REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM
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INTRODUÇÃO
A atividade pesqueira é tida como uma das mais
perigosas, haja vista os acidentes e doenças que acometem os pescadores, em
todo o mundo1,2. A pesca industrial, por exemplo, apresenta longas
jornadas de trabalho, com manejo de maquinaria pesada associada a altas taxas
de mortalidade3. Em estudo na costa turca do Mar Egeu, constatou-se
que os pescadores sofrem com problemas muculo-esqueléticos (como discopatias,
tensão muscular e reumatismo), problemas nos olhos, nariz e aparelho
geniturinário, tabagismo, etilismo. Esses pescadores, em geral, têm trabalho
intenso, cumulativo durante o ano e estão fora dos sistemas de proteção social2.
Outro exemplo está entre os pescadores escoceses, cuja
a rotina de trabalho contribui para um estilo de vida repleto de comportamentos
de risco, como o tabagismo, a alimentação feita em intervalos irregulares e com
ausência de frutas e verduras, predispondo-os a doenças metabólicas e crônicas
não transmissíveis1.
Cabe ressaltar que a pesca artesanal também apresenta
graves problemas de saúde e segurança para os pescadores, sendo complexificados
pelo cenário de precarização e as relações desiguais com a pesca industrial. Os
pescadores dessa modalidade enfrentam os típicos desafios de uma atividade não
assalariada, com relativa autonomia da gestão, mas que está imersa na
informalidade, com péssimas condições de vida e sem acesso aos serviços de
saúde do trabalhador e proteção social4.
Corroborando, uma investigação com pescadores da Baía
de Guanabara, Rio de Janeiro, Brasil, constatou que esses trabalhadores estão
expostos a uma situação de precariedade devido aos vários fatores de risco e
agentes patológicos que lidam diariamente, resultando em acidentes com as
embarcações, com os apetrechos de pesca, com o próprio pescado, afogamentos,
além de estarem expostos à grande radiação e variações climáticas; fatores que
são potencializados pelas condições de
vida e falta de proteção social5.
Convém salientar que, ao longo do século XX, o
crescimento e a expansão dos processos produtivos para transformação de
energias e materiais para produção de matérias-primas e bens de consumo se
ampliaram consideravelmente, possibilitando uma crescente integração econômica,
com crescimento populacional e econômico. Paralelamente, ocorreu a degradação
ambiental e da saúde, com repercussões negativas para os sistemas ecológicos, o
que afeta diretamente a atividade pesqueira. Isso porque estas mudanças
ambientais têm acarretado o esgotamento e diminuição na quantidade de peixes
aptos à pesca e que, junto com a desvalorização dos produtos comercializados,
agravadas pelo aumento do custo da produção, implicam a elevação da tensão por
maior produtividade, prolongamento e intensificação das jornadas, que,
obviamente, traduzem-se em mais acidentes e adoecimento para os pescadores6.
Aqui, entende-se que o caso particular desses trabalhadores
compõe a “questão da saúde dos trabalhadores”, consoante a proposição de Souza7,
quando afirma que essa problemática se constitui a partir do antagonismo entre
capital e trabalho. Portanto, no interior de uma sociedade organizada a partir
da exploração da classe trabalhadora, depreende-se um processo contraditório no
qual ao mesmo tempo em que se produz/acumula riqueza num patamar inédito na
história, os produtores dessa riqueza (os trabalhadores) ficam relativamente,
no seu conjunto, mais pobres. Tal contradição se expressa de diversas maneiras,
como na degradação da saúde dos trabalhadores sob exploração.
Essa condição geral varia no tempo, no espaço e por
categoria profissional, o que demanda a investigação particular de casos como o
dos pescadores. Além disso, a inserção da problemática em diversas áreas do
conhecimento permite a abordagem a partir da perspectiva da Enfermagem, ainda
mais considerando que “[...] a enfermagem pretende alcançar o desvelamento de
um ser, o ser humano (indivíduo, família, comunidade [inclua-se aí, a classe
social])”8: 7. Em uma perspectiva crítica, “volta-se ao atendimento
de demandas específicas decorrentes da sociedade de classes, com implicações no
processo histórico-social de constituição e atuação da [própria] enfermagem”9:
20.
Assim, apesar de os estudos aqui referenciados
tratarem da temática em um escopo amplo, no âmbito das Ciências da Saúde,
convém trazer à tona o seguinte questionamento: o que a Enfermagem, em
específico, tem produzido sobre a saúde dos pescadores? Responder esse
questionamento implicou a realização dessa pesquisa, com o objetivo de analisar
a produção científica da Enfermagem sobre a saúde dos pescadores, nos últimos
dez anos completos (2008 – 2018).
Este estudo se caracteriza como uma revisão
integrativa de literatura. Esse tipo de estudo “[...] é a mais ampla abordagem
metodológica referente às revisões, permitindo a inclusão de estudos
experimentais e não-experimentais para uma compreensão completa do fenômeno
analisado. Combina também dados da literatura teórica e empírica, além de
incorporar um vasto leque de propósitos: definição de conceitos, revisão de
teorias e evidências, e análise de problemas metodológicos de um tópico
particular” 10: 103.
Esse tipo de revisão se desenvolve em seis fases
distintas, a saber: identificação do tema ou elaboração da pergunta norteadora,
busca ou amostragem na literatura, coleta de dados, análise crítica dos estudos
incluídos, discussão dos resultados e apresentação da revisão integrativa10.
Diante disso, definimos a seguinte pergunta norteadora: o que a Enfermagem tem
produzido sobre a saúde dos pescadores?
Foram realizadas duas buscas: uma na base de dados
Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando a combinação das palavras-chave
“Enfermagem” and “Pescadores”; e
outra na PubMed – US National Library of Medicine, utilizando “Nursing” and “Fishermen”. Foram excluídos os
artigos repetidos, teses e dissertações, outros documentos legais e/ou técnicos
e os artigos publicados antes de 2008 ou depois de 2018. Como critérios de
inclusão, após leitura dos resumos, observou-se se os artigos possuíam relação
com a temática estudada, escritos nos idiomas português, inglês ou espanhol, se
foram publicados em revistas da Enfermagem ou se, pelo menos, um dos autores
era enfermeiro.
Para análise, os artigos foram caracterizados quanto à
autoria, ano e revista de publicação, objetivo e metodologia. Também foram
classificados quanto aos níveis de evidência, considerando os seguintes
critérios: nível 1: resultados de meta-análise de múltiplos estudos clínicos
controlados e randomizados; nível 2: resultados obtidos em estudos individuais
experimentais; nível 3: resultados de estudos quase-experimentais; nível 4:
resultados de estudos quantitativos descritivos ou estudos com abordagem qualitativa;
nível 5: relatos de caso ou de experiência; e nível 6: opiniões de
especialistas ou resultados de revisões que possuam foco distinto da revisão em
curso.
Além disso, procedemos com a análise temática dos
artigos, identificando os aspectos mais recorrentes, agrupando-os em núcleos
temáticos de discussão.
A busca na BVS resultou em dezesseis artigos. Após
aplicação dos critérios de exclusão, restaram sete e todos eles foram
encaminhados para a análise após a leitura dos resumos. O resultado da busca na
PubMed apresentou dez textos, sem nenhuma repetição. Foram excluídos cinco
artigos publicados antes de 2008. Dos cinco artigos restantes, dois não foram
publicados em revistas de Enfermagem e nem tinham autores enfermeiros, restando
três artigos mantidos após leitura dos resumos. Não houve repetição entre as
duas bases utilizadas para busca.
Com isso, a amostra final deste estudo foi composta
por dez artigos, sendo sete deles publicados em revistas brasileiras (seis
disponíveis em português e um deles apenas na língua inglesa) e três em
revistas internacionais (todos em inglês). Quanto à metodologia, os três
artigos internacionais possuíam abordagem quantitativa. Já entre os artigos das
revistas brasileiras, havia: dois de abordagem qualitativa, duas revisões
integrativas, um relato de experiência e um estudo quanti-qualitativo. Um
panorama das principais características desses artigos pode ser observado na
tabela 1, a seguir.
Tabela 1 Artigos publicados em periódicos da Enfermagem sobre a
saúde dos pescadores incluídos na revisão
Autores |
Ano de publicação |
Título |
Periódico |
Objetivo |
Metodologia |
Nível de evidência |
Ribeiro,
Saboia e Pereira11 |
2017 |
Consumo
de álcool entre pescadores: uma revisão integrativa |
Revista
de Pesquisa Cuidado é Fundamental (Online) |
Sintetizar
a produção científica quanto ao consumo de álcool entre pescadores. |
Revisão
de literatura |
6 |
Ribeiro,
Saboia, Souza e Moreira12 |
2015 |
A
saúde de pescadores artesanais e ocorrência de feridas cutâneas: novos rumos
para a enfermagem |
Revista
de Pesquisa Cuidado é Fundamental (Online) |
Sintetizar
a produção científica sobre a saúde de pescadores que tragam reflexões sobre
feridas cutâneas. |
Revisão
de literatura |
6 |
Ribeiro
e Saboia13 |
2015 |
Educação
popular em saúde com pescadores: uma experiência fora da “zona de conforto”
da enfermeira |
Revista
de Pesquisa Cuidado é Fundamental (Online) |
Refletir
sobre uma atividade educativa participativa desenvolvida com um grupo de
pescadores artesanais, de uma comunidade no município de São Gonçalo-Rio de
Janeiro por meio dos pilares da educação popular em saúde. |
Relato
de experiência |
5 |
Ribeiro,
Saboia e Souza14 |
2015 |
Impacto
ambiental, trabalho e saúde de pescadores artesanais: a educação popular em foco |
Revista
de Pesquisa Cuidado é Fundamental (Online) |
Discutir
as condições de trabalho e saúde de pescadores artesanais da Baía de
Guanabara–RJ, Brasil. |
Estudo
Qualitativo |
4 |
Ribeiro,
Saboia e Souza15 |
2016 |
Saúde
e trabalho de pescadores artesanais da comunidade Cassinú-RJ, Brasil: (in)
visibilidade social e luta pelo reconhecimento |
Revista
de Pesquisa Cuidado é Fundamental (Online) |
Discutir
as condições de saúde e trabalho de pescadores artesanais da colônia de
pescadores do Gradim Z-08, na comunidade Cassinú. |
Estudo
Quanti-qualitativo |
4 |
Cavalcante,
Pessoa
Júnior, Freire, Cavalcante e Miranda16 |
2016 |
Representações
sociais de pescadores com lesão medular: repercussões e trajetória de vida |
Revista
Brasileira de Enfermagem |
Analisar
as representações sociais da trajetória de vida dos pescadores artesanais com
lesão medular vítimas de acidente por mergulho nas praias do litoral Norte do
Rio Grande do Norte |
Estudo
Qualitativo |
4 |
Cavalcante, Pessoa Júnior, Faro, Torres e
Miranda17 |
2017 |
Spinal cord injury due to
diving accidents and stress among artisanal fishers |
Texto
e contexto Enfermagem |
Analisar
a presença de estresse e seus sintomas entre pescadores artesanais afetados
por lesão medular por mergulho |
Estudo
quantitativo descritivo |
4 |
Chen, Huang, Peng, Guo, Chen, Jong e Lin18 |
2011 |
Effectiveness of a health promotion
programme for farmers and fishermen with type-2 diabetes in Taiwan |
Journal of
Advanced Nursing |
Examinar o
controle de diabetes e capacidade de autocuidado dos agricultores e
pescadores após a introdução de um programa de promoção da saúde e equipe
multi junto a pequenos grupos de base comunitária. |
Estudo
quantitativo quase-experimental |
3 |
Wang, Chen, Lai, Chen e Chen19. |
2014 |
The effectiveness of a Community-based
health promotion program for rural elders: a quase-experimental design |
Applied
Nursing Research |
Examinar os
efeitos de programa de saúde baseado na comunidade na mudança de estilo de
vida, indicadores fisiológicos e escore de depressão entre idosos de duas
áreas rurais. |
Estudo
quantitativo quase-experimental |
3 |
Ganesan,
Subbiah e Michael20 |
2015 |
Associated factors with cervical
pre-malignant lesions among the married fisher women Community at Sadras,
Tamil Nadu |
Asia-Pacific Journal of Oncology Nursing |
Identificar
os fatores associados às lesões pré-malignas da cérvice entre pescadoras
casadas residentes nas áreas costeiras de Sadras, Tamil Nadu |
Estudo
quantitativo descritivo |
4 |
Todos os artigos foram publicados em revistas de
Enfermagem e possuíam pelo menos um de seus autores graduado em Enfermagem.
Cabe destacar que três artigos possuem os mesmos três autores12, 14, 15
e que dois entre estes também são autores em mais dois artigos11, 13.
Esses cinco artigos11-15 foram publicados na mesma revista,
revelando o caráter endógeno e de pouco alcance dessa produção. Ratificando
esse caráter, outros dois artigos16, 17 também apresentam a
repetição de três autores; e mais dois19, 20 compartilham, também,
um mesmo autor.
O ano de maior publicação foi 2015, com quatro
publicações. Os anos de 2016 e 2017 vêm em seguida com duas publicações cada.
Os anos de 2011 e 2014 apresentam uma publicação. Os demais anos (2012, 2013 e
2018) não apresentam publicações, o que indica que a temática ainda é pouco
explorada pela Enfermagem. Apesar disso, como a maior parte dos artigos (nove
entre dez) se concentra nos últimos cinco anos completos, tem-se um indício de
que o interesse pela temática esteja aumentando.
Constatou-se os baixos níveis de evidência dos
estudos, tendo em vista que o maior nível
detectado foi 3 (em dois dos estudos internacionais8, 9).
Apesar disso, os estudos qualitativos abordam aspectos relevantes acerca do
universo subjetivo dos pescadores, como a perspectiva dos pescadores sobre seu
trabalho e vida14, as formas de lidar com sua recuperação após lesão
medular16 ou a luta pelo reconhecimento social da atividade15.
Esses achados, assim como outros aspectos precisam ser confirmados por estudos
de maior abrangência e com outras abordagens metodológicas, a fim de
diversificar a análise.
Para discutir os resultados obtidos no que diz
respeito aos conteúdos/conclusões dos artigos, identificou-se os principais
aspectos abordados por eles, agrupando-os nos seguintes núcleos temáticos:
perfil sociodemográfico e trajetória de vida; principais problemas de saúde dos
pescadores; e formas de enfrentamento dos problemas.
Perfil sociodemográfico e trajetória de vida
Inicialmente, convém salientar que a característica
que se sobressai no trabalho da pesca, atualmente, consiste em seu caráter
informal, sobretudo no âmbito artesanal11. Além disso, essa modalidade
de pesca sofre com a dinâmica desigual estabelecida pela pesca industrial,
manifestando o ethos da sociedade
capitalista, na qual há centralidade na produção, no lucro e na desigualdade que lhe é peculiar.
O motivo que impulsiona e determina o processo de
produção capitalista é a maior autovalorização possível do capital; isto é, a
maior produção de mais-valia, portanto, a maior exploração possível da força de
trabalho pelo capitalista. Contemporaneamente, a precarização do trabalho, com
altos índices de informalidade, se revela uma das principais vias de
materialização desse processo de valorização, consoante se percebe entre os
pescadores7.
Isso posto, cabe descrever algumas
características sociodemográficas dos pescadores. Nesse quesito, houve maior
prevalência do gênero masculino14-17, com alguns estudos apontando
100% de homens entre os participantes14, 17. Com efeito,
pode-se reportar à divisão sexual do trabalho, tendo em vista que há
participação indireta das mulheres no auxílio à atividade pesqueira,
descascando camarões ou desfiando siris, por exemplo15. Porém, um
dos estudos desenvolveu investigação apenas com pescadoras casadas (n = 250),
numa cidade costeira na Índia, quando se identificou um perfil de pouca
escolaridade e baixo nível econômico-social entre elas20.
Quanto à idade, a maior amplitude de faixa etária foi
de 18 a 70 anos14, com significativa presença de idosos de 68 anos
ou mais18,19. Outros fatores apontados dizem respeito ao sentimento
de desvalorização e invisibilidade, além de impotência diante da degradação
ambiental, a consequente redução da matéria-prima da pesca e a baixa
escolaridade, registrando-se um índice de 12% de analfabetismo distribuído em
todas faixas etárias14.
O dualismo “prazer e dor” se revelou presente no
trabalho informal dos pescadores: através desta ótica é evidenciado o descaso
quanto a questões como saúde, moradia, saneamento básico e educação desta
população. Nos depoimentos do grupo de
pescadores participantes da pesquisa, percebem-se visões contraditórias que ora
revelam a dor de uma categoria de trabalhadores à margem das condições de
trabalho e saúde esperadas e desejadas; e ora o contentamento por realizarem
uma atividade que tem alta representatividade pessoal, ensinada por seus pais e
que lhes dá prazer14. Não à toa, a
atividade vem sendo associada ao uso abusivo de álcool, tendo em vista que essa
dualidade psico-afetiva se traduz em sofrimento que contribui para a busca de
alternativas de fuga, supostamente encontradas no etilismo11.
Contudo, apesar de a pesca ser uma profissão passada
de geração em geração, através das falas dos pescadores participantes do
estudo, foi evidenciada uma expectativa em relação a quebra da tradição,
espelhada através da insatisfação com a situação em que são submetidos. O
dualismo reaparece em falas que revelam a sensação de liberdade que os
pescadores artesanais parecem sentir, supostamente livres de uma relação
empregado-patrão, mas que, ao mesmo tempo, demonstra insatisfação, pois quase
100% deles afirma não querer que seus filhos continuem na atividade pesqueira15.
Nessa questão temos um retorno de sinais que parecem
estar ligados à precarização do trabalho do pescador, hoje modulada pela
relação predatória estabelecida com a pesca industrial, o que revela a
mistificação da (pseudo)liberdade que sentem, uma vez que mesmo assim não estão
“imunes” aos efeitos das relações capitalistas.
Principais
problemas de saúde dos pescadores
Nos estudos revisados, são apresentadas pelos
pescadores diversas doenças/queixas, que se associam às questões ambientais a
que são expostos, sobrecarga de peso, inadequação postural e risco de lesões
cutâneas. Um dos artigos salienta que as lesões caracterizam uma realidade
comum na vida de muitos pescadores, sobretudo em consequência de ataque de
peixes12.
Os ferimentos variam de simples com o anzol e facas
até casos mais graves que necessitam de internação hospitalar para conter
hemorragias. As principais partes do corpo atingidas são as mãos (80%),
seguidas de pernas (17,1%), braço e pés (5,7%), rosto, regiões variadas e
joelho (2,8%). Sobre o tratamento das lesões, é mencionada a aplicação de
substâncias utilizadas de acordo com a cultura local, como por exemplo, o pó de
café, o que favorece a contaminação dessas lesões. Destaca-se que a propensão a
acidentes aumenta, considerando que é raro o uso de equipamentos de proteção
individual15.
Sobre lesão medular, dois16,
17 dos dez artigos discorrem acerca das
consequências agudas e crônicas que envolvem os vários sistemas: geniturinário,
gastrintestinal, respiratório, epitelial, cardiovascular e nervoso, ressaltando
os índices de casos temporários e permanentes, que afetam em sua maior parte
adultos jovens do sexo masculino a nível torácico. Nesse quesito, destaca-se as
reverberações psicológicas e emocionais ante a situação de enfrentamento dessas
sequelas, o que pode chegar até a restrição de mobilidade e, portanto, com
mudanças substanciais no modo de vida e trabalho.
Uma da revisões11 traz um dado
bibliográfico relevante, porquanto 88,6% dos pescadores artesanais são
consumidores ativos de álcool. A realidade de vida somada a fatores como a
precariedade em que desenvolvem a atividade pesqueira, sem vínculos
trabalhistas ou suportes sociais podem ser indicados como condicionantes dessa
situação. Com isso, o alcoolismo se estabelece trazendo com ele consequências
graves, como complicações nos sistemas cardiovascular, gastrointestinal e
nervoso.
Dois estudos18, 19 foram desenvolvidos na
mesma comunidade em Taiwan, sendo que um destaca a diabetes tipo 2 como
problema de saúde recorrente e que traz inúmeras outras consequências, a
exemplo daquelas no sistema nervoso ou na circulação periférica18. O
outro trata de aspectos mais gerais e, como a população investigada foi, majoritariamente,
idosa, aponta-se problemas ligados ao declínio de algumas capacidades
fisiológicas, além da hipertensão arterial sistêmica19.
Em estudo realizado na costa indiana20,
percebeu-se que as pescadoras apresentam alguns fatores de risco para o câncer
de colo de útero, como pouca escolaridade, baixo nível econômico-social, uso de
pano guardanapo sanitário e tabagismo. Na pesquisa, constatou-se que 71,2% das
mulheres apresentavam achados anormais após exame citopatológico e 2,4% já em
estádio de lesão cancerosa.
Não se identificou a problematização dessas questões à
luz das teorias da Enfermagem nem houve ênfase à dinâmica do processo de
Enfermagem, o que consiste em ausência relevante, tendo em vista se tratar de
periódicos da área e com autores enfermeiros. Apesar disso, dois artigos18,
19 vislumbram o autocuidado como horizonte da intervenção que fizeram em
estudo quase-experimental, inclusive avaliando o pós-intervenção a partir da
capacidade dos indivíduos desenvolverem o autocuidado. Ainda que indiretamente,
tal horizonte aproxima esses estudos da Teoria de Enfermagem do Autocuidado.
Formas
de enfrentamento dos problemas
A maior parte das intervenções propostas para o
enfrentamento dos problemas de saúde dos pescadores gira em torno da promoção
da saúde e prevenção de sequelas das doenças, tendo a educação popular em saúde
como a principal estratégia para a efetivação.
Vale lembrar que, segundo Vasconcelos21, a
educação popular em saúde pode ser compreendida como um modo particular de reconhecer
e enfrentar os problemas de saúde mediante o diálogo com a população, o
respeito às suas culturas, o reconhecimento dos seus saberes como válidos e a
problematização da realidade tomada como referência, agindo como um dispositivo
de críticas sociais das situações vivenciadas por indivíduos, grupos e
movimentos, permitindo a visão de fragmentos que estavam invisíveis e
ideologias naturalizadas como realidades, favorecendo a liberação de
pensamentos e de atos ativos para a mudança social.
Nesse contexto, os pescadores não são meros
consumidores das orientações advindas das atividades educativas, sendo atores
de sua saúde e multiplicadores do saber compartilhado na busca pela
transformação social. Levando isto em conta, quatro dos dez estudos13, 14,
18, 19 abordam a temática aqui discutida.
O primeiro estudo13 discorre acerca de uma
atividade educativa que permitiu conhecer singularidades e desafios enfrentados
pelo grupo, além de planejar em conjunto com os próprios pescadores
intervenções para os principais problemas que afetavam a comunidade. Nesse
estudo, destaca-se a importância de o profissional de saúde sair de sua zona de
conforto, sendo a educação popular uma estratégia eficaz de interação,
inclusive, permitindo conhecer melhor os problemas de saúde dos trabalhadores.
O segundo14 se baseou em uma coleta de
dados através de entrevista semiestruturada, evidenciando o descaso em relação a questões como saúde,
moradia, saneamento básico e educação desta população. Ancora-se na educação
popular como importante forma de resistência e luta, inclusive para lidar com
as questões particulares de seu corpo, degradado pelo trabalho, ou da
degradação do ambiente, sua fonte de subsistência.
Os outros dois estudos18, 19 ocorreram na
mesma comunidade, sendo fruto da análise da implantação de um programa de
promoção da saúde entre agricultores e pescadores em Taiwan. Através de atuação
multidisciplinar, o programa desenvolvia ações de avaliação do estado de saúde,
educação e aconselhamento. Em um deles18, o foco específico foi a
diabetes tipo 2 e, após a intervenção, conseguiu-se melhorar a capacidade de
autocuidado dos participantes e convencer os 37 indivíduos de alto risco a
aceitarem tratamento para melhoramento da função nervosa e da circulação
periférica. No outro estudo19, dois grupos receberam a intervenção
do programa, sendo que em um grupo as ações foram executadas por estudantes de
Enfermagem e no outro, por apoiadores comunitários. O primeiro grupo obteve
melhorias significativas nos comportamentos de autoproteção. No segundo grupo,
o principal resultado foi a melhoria dos níveis pressóricos, mas sem evidência
de que isso esteja ligado a quem executou a ação. Em ambos os grupos, houve
melhoria nos indicadores fisiológicos gerais.
Assim, a educação popular em saúde se mostra fecunda
para o enfrentamento dos problemas coletivos presentes nessa categoria
profissional. Algumas temáticas revelam possuir proeminência na realidade dos
pescadores, como o alcoolismo, a forma como se lida com a imagem corporal após
os ferimentos cutâneos e lesões medulares, a prevenção das consequências do
diabetes e envelhecimento; a educação ambiental, a organização coletiva para o
enfrentamento da precarização do trabalho ou para entender a relação entre
pesca artesanal e industrial. Como prática transversal, a educação popular em
saúde deve ser vista na perspectiva da participação social, compreendendo que
as verdadeiras práticas educativas somente têm lugar entre sujeitos sociais,
atuando através de uma perspectiva dialógica e emancipadora.
A realização dessa revisão integrativa proporcionou identificar os
principais aspectos abordados na literatura: o perfil sociodemográfico e
trajetória de vida (predominantemente homens, de baixa renda e imersos em
relações precárias de trabalho), problemas de saúde (entre estes, destacam-se
lesão medular e consumo de álcool) e o enfrentamento dos problemas, com
destaque para as lutas por reconhecimento.
Especificamente para a Enfermagem, apesar de essa análise ter se
debruçado sobre artigos publicados apenas em periódicos da área, com autores
enfermeiros, não houve diálogo com as teorias da Enfermagem, nem conexões
substanciais com o processo de Enfermagem.
Obviamente, a pouca produção identificada sobre o tema nos
periódicos da área consistiu, ao mesmo tempo, em uma dificuldade e uma limitação
deste estudo, mas que não inviabilizou a realização dessa análise preliminar.
Com isso, contribuiu-se para conferir maior visibilidade a essa temática no
âmbito da Enfermagem, trazendo reflexões sobre suas lacunas e subsidiando o
planejamento de possíveis estudos a serem realizados.
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