mercado. Museo. Casa-templo.
INTRODUÇÃO
A Santería é uma religião que tem sido estudada de maneira extensa por
pesquisadores cubanos e estrangeiros desde começo do século XX. Autores cubanos
1Antropóloga. Docente no Instituto Politécnico Nacional do México. ORCID iD:
https://orcid.org/0000-0002-0225-7585. E-mail yumeideisabel@yahoo.es
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como: Ortiz (1975; 1996), Cabrera (1994), Valdés (1985) entre outros; assim como
algumas referências nos trabalhos de conhecidos antropólogos como William Bascom
(1969) e Melville Herskovits (1937). Mas, geralmente, as pesquisas se concentram no
estudo dos rituais, cerimônias, particularidades da religião, além das suas
continuidades e rupturas em relação à África, sendo esses os tópicos mais recorrentes.
O presente artigo é parte de uma pesquisa que se centra no estudo dos
objetos2, tomando-os como eixo fundamental para uma aproximação de análise de
alguns dos processos pelos quais passa a Santería cubana. Não focado no interior do
grupo religioso, também vendo suas interações com o contexto da realidade cubana,
especificamente aquelas que se estabelecem entre espaços como museus,
casas-templo e mercado. Tomando como ponto de partida este último espaço,
observamos como se estabelece a presença da Santería no cotidiano dos cubanos.
Para nos contextualizar, veremos primeiro como se apresenta o campo religioso
afro-cubano e suas inter-relações. O campo religioso afro-cubano é um espaço de
convivência de várias religiões que compartilham uma origem ou antecedente na
África, reconhecido na atualidade como uma das marcas mais importantes dos negros
escravizados na cultura cubana. Algumas são propriamente cubanas e outras
procedentes de países vizinhos da área do Caribe; no primeiro grupo3se encontram: a
Santería (também conhecida como religião Lucumí, Regla Ocha ou Complexo Ocha-Ifá),
a Regla Conga ou de Palo Monte, a Sociedad Secreta Abakúa, e por último as Reglas
Arará e a Iyesá (praticamente extinguidas) e o Espiritismo Cruzado. No segundo grupo
estão o vodú e o rastafarianismo que chegaram via emigração e proximidade com seus
países de origem, Haiti e Jamaica. A coexistência entre estas religiões é bastante
pacífica, no sentido de que uma mesma pessoa pode estar iniciada em vários desses
sistemas religiosos, uma particularidade chamada de paralelismo religioso (James,
3ASantería cubana, religião Lucumí, Regla de Ocha ou Complexo Ocha-Ifá; é uma religião basicamente
de ascendência iorubá. Rende culto aos orixás, tem uma concepção do mundo baseada na mitologia de
suas deidades e compreende vários sacerdócios: iyalocha /babalochas, obás e babalawos. A Regla Conga
ou Palo Monte que tem como antecedentes os aportes do conglomerado etnolinguístico Congo-Bantú.
Suas crenças estão centradas, principalmente, nos poderes dos mortos e dos antepassados conhecidos
entre eles mpungo emsambi. A Sociedade Secreta Abakuá, é uma organização social e religiosa
exclusivamente masculina. As Reglas Arará e Regla Iyesá se caracterizam por um pouco alcance na ilha,
se praticam a nível local, principalmente nas regiões centro-sul da ilha.
2Objetos sagrados: a Santería cubana através de sua cultura material. Tese de Doutorado apresentada
no programa de Pós-graduação em Antropologia social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, da Universidade de São Paulo.
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1995). A denominação de regla (regra) seja comum e responde ao significado da
palavra em espanhol, que ideia de algo organizado; neste sentido, essas religiões
começaram a ser chamadas assim entre os anos de 1960 e princípios dos anos de 1970,
a partir dos trabalhos da pesquisadora Lidia Huget (1968).
Na atualidade, é comum observar no campo religioso afro-cubano uma certa
hegemonia da Santería com respeito às outras religiões. Iniciados em outros sistemas
religiosos afro-cubanos manifestam a necessidade de se iniciarem em Ocha e Ifá para
estarem mais completos e ampliar sua atuação religiosa. Este fenômeno deriva numa
série de equiparações entre os orixás, nkisis, loas, guias espirituais, utilizando os
primeiros como exemplo para explicar os outros, criando-se um predomínio do
componente ioruba.
No panorama atual religioso cubano, as religiões afro-cubanas ocupam um
lugar de destaque. Sua presença na vida cultural e social tem se multiplicado
notavelmente; uma mostra disso é a proliferação de quadros, esculturas e canções que
fazem alusão ao universo afro-cubano (com um predomínio do componente ioruba).
Também podemos perceber uma exaltação do negro como parte da sociedade cubana
porque, no final: quien no tiene de congo, tiene de carabalí4, velho recurso usado para
exaltar uma ideia de mestiçagem biológica e cultural em Cuba. Como parte deste
discurso, durante muito tempo foram incluídos nas manifestações artísticas elementos
das religiões afro-cubanas, como dança e música, mas, aos poucos, foram incluídos
outros fatores mais tangíveis, como objetos relacionados com seu corpus religioso, em
espaços públicos.
Esta situação constitui uma mudança radical com o status anterior destas
religiões. Elas sempre estiveram envolvidas, de uma forma ou outra, nas
transformações na sociedade cubana, que essa participação sempre se manteve
oculta, porque os iniciados nos sistemas religiosos afro-cubanos mantinham em
segredo sua filiação religiosa. No entanto, essa situação começou a mudar a partir da
abertura econômica e social observada em Cuba na década de 1990.
E com esta abertura, aumentou significativamente a visibilidade da herança
africana em Cuba, talvez com um matiz muito folclorizado para alguns, mas é inegável
o processo. Estabelecendo uma circulação de saberes, códigos e objetos entre o
4Trecho do poema de Nicolás Guillén, Son número 6.
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espaço religioso e o público. Este último em lugares considerados clássicos para a
exposição (qual vitrine), como museus e galerias, além de outros lugares , como ruas e
avenidas. Nos espaços do cotidiano da população, naquilo que eles consomem como
parte da sua rotina diária.
ENTRE ALEYOS5E SANTEROS, O MERCADO COMO PONTO DE PARTIDA
Um dos âmbitos em que podemos partir para analisar a presença das religiões
afro-cubanas na esfera pública, centrando-nos na Santería (Regla de Ocha), sem
dúvidas é o mercado. No contexto cubano, o nexo entre o mercado e as religiões
afro-cubanas é muito forte e complexo. Por um lado, o mercado é necessário para a
realização dos rituais como fonte de materiais e como parte do ritual. Do outro lado, a
menção do mercado e seu nexo com as religiões afro-cubanas produz mal-estar devido
a toda carga negativa que lhe confere, que a relação entre ambos é resumida na
maioria das vezes sob a acusação de mercantilização destas religiões. Esta circulação
dos objetos entre as lojas e as casas-templo é uma das formas em que a cultura
material produzida com fins religiosos pode ser consumida6.
A partir das novas dinâmicas socioeconômicas que vêm se sucedendo desde
2010, como consequência da mudança do modelo econômico cubano, no âmbito
referente às questões da economia interna, foi promulgada uma lei que viabilizava a
criação de pequenas empresas privadas e ampliava o trabalho por conta própria (sem
vínculo empregatício com o governo). Este último mudava o status das atividades
ligadas estritamente com a chamada infraestrutura das religiões afro-cubanas, que
anteriormente eram catalogadas como atividades do setor informal da economia,
normalizando parâmetros para a comercialização de artigos religiosos. Este decreto
normalizava o status dos vendedores de artigos religiosos completamente, que, em
1993, haviam sido dados passos nesse sentido com a sanção da lei de trabalho por
conta própria, que, em sua lista de profissões, incluía o yerbero (“erveiro”) e o
animalero (vendedor de animais vivos). A normalização trouxe a ampliação do número
6Olharei o consumo especificamente como uma prática cultural (Bourdieu, 1979) que produz um
número de significados de redes colaborativas na qual estão inseridas pessoas que são ou não membros
do grupo.
5Forma em que são chamados na Regla de Ocha as pessoas que não são iniciadas aos orixás.
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de patentes para ofícios que, de alguma forma, estão ligados à religião, como artesãos,
vendedores de flores, costureiras, músicos e dulceros (confeiteiros).Isto, por sua vez,
desencadeou mudanças nas dinâmicas de relacionamento da Santería cubana, tanto
para dentro como fora da comunidade religiosa.
Então, criou-se um circuito comercial de lojas de artigos religiosos que se
encontra em Havana, a partir do qual se criam as pautas do mercado de bens religiosos
para todo o país. Na capital da ilha, se estabeleceu a prática de recepção de muitos
produtos de outras regiões do país, fabricados nas demais províncias. Alguns chegam
quase prontos e terminam de ser elaborados (recipientes feitos de barro dão-lhes o
acabamento, pintura e decoração). Havana também é o lugar onde são recepcionadas
matérias-primas vindas do exterior para a confecção de objetos de uso pessoal (roupas
e guias de conta, entre outros), e de onde saem as tendências de moda seguidas pelos
santeros. Assim, configura-se um quadro que coloca Havana como o ponto principal de
recepção, produção e comercialização de objetos religiosos no país.
Essas redes de socialização vinculadas à circulação de objetos para uso religioso
se estendem para além do território cubano, se expandem para a América Latina, na
atualidade. Esse fenômeno é uma consequência da emigração de cubanos praticantes
da Santería e também da iniciação de pessoas dos países receptores desse movimento
migratório, que cria um trânsito de pessoas e materiais na área. Não obstante, a
Havana se situa como ponto central dessa passagem, sendo um ponto emissor de
conhecimentos, modos de fazer e sociabilidade do grupo religioso.
E, por esse motivo, é o lugar onde podemos encontrar uma maior presença de
objetos e símbolos relacionados às religiões afro-cubanas no espaço público. Por um
lado, no âmbito cultural, em museus, galerias, livrarias e lojas de artesanato, podemos
dizer que essa presença se de uma maneira indireta e, de forma mais direta ou
conectada com o campo afro-religioso, nas lojas propriamente concebidas para esse
grupo.
Na atualidade, a Regla Ocha-Ifá está difundida por todo o arquipélago cubano,
sua presença no cotidiano é visível na maioria das cidades do país. Algumas cidades,
como Santiago de Cuba, Palmira e Bahia Honda, são consideradas atualmente centros
importantes da prática da religião dos orixás, mas a referência com respeito aos modos
de fazer e organizar está em Havana. A capital, junto com Matanzas, é considerada o
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berço da Santería, entre ambas, desde o final do século XIX, se constituiu um fluxo e
refluxo de pessoas e informações que levou à formação do que hoje conhecemos como
a religião dos orixás em Cuba.
Desde essa época, estabeleceu-se a prática de que, no ocidente, ditam-se os
rumos da religião, o que se aplica a todos os aspectos relacionados, incluindo o
mercado de bens religiosos e criando-se nesse lugar o ponto de partida para um
circuito que entrelaça bens econômicos e religiosos (saberes e símbolos).
Partindo da noção de circuito de Magnani, que o descreve como o exercício de
uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos,
equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade
espacial, mas que são reconhecidos em seu conjunto pelos usuários habituais
(Magnani, 2002:23), essa definição de circuito é adequada para olhar o âmbito no qual
se tecem as redes de socialização dos santeros em Havana. Tal circuito é composto por
pessoas, espaços e serviços para os homens e os deuses, numa espécie de
emaranhado por onde circulam os objetos ou coisas (Ingold, 2012).
Ele, o objeto, faz parte de uma circulação que se estabelece entre a religião e a
cultura nacional, onde o espaço de culto (casas-templo), a academia (representada
aqui pelo museu) e o mercado conformam uma tríade em um sistema no qual circulam
pessoas, conhecimento e bens materiais. Contexto similar ao observado por Geertz
(1979) em seu estudo sobre o mercado em Marrocos, no qual o mercado funciona
como um texto a ser interpretado, conectado a outros textos que se entrelaçam
continuamente. O mercado pode ser visto como um ponto intermediário, onde o
objeto ainda não pode ser considerado religioso, porque tecnicamente não está sendo
consumido como tal. Ele é visto como mercadoria (Appadurai, 1991) que, por sua vez,
tem muito a nos contar, uma “história vital” que abarca seu ciclo de vida: produção,
comercialização e consumo. Cada etapa desse ciclo pode ou não estar vinculada à
religião, como no caso dos recipientes transformados em assentamentos, sopeiras, que
inicialmente têm como função conter alimento. Mas essa função passa a um segundo
plano, porque, para os cubanos, esse objeto passou a estar mais associado no espaço
público e privado das religiões, dado que o consumo de sopa não é muito comum no
país devido ao clima quente.
É aqui que a cidade desempenha um papel significativo, ela funciona como
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modo de construção simbólica de determinados grupos (Amaral, 1992). Para os
adeptos do Complexo Ocha-Ifá, Havana emerge como padrão a ser seguido quanto à
relação da religião com o resto dos setores da sociedade, sendo o setor econômico um
exemplo disso. Em especial, se pensarmos que é precisamente essa vista a mais
acessada pelas pessoas no cotidiano, enxergando o mercado como espaço democrático
onde todos confluem na cidade. Embora as pautas de consumo dos santeros cubanos
diferem das de outros grupos com os quais convivem na cidade, elas extrapolam o
espaço geográfico delimitado pelos lugares de culto. Lugares como o mercado também
podem se transformar momentaneamente em pontos de convergência entre grupos.
Um exemplo disto foi, durante muitos anos, o Mercado de Quatro Caminhos.
Ele é um dos símbolos da cidade; perto dele passam os trens que trazem
centenas de pessoas do interior à capital do país. Sua localização serve de porta para
quatro municípios de Havana: Havana Vieja, Centro Havana, o Cerro e Diez de Octubre,
razão pela qual é um dos lugares da cidade com maior trânsito de pessoas. Era uma
praça especializada na venda de artigos de procedência agrícola: verduras, legumes,
cereais e animais vivos, entre outros diversos produtos. Mas, em suas imediações, foi
criada toda uma infraestrutura de pequenos negócios relacionados aos produtos
ofertados no local. Fundado em 1920, foi planejado para ser a praça comercial mais
importante da cidade, segundo a imprensa da época. Próximo ao porto e às principais
artérias da cidade, é de fácil acesso, abraçando quatro ruas principais: daí seu nome
mais recente, "Quatro Caminhos", que para o imaginário popular havaneiro era o único
(ou mais importante) entre os todos os mercados.
No interior, o espaço para a venda era distribuído conforme o tipo de produtos
oferecidos: vegetais, carnes, produtos derivados da carne e animais vivos. A
delimitação do espaço não era inteiramente física; no piso térreo, eram vendidos
alimentos, produtos agrícolas, plantas e flores. Nele, as relações comerciais e
institucionais eram vividas em meio ao turbilhão de gritos, chamadas, propagandas e
todo o frenesi que envolve a dinâmica social dos mercados. Pessoas que
desempenhavam diferentes papéis: vendedores e clientes, turistas que observavam e
tiravam fotos, funcionários de limpeza, mendigos e transeuntes. Devido à
movimentação da região, à proximidade das linhas de trem e à localização do imóvel,
cruzando dois bairros (Jesús María e Los Sitios) com forte tradição, na prática da
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Santería, o mercado sempre foi associado aos santeros, motivo pelo qual nunca foi
alheio ao surgimento de locais para venda de artigos religiosos nas suas imediações,
desde a década de 1930. Naquela época, prevaleciam os objetos associados à liturgia
católica, enquanto os associados às religiões de matriz africana eram oferecidos no
interior das casas de família. Esses pequenos estabelecimentos foram fechados em
1968 por disposições do governo socialista e permaneceram assim até a década de
1990.
O local foi, durante muito tempo, um dos dois mercados em Havana com um
espaço concebido para a venda de animais vivos. Com uma clientela especial para
sacrifícios e festividades religiosas afro-cubanas, esse tipo de venda podia ser
realizado exclusivamente por pessoas que possuíam a licença para tal atividade, e
sempre foi muito restrito. O outro ponto destinado pelas autoridades para esse tipo de
venda, localizava-se na zona sudeste da cidade, no mercado da Virgen del Camino,
perto de uma rotatória e encruzilhada que servia de via principal na região. É curioso
como ambos os mercados se situavam em locais antigos da mesma urbe, ambos em
encruzilhadas, um ao norte e outro ao sul. Além da venda de animais necessários para
os rituais e dos demais objetos adquiridos nas imediações, outra dimensão da
prática da Santería que se conecta com o espaço do mercado. Refiro-me à cerimônia
que fecha o ciclo da consagração ou feitura do santo: a cerimônia do mercado,
realizada no último dia da feitura, quando o iaô sai do quarto de santo.
Por isso, era muito comum encontrar pessoas nessa região da cidade portando
elementos que são relacionados à prática de Regla de Ocha, como pulseiras, colares e
roupas ligados a essa crença. No entanto, pouco a pouco, esses mesmos elementos
passaram a ser vistos fora desse contexto, em outros espaços públicos. Para entender
essa mudança, devemos retroceder ao final do século passado. Nos anos 1990, com o
processo de visibilização das religiões em Cuba, começou a ser mais habitual o uso de
pulseiras e colares por parte dos iniciados na Santería fora da casa-templo e de suas
próprias casas. Na atualidade, o uso de itens religiosos se estende a certas peças de
vestuário.
Por exemplo, dentro da roupa usada para trabalhar na casa-templo as mulheres
usam saias brancas e diferentes cores. Entre essas saias, destaca-se uma combinação
de 9 cores vinculadas a orixá Oyá, que serve como sinal de que essa mulher tem
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faculdades mediúnicas de comunicação com o mundo dos espíritos. Mas é possível
encontrar mulheres usando tais saias na via pública, como roupa do cotidiano, e que
para quem conhece o código da religião reconhece o que ela significa: que a mulher
está fazendo ebó, ganhando uma graça do orixá ou, talvez, de algum de seus guias
espirituais. No entanto, para quem não faz parte da religião, a roupa pode ser
interpretada como uma peça autônoma, tradicional e colorida, que segue o
desenho das saias usadas pelas mulheres camponesas. Então, existe uma convivência
de significado em torno a um mesmo objeto que, saindo de seu lugar de origem, o
mercado, passa por diferentes âmbitos e espaços.
Ver nota ao 7Ver nota ao 8
Algo similar acontece com os assentamentos do orixá Eleguá que podem ser
encontrados e consagrados ou não em diferentes locais nas cidades cubanas. Eles são
colocados nas entradas das casas ou em encruzilhadas para a abertura dos caminhos
para as coisas positivas e também para fechar o passo das negativas. Tradicionalmente,
são colocados atrás das portas, junto com os outros orixás chamados de guerreiros. No
entanto, eles não ficam guardados ou escondidos; são expostos na via pública e
inclusive considerados como um elemento distintivo da cultura cubana.
Durante um congresso sobre religião ocorrido no Hotel Nacional de Cuba, em
8Mulher usando uma saia para Oyá na rua. Habana Vieja, Habana, Cuba Foto de Yumei Morales, 2015.
7Saias numa loja de artigos religiosos ao lado do Mercado de Quatro Caminhos, Havana, Cuba, Foto de
Vagner Gonçalves da Silva, 2010.
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Havana, ao entrar em um dos bares, deparei-me com o que parecia ser uma instalação
dos orixás guerreiros na porta. Ao me aproximar do balcão e perguntar sobre o porquê
da inclusão de um elemento de procedência religiosa na decoração” do bar, o garçom
respondeu: porque ele é parte da cultura. A resposta do garçom parece muito
simples e evidencia o contexto de diálogo contemporâneo entre a Santería e a
sociedade cubana mais ampla, por meio de sua cultura material. Porém, vale lembrar
que os orixás guerreiros, antes de serem parte da sociedade cubana, foram os
guardiões das casas-templo que lutaram pela preservação da religião, a mesmo
contra as pressões da sociedade cubana da época.
No mercado, os objetos são tidos como artefatos que mostram a religião,
funcionam como uma vitrine para os de dentro e os de fora, mas sobretudo para
aqueles que ainda não são parte do grupo, mas que poderão se inserir nele. Na loja, os
objetos também podem ser considerados como uma vitrine, entretanto, com uma
potencialidade diferente: são uma amostra daquilo que pode ser, um possível elo com
o orixá. No entanto, essa leitura corresponde mais com o indivíduo que forma parte de
um sistema religioso. Para os que pertencem ao restante da população, é um mero
objeto que, às vezes, é reconhecido como parte de um legado africano muito presente
na ilha.
O MUSEU COMO ESPO DE “SALVAGUARDA DA CULTURA AFRO-CUBANA
Tendo como ponto de partida a noção de legado, é assim como funcionam os
objetos procedentes da Regla Ocha em outro espaço público, o museu.
Para ilustrar um pouco a respeito, tomarei como exemplo o caso das peças
pertencentes à Sociedad San Antonio. Peças que na atualidade constituem o núcleo
fundamental da Coleção de Etnologia Religiosa do Museu de Guanabacoa, criada em
1964 desde o começo da instituição:
O primeiro diretor da instituição, José Luis Llerena era uma pessoa muito
previdente, e começou a ter a ideia de mostrar as peças. tinha algumas
peças recuperadas, que começou a exibir nas vitrines de lojas aqui em
Guanabacoa, assim começou a primeira coleção. (Entrevista a Grisel
Martínez, museóloga)
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Independentemente de o museu ter um perfil histórico voltado ao município,
desde seu começo foi concebido que as religiões afro-cubanas tivessem um espaço
destacado. Segundo a concepção de seu primeiro diretor, era importante que houvesse
exposições sobre as três expressões religiosas afros mais visíveis: a Santería (Regla
Ocha e Ifá), a Regla de Palo Monte e a Sociedad Abakúa. Estas exposições desde o
começo ficaram na casa principal da instituição (o museu conta com cinco imóveis), e
são as mais visitadas.
A coleção se nutre fundamentalmente de objetos da localidade, com a maioria
das peças procedente de doações da população e assentamentos resgatados pela
oficina regional de Patrimônio. No momento de geração do acervo, foi solicitada a
ajuda do santeros e da população em geral por meio de donativos de objetos. E a
resposta foi muito positiva, tanto que, na atualidade, se mantêm essa prática e se
estende aos visitantes estrangeiros9
Precisamente na categoria de resgatados se encaixa o núcleo forte do acervo:
os objetos provenientes da Sociedad San Antonio ou as coisas de Arcadio” como são
chamados pela população. Nesse grupo estão também contemplados objetos que
pertenceram a outros religiosos falecidos, destacados na região: Sotolongo (Babalawo)
e Margot San Lazaro (iyalocha, descendente litúrgica de Ma Monserrate10)
Uma parte importante do acervo é, sem dúvida, composta pelos objetos que
pertenceram a Arcadio Calvo, celebre santero e palero que faleceu no final da década
de 1980. Arcadio estava à frente da “Sociedad San Antonio”, fundada em 1949 com o
intuito de promover a ajuda mútua entre santeros e babalawos, formada na sua
maioria por seus afilhados de santo e de palo11. A sociedade tinha como sede sua casa
em Guanabacoa (Robaina, 2007). Com a morte dele e de sua esposa Lidia, em 1987, se
estabeleceu um litígio pela propriedade do imóvel, iniciado por um sobrinho, assim
como pelos bens religiosos, reivindicados por uns dos membros da sociedade. Ambas
as demandas foram impostas contra as instituições estatais; a primeira contra a
11 Com esta expressão se denomina as pessoas que foram iniciadas em algumas das regras afro-cubanas.
10 Ma Monserrate, é considerada uma das fundadoras-organizadoras da Regla Ocha junto a Timote
Albear e Rosalia Abreu. Sacerdotisa africana, pertenceu a rama dos Egbados, alem de ser uma das
últimas mulheres em ostentar o grau de Obá. Ela foi uma das responsavel pela perpetuação do culto a
Olokún em Cuba.
9Segundo a Grisel Fraga, que foi durante vários anos diretora da instituição, tem doações de peças de
Venezuela (colares/fios de conta) e de Brasil (vestuário).
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Reforma Urbana12 e a segunda contra o próprio Museu Municipal de Guanabacoa.
Com a morte dele e de sua viúva, a casa-templo não tinha herdeiros
determinados, e o imóvel deveria ser fechado até que algum familiar tomasse posse
dele. Mas durante a cerimônia de ituto13 de Arcadio foi determinado que vários
assentamentos deveriam partir com ele” - quebrados e levados ao mar-, ficariam
alguns: Eleguá, Olokún, Ibeyis para serem cuidados por afilhados próximos a ele. Essas
pessoas continuaram a cuidar dos assentamentos até ao falecimento da Lidia, dois
anos depois. Terminado o velório, a polícia apresentou um mandato da direção de
patrimônio municipal para levar consigo os objetos religiosos da casa de santo, sob a
alegação de que eram peças com valor etnográfico e, por isso, consideradas
patrimônio.
E sim, tais objetos eram patrimônio da identidade nacional, mas de uma
maneira atuante e viva, em função das entidades e da comunidade religiosa. Ao serem
depositados no museu sem o conhecimento do que os orixás e nkisis determinam após
a morte de seu dono, quebravam uma regra de continuidade ritual. Os objetos, ao
serem extraídos dessa maneira de seu contexto, perdiam seu objetivo principal de
comunicação entre homem e a entidade.
O argumento de que os objetos eram patrimônio nacional e parte da cultura
nacional fez com que eles passassem de ser parte da cultura do grupo para serem da
cultura nacional. Os assentamentos de Ocha-Ifá e de Palo Monte deixaram de ser
propriedades da Sociedad de Santo Antonio, eles eram considerados do povo de
Guanabacoa e, por associação, de todos os cubanos.
A cultura é por definição compartilhada. Quando retraduzida em termos
vernaculares, supõe um regime coletivo que sobreposto àquilo que
anteriormente era uma rede de direitos diferenciais. Assim, o uso de
cultura” tem um efeito coletivizador: todos a possuem e por definição
todos a compartilham. (Carneiro, 2009:363)
Os membros da Sociedade levantaram uma denúncia contra a direção
municipal de Patrimônio, mas, pela impossibilidade de apresentarem a documentação
que confirmava a possessão de todos os artefatos, esses passaram para a custódia do
13 Cerimônia que se realiza após a morte de uma pessoa consagrada ao orixá.
12 Instituição governamental que se dedica a fiscalizar os imóveis.
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Museu de Guanabacoa.
Quando apresentei o pedido mostrei o documento onde o nosso grupo
registrado como associação inscrita no Registro de Sociedades, com todos
os pagamentos a a data, me solicitaram então a propriedade de todas as
imagens e objetos que eu disse pertencia à Sociedad de "San Antonio".
Felizmente eu tenho o hábito de salvar tudo e depois de longos meses de
espera, eles foram devolvidos. Alguns, não todos. Mas as coisas de Arcadio,
nada foi devolto (Robaina, 2007:82)
O caso do litígio sobre a custódia dos artefatos e permanência deles no museu
não fez com que o objeto perdesse por completo sua conotação religiosa. Dentro do
museu, o objeto adquiriu outro significado para os santeros, ele passou a ser uma
referência da sua religião. Algo similar aconteceu com as pessoas alheias à religião, que
identificam o museu como uma via para aprender sobre o assunto. A maneira como
esse conhecimento é abordado pelos representantes da instituição é sob a
denominação de patrimônio e, portanto, herança cultural.
Essa maneira de perceber a cultura material da Santería cubana é um reflexo da
situação favorável que, no momento, desfrutam as religiões afro-cubanas, expressada
pelo crescimento dessas religiões e pela maior presença na esfera pública. A
permanência de peças em espaços sociais na qualidade de patrimônio constitui um
giro de 180 graus em comparação com um século atrás, quando a Santería era
perseguida.
O fato de a cultura material ser consumida fora da casa-templo, onde sempre é
considerada patrimônio inestimável para a comunidade religiosa, é representativo da
troca de percepção pela que transitaram as religiões afro-cubanas. E também, fora de
um meio que é associado ao povo de santo, como o mercado, onde esses objetos
constituem a primeira instância em que podem ser adquiridos para serem
transformados e depois levados para a casa-templo.
A CASA-TEMPLO, ONDE OS OBJETOS “MUDAM”
O pertencimento à Santería cubana implica vários níveis de iniciação. Similar ao
sistema do Candomblé brasileiro, a pessoa deve passar por diferentes estágios e fazer
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várias cerimônias de iniciação, que a colocam em um ponto determinado da hierarquia
religiosa. Algumas dessas cerimônias são vistas como passos para a consagração
definitiva: o “fazer o santo” ou coroar o orixá”. Para cada uma dessas etapas rituais, é
imprescindível a utilização de objetos que passaram a ser habitados pelo orixá, a parte
material da religião.
Quando me refiro à parte material, estou fazendo uso de uma categoria nativa,
muito utilizada por meus interlocutores, que surgiu do convívio entre a Regla Ocha e o
Espiritismo cruzado. É muito comum que os praticantes da Santería sejam também
espiritistas e que a entrada na religião dos orixás tenha sido uma indicação das
entidades espirituais para “trabalhar o material”, porque o campo espiritual não era
suficiente para o desenvolvimento do indivíduo. Então, “trabalhar o material” veio a
ser um sinônimo daquilo que pertence ao âmbito da religião dos orixás.
Em cada iniciação realizada por um indivíduo na Regla Ocha é implicada uma
rede de coisas, abrangendo objetos, animais e plantas, e pessoas, as quais são
acionadas a fim de dotar de axé tanto os objetos quanto o neófito. A noção de axé
ocupa um lugar central14 na Santería, sendo considerada uma energia especial, que
pode ser produzida, transmitida, adquirida e desmembrada mediante diferentes
rituais.
Tudo isto acontece na da casa-templo, onde a figura do padrinho (babalorixá ou
babalaô) ou madrinha (ialorixá), mediante as cerimônias de iniciação, transmite parte
de seu axé a seus afilhados. Todos os membros da casa-templo compartilham um axé
originário que dialoga com aquele possuído pelos “irmãos de religião”, sacerdotes e
sacerdotisas que também ofereceram parte de seu próprio axé para a consagração. No
caso do vínculo para fora do grupo com o circuito comercial ou com instituições como
museus, esse se constitui na potencialidade futura e passada do objeto religioso.
Retomando a categoria de “trabalhar o material”, quando o adepto da Santería
passa pelos processos de iniciação, ele es conectando também uma rede de objetos
a uma rede de pessoas e coisas.
No sétimo dia, que marca o final da cerimônia de consagração ao orixá, o
14 Falar de axé na Regla de Ocha, imediatamente é fazer uma identificação com a energia boa; aquela
que faz as coisas acontecerem (Faris Thompson, 2011). Mas o axé é mais que isso. Ele é: poder, bênção,
graça dos orixás e virtude; qualidade positiva da personalidade da pessoa, charme na sua acepção fora
do contexto religioso.
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recém-iniciado faz suas primeiras visitas, acompanhado de sua segunda madrinha, a
oyugbona15. Tradicionalmente, essas visitas são a uma igreja católica e ao mercado,
mas, como parte do movimento de reafricanização, observa-se um movimento de
erradicar essa prática de visitas às igrejas, mantendo apenas as visitas ao mercado. A
primeira visita tem como objetivo agradecer ao santo16 pelo bom curso da iniciação,
além de compor outro ato de purificação, que a feitura em si é percebida como um
ato de purificação.
A segunda visita a ser realizada tem uma relação maior com os objetos
materiais, pois, durante a ida ao mercado, o iaô recolhe produtos agrícolas que depois
coloca como oferenda nos seus assentamentos. O ritual tem um tom lúdico, como uma
espécie de brincadeira na qual o iaô pega as frutas nas barracas como se fosse uma
criança que tenta levar as coisas sem ser percebida. Atrás dele vai a oyugbona pagando
pelas coisas subtraídas, por vezes, tais produtos são ofertados pelos vendedores.
Essa visita ao mercado também simboliza o fechamento de um ciclo que
envolve Eleguá-Exú, além de ser um momento em que o iniciado recebe axé. Segundo
a lógica do sistema, ir ao mercado está recriando as mesmas ações de seus ancestrais,
os orixás, sendo o próprio iniciado o orixá encarnado que retorna a um espaço onde a
deidade costumava ir. O que se procura é uma circulação da energia (axé) ligada ao
comércio que ajude ao recém-iniciado a ter fartura na sua nova vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando como referência a ideia de INGOLD (2012) de que o objeto é limitado,
ele cumpre uma função específica à medida em que é “iniciado” junto com seu
dono e passa a ser uma coisa: um agregado de fios vitais. Esses fios são parte de redes
que conectam as pessoas da casa-templo, os sacerdotes que participam no ritual de
iniciação e as pessoas provedoras dos materiais (lojistas e produtores).
No entanto, esses fios estão se expandindo além do círculo de mercado,
museus e casas-templos. Eles se estendem para além dos sujeitos anteriormente
mencionados, gerando outras conexões com cenários diferentes. não encontramos
16 Segundo as falas da maioria dos iniciados.
15 Oyugbona ajuda a madrinha, a ialorixá, na realização da feitura e na falta dela pode exercer o papel de
madrinha/ padrinho principal.
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apenas vínculos com o mundo acadêmico, com o qual tradicionalmente se
estabeleceram conexões. Podemos encontrar cada vez mais uma tendência de que sob
a perspectiva de que essa religião é um produto cubano com um forte substrato
africano, ela se torna parte da identidade nacional.
Eleguá em esquina do bairro de Centro Habana, Habana, Cuba. Detalhe de foto do site
https://ochanga.tumblr.com/post/84033375220/perro-y-elegu%C3%A1-en-la-esquina-dog-eleggua-on
A presença de Eleguás em esquinas da Havana e de pessoas com roupas usadas
para trabalhar em espaços religiosos como vestimenta do cotidiano tem se
normalizado em toda a cidade. No centro histórico, podemos encontrar mais ainda
exemplos disso: mulheres e homens com roupas que tem uma inspiração no vestuário
dos orixás (sobretudo mulheres com o uso da cor amarela), pequenas lojas de
lembrancinhas com colares para orixás à venda, e Eleguás de bolso são algumas
mostras disso.
Mas por que encontramos esses elementos, para alguns folclorizados, da
Santería como uma forma de expressão da cultura cubana? É porque são diferentes e
exóticos para o olhar de quem não é cubano? Em palavras de muitos de meus
interlocutores do povo de santo cubano (santeros, babalawos, paleros e espiritistas) e
colegas da academia com ou sem pertencimento religioso, isso é parte de um processo
de reconhecimento de um dos pilares fundamentais da cultura cubana: o negro.
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Pós-graduação em Antropologia social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
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