ARTIGO ORIGINAL
DE EDSON ARANTES DO NASCIMENTO A PELÉ: O MAIS DEUS DOS HUMANOS
FROM EDSON ARANTES DO NASCIMENTO TO PELÉ: THE MOST GOD OF HUMANS
DE EDSON ARANTES DO NASCIMENTO A PELÉ: EL MÁS DIOS DE LOS HUMANOS
Georgino Jorge de Sousa Neto[1]
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, Montes Claros (MG), Brasil.
E-mail: georgino.neto@unimontes.br
Data de Submissão: 30/06/2023. Data de publicação: 04/07/2023
Como citar: SOUZA NETO, G.J. De Edson Arantes do Nascimento a Pelé: o mais Deus dos humanos. Revista Eletrônica Nacional de Educação Física, v. 14, n. 21, jul. 2023. https://doi.org/10.46551/rn2022131900072
“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”.
Carlos Drummond de Andrade
23 de outubro de 1940. Adolf Hitler e Francisco Franco encontravam-se em Hendaye, na fronteira entre a França e a Espanha. Um velho farmacêutico foi atropelado gravemente na Capital Federal, o Rio de Janeiro. Fracassaram os entendimentos do Japão com as Índias Orientais Holandesas. Uma mulher brigou com o amante e tentou se matar. Rita Miranda foi condenada a 16 anos e meio de prisão. Bombardeada a base naval de Alexandria. O Flamengo manifesta todo apoio ao ingresso da Portuguesa à Liga de Football do Rio de Janeiro (L.F.R.J.). Morre o Sr. Ildefonso Simões Lopes Filho. Realizou-se, em Belém do Pará, a grande cerimônia religiosa do Círio de Nazaré. Todo o Brasil comemora o “Dia do Aviador”[2]. Das principais notícias publicadas em um periódico da Capital do país, o surgimento de Edson Arantes do Nascimento passa incólume. Nenhuma linha sequer registra o nascimento de um Deus que viria ser chamado de Pelé.
Obviamente não seria possível antever que naquela cidade mineira de Três Corações, em uma modesta casa, o filho de Dondinho e Dona Celeste anunciava ao mundo sua presença, ainda humana e frágil.
FIG. 01: Réplica da casa onde Pelé viveu até os 3 anos em Três Corações/MG
Fonte: Samantha Silva / G1
Falar do nascimento de Edson Arantes é antes de tudo perscrutar uma sentença quase infalível à época: um menino preto que teria pouco futuro para além de se assomar a uma massa de mão de obra barata que alimentava os lucros de uma classe dirigente e dominante de pele clara. A realidade social do negro no Brasil na primeira metade do século XX é permeada pela extrema discriminação e preconceito. Segundo Abdias Nascimento, “até 1950, a discriminação em empregos era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária[3]. Em geral, os anúncios procurando empregados se publicavam com a explícita advertência: ‘não se aceitam pessoas de cor’” (NASCIMENTO, 2016, p. 97). O mesmo autor conclui, a partir da leitura de um cenário social particular do negro, que “nesta teia, o afro-brasileiro se vê tolhido de todos os lados, prisioneiro de um círculo vicioso de discriminação – no emprego, na escola – e trancadas as oportunidades que lhe permitiriam melhorar suas condições de vida” (IDEM, p. 101).
É com este panorama que Dondinho e Dona Celeste se esforçam para criar o pequeno (e ainda humano) Edson Arantes. Na infância já mostrava um especial interesse pelo futebol, mesmo com a mãe implicando para que o menino manifestasse a mesma dedicação nos bancos escolares.
FIG. 02: Foto/documento de Pelé criança
Fonte: Divulgação/Instagram/Pelé
Mudar as condições de vida a partir do ingresso no futebol profissional, embora sendo no senso-comum algo bastante decantado, é muito menos provável do que se imagina. Segundo estudo feito pela CBF, de cada sete mil jogadores da base, apenas um vira profissional, e destes 96% ganham menos de 5 salários mínimos por mês. O próprio Dondinho já experimentara esta sensação de fracasso e desalento. Em relato publicado pela Revista “O Cruzeiro”, em 1971, ele desabafou sobre o seu insucesso no futebol:
Modéstia à parte, o destino só me abriu as portas da fama uma vez. Foi em Belo Horizonte. Havia um amistoso entre meu time, o Atlético Mineiro, e o São Cristóvão, do Rio. O meu futuro iria depender daquele jogo. Até parece que estou vendo a cena na frente de meus olhos. Numa bola dividida, que estava mais para mim, Augusto, o 'becão' que me marcava dentro da área, pegou meu joelho torto no carrinho, e lá se foram todas as esperanças de conseguir o contrato que precisava. Como operação de meniscos era negócio só para rezadeira curar, o remédio foi me fazer de durão e continuar a minha lida, vagando pelo interior acanhado, de onde tinha saído, para não deixar a mulher e os meninos sem comida (O CRUZEIRO, 1971, p. 93).
Sem dúvida, Dondinho foi a grande inspiração de Edson. Se destacando nos campinhos de várzea em Bauru, interior de São Paulo, o garoto já apelidado Pelé chama a atenção de olheiros interessados no futuro que se previa para ele. De acordo com reportagem do periódico A Gazeta, Pelé não era mais do que um menino quando chegou ao Santos no dia 8 de agosto de 1956, antes mesmo de completar 16 anos. Estava assustado. Chegou pelas mãos de Waldemar de Brito, que garantiu ao pessoal do Santos: “Esse menino vai ser o melhor jogador de futebol do mundo” (A GAZETA, 2022).
FIG. 03: Primeira foto de Pelé com a camisa do Santos
Fonte: Acervo pessoal de Pelé
A trajetória vertiginosa de Pelé o alçaria muito rapidamente ao mais alto panteão do futebol mundial. Embora seja enormemente difundida, as estatísticas da carreira de Pelé impressionam, e legitimam (como se fosse necessário) a sua condição sobre-humana, assim coroado Rei:
FIG. 04: Números da carreira de Pelé
Fonte: Portal R7
Mesmo Rei, Pelé não deixou de sofrer com o racismo estrutural[4] e com seus desdobramentos. Tendo sido chamado por Gasolina, Alemão e Crioulo em diversos momentos da carreira, o maior atleta do século XX nunca se engajou explicitamente em uma luta antirracista. A pesquisadora Angélica Basthi afirma que Pelé teve sua primeira experiência com o racismo ainda adolescente, em Bauru, quando começou a namorar uma garota branca. Assim que o pai dela soube do namorico da filha com um menino negro, deu uma surra na garota em público. O relacionamento acabou ali.
Em sua autobiografia publicada no ano de 2006, no entanto, ele descreve uma passagem que marcou a estreita relação entre a condição de jogador e sua raça: durante uma excursão do Santos pela África, Pelé presenciou um momento de tensão racial. No Senegal, a recepcionista branca do hotel onde o time se hospedou chamou de selvagens os negros que tentavam se aproximar dos santistas. Um policial acabou prendendo a mulher. Ela alegou inocência e pediu para que Pelé testemunhasse a seu favor. O jogador se recusou a defendê-la e disse que se identificava com as pessoas que ela havia insultado. “Estar na África foi ao mesmo tempo uma lição de humildade e uma experiência gratificante. Senti que representava uma esperança para os africanos, como o negro que conseguiria fazer sucesso no mundo”, escreveu Pelé.
Vários outros episódios poderiam ser aqui descritos no sentido de destacar a ocorrência do racismo entranhado na sociedade brasileira e que nem mesmo alguém como ele, um semideus, escaparia. Embora sem ter sido combativo contra esta realidade racial, ou assumido um papel de protagonismo na luta antirracista (a exemplo do lutador Muhammad Ali), a trajetória e a genialidade de Pelé contribuíram sobremaneira para o reconhecimento e valorização do negro, em especial no futebol brasileiro (ainda que os avanços sejam tímidos e eivados de retrocessos ao longo do tempo). Como afirmaria Mário Filho, no clássico livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, “havia alguma coisa em Pelé que provocava o respeito de todos. Vendo-o jogar, a multidão se sentia num templo do futebol, onde só se admitia o entusiasmo das palmas” (RODRIGUES, 2003, p. 329).
De fato, Pelé parecia pairar acima da humanidade e de seus complexos mais profundos. A sua (oni)presença fazia minar os sentimentos de desesperança e incredulidade. Ele também conviveu com uma dualidade que marcou grande parte da sua vida. Em si mesmo convergiam e se encerravam dois seres: o humano Edson e a divindade Pelé. Esta relação era explicitada pelo atleta, que costumava falar de si próprio na terceira pessoa, referindo-se ao ser mitológico. A condição dúbia é revelada na charge abaixo, cartunista Alex Soares, publicada em 2019, quando do aniversário de 79 anos do jogador:
FIG. 05: Charge referente ao aniversário de 79 anos de Edson/Pelé
Fonte: https://intertvweb.com.br/charges/o-rei-pele/
Para se ter uma ideia mais aclarada da dimensão de Pelé, destacamos algumas das incontáveis capas de jornais e revistas do Brasil e do mundo que traziam a sua figura estampada:
Fonte:
FIG. 06: Capas de jornais e revistas estampando Pelé
Fonte: Autoria própria.
Pelé inaugurou uma nova era no futebol. A sua imagem permitiu a espetacularização midiática como nunca fora visto. Explorado e explorador, Pelé se mostrava gênio também fora dos campos, no gerenciamento de sua marca. Com ele, a mera diversão ganhou ares de seriedade de um negócio, de um business e marketing esportivo. Assistir Pelé jogar representava a apreciação de entretenimento que sabia cada vez mais lucrar com os seus feitos. Segundo Mário Filho, “em vez de rir a multidão punha-se de pé para bater palmas calorosas de Municipal, de Scala de Milão, de Metropolitan de Nova Iorque” (RODRIGUES, 2003, p. 329).
FIG. 07: Algumas das propagandas e comerciais estrelados por Pelé
Fonte: https://encurtador.com.br/lqHQX
Neste sentido, podemos pensar que:
A imagem, a aparência, a estetização da existência se desdobram na chamada “cultura do espetáculo”, em que a exibição se transforma no objetivo essencial da existência do sujeito, sua razão de ser. A exigência pela performance passa a ter um destaque fundamental, pois, na cultura do espetáculo, se confunde o ser com o parecer. Consideram-se fracassados todos aqueles que não conseguem exercer o fascínio da estetização de sua existência. No esporte percebemos o quanto a valorização pela vitória toma conta do discurso estetizante, passando a ser desvalorizado qualquer outro resultado (VALE, 2003, p.12-22).
A mídia tem especial papel neste cenário de mercantilização, em que Pelé foi estrela maior. A partir dos feitos heroicos e inéditos do Rei, a lógica midiática esportiva é ressignificada e anda pari passu com a noção comercial do futebol.
Assim,
[...] a mídia dá visibilidade, transforma o atleta em herói. Mas se esse não corresponder ele cai em descrença. Mesmo que o atleta tenha alto rendimento, se ele tiver reconhecimento das pessoas a mídia provavelmente o transformará em herói, seja mostrando suas jogadas, lances espetaculares. Por outro lado, se o atleta-herói tem problemas pessoais ou está diminuindo sua capacidade em jogo, ele começa a se tornar ‘humano’ novamente. Deixa de ser mito, afinal, o mito é um modelo a ser seguido (ASSIS, 2013, p. 9-11).
De acordo com Lucena et al. (2015), “as ações mercadológicas e midiáticas criaram dentro do cenário esportivo inúmeros personagens ligados a esse universo, as quais existem a partir da espetacularização do esporte, e da ascensão da indústria cultural na sociedade”. Este contexto permitiu a elaboração de um perfil tipológico, assim definido:
- Atleta-astro: o esportista profissional que, além de atuar como atleta também tem sua imagem vinculada a outras formas de ganho de capital e, por que não, outras carreiras como modelo fotográfico e diplomacia internacional; - Atleta-produto: o esportista profissional que é negociado entre clubes ou organizações financeiras como uma peça que gera lucros (GUTIERREZ, MARQUES E MONTAGNER, 2007, p. 100).
Pelé, de forma pioneira e assim como ninguém, foi ao mesmo tempo atleta-astro e atleta-produto, potencializando a sua imagem para além das quatro linhas do campo de futebol. Ao longo da sua carreira protagonizou um vasto repertório não só de jogadas geniais, como a sua própria vida pessoal também foi exposta e publicizada, com todos os benefícios e ônus de tamanha exposição.
Mais uma vez é Mário Filho que aponta a grandiosidade que se mostrava já nos primeiros tempos do reinado de Pelé. Segundo o jornalista, escritor e memorialista, “em Pelé se sentia toda a grandeza do futebol como paixão do povo, como drama, como destino. Pelé era o próprio destino. O Deus é brasileiro do dito popular” (FILHO, 2003, p. 329). E como Deus, é Pelé que encerra o carma do complexo de vira-latas brasileiro, decantado pelo próprio e famoso irmão de Mário Filho, o também jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Pelé, assim como o Prometido, sentenciava a redenção de um povo: éramos, enfim, superiores.
29 de dezembro de 2022. Bolsonaro se prepara para viajar aos EUA. Papa Francisco pede orações para Bento XVI. Prévia do Censo diz que Brasil tem 207 milhões de habitantes. China retomará emissão de passaportes a cidadãos do país. Novo governo de Israel acirra disputas entre judeus. De tantas notícias publicadas nesta data, nenhuma alcançaria a enormidade da repercussão de uma delas: morre o homem Edson Arantes do Nascimento. O Deus Pelé segue vivo. Diferentemente da invisibilidade noticiosa do seu nascimento, a sua morte é destacada em todo o mundo, em inúmeros jornais, revistas e sites.
FIG. 08: Capas registrando a morte de Edson Arantes do Nascimento.
Fonte: Autoria própria.
Na histórica rivalidade com os argentinos para saber quem foi o maior jogador de futebol de todos os tempos, a inevitável comparação com Maradona é a mais eloquente de todas. Se os argentinos costumam dizer que Maradona foi o mais humano dos deuses, não tenho dúvida em afirmar: Pelé foi o mais Deus dos humanos. Vida longa ao Rei.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M; GUTIERREZ; MARQUES, R. O esporte contemporâneo e o modelo de concepção das formas de manifestação do esporte. Revista da Faculdade de Educação Física da UNICAMP, Campinas, v. 6, n. 2, p. 42-60, 2008.
ASSIS, C. Mitos da contemporaneidade no esporte: um olhar jornalístico sobre atletas de alto rendimento. In: XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Norte. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2013.
LUCENA, Geslaine Farias de; BRUM, Larissa; SERAFIM, Vanessa; BETTINE, Marco. Espetacularização do esporte: influências do atleta na sociedade. In: EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 209, Octubre de 2015. Disponível em: http://www.efdeportes.com/ Acesso em: 22/06/2023.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectivas, 2016.
NASCIMENTO, Edson Arantes do. Pelé: a autobiografia. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
REVISTA O CRUZEIRO, edição 47, ano 1971.
RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
VALE, P. O Esporte de Alto Rendimento: Produção de Atletas no Contemporâneo. Trabalho apresentado na reunião científica do CEAPIA, p.1-22, 2003.
[1] Professor da Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES. Coordenador do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES.
[2] Notícias publicadas no jornal carioca “A Noite”, em 23 de outubro de 1940.
[3] O direito consuetudinário é uma série de costumes, práticas e crenças que são aceitos como regras obrigatórias de conduta pelos povos indígenas e comunidades locais. O direito consuetudinário é uma parte intrínseca dos seus sistemas sociais e econômicos e modos de vida.
[4] Racismo estrutural é quando o preconceito e a discriminação racial estão consolidados na organização da sociedade, privilegiando determinada raça ou etnia em detrimento de outra.