LEI DE INCENTIVO AO ESPORTE: AS INCONGRUÊNCIAS ENTRE SUA CONCEPÇÃO E SUA APLICAÇÃO
Abstract
O artigo 217 da Seção do Desporto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prescreve que “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um” (BRASIL, 1988). Assim, foram
desenvolvidas ao longo dos anos, pelo menos aos posteriores à publicação da Constituição atual, diversas ações de fortalecimento e fomento relacionadas ás Políticas de Esporte no Brasil. Com destaques para a aprovação da Lei Geral do
Desporto, Lei 9.6015/98 ( BRASIL , 1998), que instituiu normas gerais sobre o desporto; a aprovação da Lei n. 10.264⁄2001, a Lei Agnelo/Piva (BRASIL 2001), relacionada ao financiamento do esporte nacional; a criação de um Ministério
exclusivo para o Esporte em 2003; a criação da Lei nº 10.891 de 2004 que instituiu o programa “Bolsa Atleta” em nível nacional (BRASIL 2004) e a criação da Lei 11.438 de 2006, conhecida como Lei de Incentivo ao Esporte (LIE) (BRASIL 2006).
Especialmente sobre a Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), a mesma se enquadra no preceito constitucional citado acima, no sentido que ela foi criada enquanto legislação em prol ao fomento do Esporte no Brasil. Anunciada na II Conferência
Nacional do Esporte, em maio de 2006 pelo então Presidente Lula (arquivo.esporte.gov.br/noticias). Como parte do seu Programa de Governo 2007- 2010 , onde consta: “Apoiar, no Congresso Nacional, a aprovação da Lei de Incentivo ao Esporte.”, fazendo menção ainda neste mesmo plano a manutenção do apoio à realização dos grandes eventos esportivos, o que corrobora com a ideia de que a mesma, poderia ser considerada como um possível legado dos grandes eventos esportivos internacionais ( MAZZEI; YAMAMOTO; CURY ; BASTOS, 2014). Nesse sentido ,em sua justificativa no Projeto de Lei 1367-2003 ( Câmara dos Deputados), o documento menciona a necessidade da criação de outro mecanismo de apoio e fomento ao esporte, tendo em vista que a Lei 10.264/2001, a Lei Agnelo/Piva (BRASIL, 2001), prioriza apenas esportes olímpicos e paralímpicos , e segundo o PL 1367-2003 a Lei de Incentivo ao Esporte, comtemplaria todas as modalidades especialmente as que não são olímpicas e as de criação genuinamente nacional, bem como uma preocupação em disponibilizar recursos
para a indústria brasileira de esportes, para que a mesma pudesse investir na construção de espaços de prática esportiva, a fim de capacitar o Brasil para a realização dos grandes eventos esportivos. Ainda na justificativa, o autor Deputado Bismark Maia, menciona a “obrigatoriedade” no dever do Estado em cumprir o “mandamento “constitucional, como principal objetivo da criação da Lei, para o atendimento amplo do acesso a todos ao esporte. Após o projeto de Lei ser aprovado e tendo sua assinatura em 29 de dezembro de 2006, a implementação prática da Lei 11.438/2006, se deu pelo seu decreto regulamentador, que propõeque a LIE fomente projetos esportivos em sentido amplo nas manifestações tradicionais internacionalizadas do desporto. Assim, a Lei nº 11.438/06, regulamentada pelo Decreto nº 6.180/07, prevê a possibilidade de pessoas físicas (PF) e jurídicas (PJ) destinarem uma parcela do imposto de renda devido em benefício de projetos esportivos elaborados por entidades do setor, após aprovados por uma Comissão Técnica composta por representantes governamentais e membros do setor esportivo e paradesportivo nacional. Configura-se, pois, como uma forma alternativa de recolhimento do imposto de renda (IR), ou seja, ao invés de recolher todo o montante devido pelas vias tradicionais, os contribuintes poderão destinar um percentual deste valor (PJ = 1% e PF = 6%) “diretamente” em benefício de projetos desportivos previamente aprovados, servindo como mais uma estratégia (de política pública) para o desenvolvimento do esporte brasileiro. Porém o desenvolvimento deste tipo de política pública, não se dá apenas pelo órgão que a regula, ou seja, pela Secretaria Especial de Esportes – Ministério da Cidadania, mas sim, é dependente de todo um “sistema” que envolve outros atores, como por exemplo, os proponentes (associações esportivas e prefeituras), seus beneficiados, e as empresas patrocinadoras. Todos esses atores compõem um ciclo de relações necessárias que podem influenciar, ou não, na sua aplicação, e na efetividade da proposta contida na Lei de Incentivo ao Esporte – LIE no momento de sua concepção, que é o fomento do esporte. Portanto, a efetividade de uma lei se verifica, antes de tudo, pelo conhecimento de sua existência pelos seus destinatários finais ou até beneficiários. Além disso, não basta conhecer sua existência se o destinatário ou beneficiário da norma não compreende seu conteúdo (MENDES; BRANCO, 2015).
É possível identificar que a partir da Criação do Decreto 6.180/2007, que regulamenta a Lei 11.438/2006 e organiza a sua aplicação prática, instituiu os atores no processo de implementação: As associações proponentes de projetos( terceiro setor), a comissão de análise de projetos ( governo federal), as empresas patrocinadoras (setor privado e implicitamente o público beneficiário e os serviços de elaboração de projetos e captação de recursos, sendo estes responsáveis diretos pela sua aplicação prática, consequentemente pela sua efetividade. Segundo o significado da palavra, efetividade significa alcançar os resultados desejados da melhor maneira possível, é quando a tarefa atinge seus objetivos plenamente, ou seja, traz o impacto esperado para a ação (CERTO; PETER, 2005; MAXIMIANO, 2006). Diferentes pesquisas relacionadas ao financiamento do esporte no Brasil foram realizadas ao longo dos anos, principalmente depois da Lei n. 10.264⁄2001, a Lei Agnelo Piva (BRASIL, 2001), e também sobre a LIE, podem ser identificados variadas produções acadêmicas.
A partir da análise documental , nos documentos oficiais desde o projeto de lei até as portarias e decretos, o que em uma análise preliminar foi possível identificar divergências entre os motivos que levaram à sua concepção e a sua aplicação na prática, sob o ponto de vista da atuação dos atores , pudemos observar: Comissão de Análise de Projetos: Alguns estudos foram desenvolvidos no sentido de se avaliar a aplicação da lei sob diferentes aspectos, seja para a verificação de quais manifestações esportivas foram mais beneficiadas pela Lei de Incentivo ao Esporte (BASTIDAS; BASTOS, 2011); seja para análise dos montantes de projetos aprovados, já que de acordo com Cavazzoni e Bastos (2010), 55,32% dos projetos aprovados pelo Ministério do Esporte no eríodo agosto de 2007 a maio de 2008 pertencem à manifestação do Esporte de Rendimento. Essa constatação entra em contraste com a própria orientação da Comissão de Análise da LIE, que determina a não-concentração dos projetos por manifestação esportiva (BRASIL, 2007). Proponentes: Os proponentes são responsáveis pela proposição de projetos, de modo que necessariamente precisam enquadrar suas ações nas manifestações esportivas, além da apresentar metodologia adequada à ação. Um estudo sobre a efetividade da LIE em projetos existentes no Estado do Rio de Janeiro, nos revelam que os proponentes tem dificuldades desde a fase de elaboração dos projetos até a fase de prestação de contas, assim, há um distanciamento entre os três setores envolvidos (O primeiro setor – governo, o Segundo Setor – Setor privado e o Terceiro Setor – Instituições esportivas) e que provoca a inefetividade da LIE, no sentido que os projetos não são aprovados, ou sua prestação de contas é falha, e consequentemente os mesmos não possuem continuidade condizente com proposta em longo prazo para o desenvolvimento esportivo (SILVA, 2015). Além disso, o estudo evidenciou que o desconhecimento da estrutura normativa (Lei, Decreto e Portarias) aliado ao complexo e burocrático procedimento de elaboração dos projetos fragiliza ainda mais a utilização da LIE por parte das entidades esportivas.(SILVA, 2015).
Ainda, as organizações esportivas proponentes precisam atender requisitos para certificação, dispostos na Portaria 115/2018 caso optem pela manifestação rendimento, sendo uma pequena associação ou um cube social organizado , dispondo ou não de recursos, sem qualquer diferenciação, ou seja, há uma divergência entre os princípios de boa governança , aplicados na portaria sobretudo no que diz respeito à equidade. (VITÓRIO; MAZZZEI, 2019). Empresas patrocinadoras: Segundo Silva, Borges e Amaral (2015), A lei tem indicativos de aproximação com as estratégias neoliberais, à medida que transfere as responsabilidades do Estado em direção ao setor privado (pessoas jurídicas) e setor privado não lucrativo (pessoas físicas). O setor privado tem utilizado da dedução fiscal para a melhoria da imagem das empresas e instituições, em busca da obtenção indireta de lucro. O que frequentemente leva ao patrocinador a apoiar mais as atividades de rendimento, pela sua visibilidade nacional e internacional. Não há nenhuma diferenciação no que diz respeito aos incentivos, independente da manifestação esportiva, o que contrasta com o artigo 2017 da Constituição Federal, onde temos a premissa de que é do dever e competência do Estado promover e fomentar a prática desportiva, prioritariamente para o Desporto Educacional e em casos específicos para o Rendimento.
O público beneficiário: Implícito na legislação, o público beneficiário não obedece a nenhum critério, ou mesmo controle, ainda que haja indicativos de possíveis fraudes de valores recebidos por atletas e ex atletas, gestores, e funcionários através de sobreposição de outros recursos como o bolsa atleta, Lei Piva entre outros. O que diverge da justificativa inicial do projeto de Lei, no momento de sua concepção, que a legislação seria para o atendimento de todos, principalmente para aqueles que não possuíam outra fonte de incentivo.
A partir desta breve análise, é possível identificar essas incongruências, entre a justificativa da criação da lei e a sua aplicação, o que é um fator bastante importante, tendo em vista que segundo dados do portal esporte.gov.br foram aprovados até 2020, 2.840 projetos, captaram recursos e assinaram o termo de compromisso, ou seja, entraram em execução ; E ainda segundo o portal foram destinados para esse mesmo período mais de 2 bilhões de reais a projetos esportivos de diferentes manifestações e modalidades esportivas. Como podemos observar, a Lei de Incentivo ao Esporte, é um dos principais programas do Governo Federal, e deveria se sustentar sob o princípio Constitucional, pelo qual inclusive, se baseou a sua concepção. Infelizmente, conforme os resultados apresentados, essa legislação está ainda muito distante do atendimento de sua proposta inicial, seja pelo não entendimento dos atores que fazem parte do ciclo dessa política pública, seja pela falta de acompanhamento e disposição na adequação dos princípios iniciais de sua proposta, por parte do órgão regulador principal da LIE. Por esse motivo se torna um fator decisivo para fins de utilização da LIE a identificação de fatores de sua aplicação , ou seja, compreender contextualizar e identificar os melhores caminhos a serem seguidos, aproveitando oportunidades e compreendendo as ameaças e dificuldades, a fim de minimizá-las, e principalmente tornar claro o papel de cada um para que esta Lei produza seus efeitos tal como a sua própria concepção, que vai muito além de utilização dos recursos e envolve o fomento / desenvolvimento do esporte
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References
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