REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM
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INTRODUÇÃO
A
dimensão cognitiva das representações sociais da religiosidade possui seu
fundamento na definição histórica, tradicional e clássica do termo. Essa
dimensão, assim como a religiosa encontram-se, historicamente para a maioria do
povo brasileiro, no centro da vida cotidiana. De acordo com alguns teóricos o
transcendente e o divino não são uma instância abstrata para os latinoamericanos
como um todo. São uma realidade existencial quase tangível nas mais variadas
situações, gerando atitudes e conformando decisões que possuem relevância para
as diversas áreas da vida humana, inclusive a saúde1.
Somada
a essa dimensão cognitiva, podemos dizer que as pessoas vivendo com Vírus da
Imunodeficiência Humana (HIV) apresentam, como estratégias de sobrevivência
social, o ocultamento da síndrome. Assim, podem continuar a vida como pessoas
consideradas socialmente normais, sem serem acusadas e discriminadas, seja no
âmbito familiar ou no contexto social ou do trabalho. Neste último, a omissão
do HIV é uma forma de manter o emprego, uma vez que, tendo o seu segredo
revelado, os indivíduos correm o risco de sofrer preconceitos. As dificuldades
de relacionamento familiar são uma constante na vida dos que acabaram revelando
sua condição de saúde, e que, salvo raras exceções, enfrentaram o preconceito2.
Estudar
as Representações Sociais que é um conjunto de conceitos, proposições e
explicações criados na vida cotidiana, equivalem, na nossa sociedade, aos mitos
e crenças das sociedades tradicionais; podem ainda ser vistas como a versão
contemporânea do senso comum e essas representações da espiritualidade e da
religiosidade no contexto do HIV/Aids ocorre pela memória social da síndrome
estar relacionada ao castigo divino, bem como ao estigma e ao preconceito ainda
existentes3.
Ao
abordar a religiosidade/espiritualidade, relacionadas ao contexto da saúde,
diversos estudos encontram dificuldades de aprofundamento, devido ao
reconhecimento confrontado, como forma de avaliação, no processo saúde-doença.
Com relação à aids, este fato ganha particular importância, dada a carga
simbólica presente em sua construção psicossocial e biomédica e à presença marcante
da ancoragem da síndrome em pestes e castigos religiosos, fomentando, ainda
mais, o preconceito circulante na sociedade 1-4.
Pensando nesse
contexto definiu-se como objetivo de estudo analisar as representações da
religiosidade e da espiritualidade para as pessoas vivendo com HIV, a fim de
estimular iniciativas de pesquisa acerca do tema em questão.
MÉTODOS
Este
estudo utilizou-se abordagem qualitativa, descritiva, fundamentada na abordagem
processual da teoria das representações sociais. A Abordagem Processual possui
a definição de representações sociais mais difundidas, consiste naquela
descrita como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com
um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a
um conjunto social3. O campo escolhido para o desenvolvimento do
estudo foi o ambulatório de um Hospital Escola do Estado do Rio de Janeiro, por
ser um centro de referência na assistência as pessoas vivendo com HIV. Participaram da pesquisa 32 pessoas vivendo com HIV que
realizam o seu tratamento na referida instituição. As entrevistas foram
realizadas de março a outubro de 2015. Teve parecer aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob Protocolo nº
699.220/2014.
Foi
construído pelos autores dois instrumentos para a coleta dos dados, um
questionário de caracterização sócio demográfica e um roteiro de entrevistas
semiestruturado. A captação dos participantes foi feita na sala de espera do
ambulatório, mediante convite informal e o consentimento livre e esclarecido
dos sujeitos. A transcrição das entrevistas foi feita pelos autores. Os
critérios de inclusão adotados foram que os participantes tivessem idade acima
de 18 anos e que fizessem o acompanhamento no referido serviço.
Para
análise das entrevistas utilizou-se o software ALCESTE 4.5, com o uso da
técnica de análise hierárquica descendente de conteúdo textual. O ALCESTE é um
software criado na França em 1979 por Max Reinert, para o sistema operacional
Windows, que possibilita analisar quantitativamente os dados textuais, tendo
por base as leis de distribuição do vocabulário nos textos transcritos ou
escritos, permite o estudo dos tipos de representação
presentes no texto, em que os processos de constituição da representação social
podem participar da interpretação das classes e da identificação das
representações através da busca de elementos que indiquem a ancoragem e a
objetivação nas classes resultantes da análise Alceste5.
RESULTADOS
No
que tange à caracterização dos sujeitos, destacam-se a maioria são homens e a
mediana de tempo de diagnóstico foi de 14 anos, com mínimo de 1 e máximo de 30
anos. Quase metade dos sujeitos nunca enfrentaram internações hospitalares em
decorrência da aids. Todos os participantes utilizam antirretrovirais, Com
relação a outras variáveis, mais da metade dos sujeitos são casados, quase a
metade possui apenas o ensino fundamental completo, quase totalidade refere que
acredita em Deus.
O
corpus de análise foi composto por 32 entrevistas identificadas como unidades
de contexto inicial (UCI). O ALCESTE dividiu o corpus em 650 unidades de
contexto elementar (UCE), que representam as unidades de análise de texto. As
UCE continham 23.067 palavras, formas ou vocábulos distintos que, após a
redução dos vocábulos aos seus radicais, resultou em 558 palavras analisáveis.
O
corpus de análise foi divido pelo software em dois grandes blocos distintos,
sendo o primeiro bloco composto pelas classes 1 e 2 proveniente da primeira
segmentação das UCE e que possuem diferenças significativas das classes 3 e 4
que compõem o segundo bloco.
Observou-se
que no primeiro bloco, denominado “o HIV/Aids ao longo do tempo: construções
sociais e vivências dos sujeitos”, engloba tanto a classe 1, chamada de “As memórias
sociais do convívio com a síndrome: entre o passado e presente”, que
corresponde a 27% do corpus analisado, contendo 145 UCE, quanto a classe 2,
denominada “o enfretamento social e cultural da síndrome: preconceitos,
estigmas e atitudes dentro do grupo social de pertença”, que possui 26% da
analise com 135 UCE.
O
segundo bloco, denominado de “As diferentes facetas da Espiritualidade e da
Religiosidade” é constituído pelas classes 3, nominada “relação do Divino com o
Humano: a religiosidade e a espiritualidade
e suas representações para pessoas que vivem com o HIV/Aids”, com 28% do
material analisado, o que corresponde a 152 UCE, e pela classe 4, chamada de “A
religiosidade em sua dimensão comunitária: acolhimento, boas ações e
preconceitos”, com 19% do material analisado e 99 UCE.
Bloco 1: O HIV/Aids ao longo
do tempo: construções sociais e vivências dos sujeitos
Classe 1: As memórias
sociais do convívio com a síndrome: entre o passado e presente
Essa classe traz uma
dimensão cognitiva das Representações Sociais ligadas à definição da síndrome
em três diferentes conceitos, quais sejam, como “doença” triste, como normal e “doença” infecciosa, descrevendo a dificuldade de
adaptação com o uso da medicação e seus possíveis efeitos colaterais.
“A aids para mim é uma doenca triste. Eu
nao queria estar tomando remédio, mas para mim, sinceramente, eu pensei que
fosse me afetar. No comeco foi bem difícil, eu nem lembro porque eu considero a
mesma coisa que eu era. Não sinto nenhum efeito graças a Deus (Unité n° 0158)”.
A UCE abaixo
exemplifica uma atitude mais positiva frente à síndrome e ao tratamento, dando
uma ideia de transição de conceito da doença triste para a normal. Viver com a
aids foi retratado, para este sujeito, a partir da normalidade do cotidiano,
desde que se siga corretamente o tratamento.
“Para
mim, a aids é isso. Viver com aids é normal, desde que você tome todos os
remédios. Graças à ciência, eu peguei o tratamento em uma fase bem adiantada,
eu já peguei os antirretrovirais (Unité n° 0180)”.
Outra dimensão
importante em relação à síndrome foi de doença infecciosa. Esta dimensão traduz
a representação ligada ao processo infeccioso da aids, existindo também uma
memória ligada às doenças que estigmatizaram a história do ocidente, o que gerou,
e parece que se estende até a atualidade, uma memória de epidemias,
mortandades, dissolução social, segregação de grupos sociais e explicações
religiosas para estes fenômenos.
“uma
doença infecciosa como tem agora a dengue, o zika virus, como na idade media
teve a lepra, que eu não me lembro bem-como que-se chamava, mas que a gente
hoje chama vulgarmente de lepra (Unité n° 0179)”.
A vivência do
HIV/Aids requer um tempo de adaptação e o posterior controle sobre a síndrome,
seus sinais e sintomas e a familiaridade com os antirretrovirais. O uso
medicamento é percebido como comprovador de consequências positivas, associado
à melhor perspectiva de vida e ao aumento da adesão ao tratamento.
“O tratamento eu nunca abandonei, tanto
que eu desde 2008 uso a mesma medicação. foi tão boa a minha reação ao remédio,
aos antirretrovirais. tem ate um número nesses laboratórios que me mandou
parabéns. eu tomo os remédios e não sinto nada, só me da sono (Unité n° 0198)”.
A
adesão ao tratamento se configura como uma questão importante e atual, em que
se configura como essencial para a manutenção da vida e sua qualidade na
convivência com o vírus. Se, por um lado, os medicamentos podem se configurar
como um invasor cultural na vida dos pacientes (se você perguntar um nome de um
antirretroviral desse eu não sei responder), por outro, há um processo de
relacionamento que permite a identificação por suas características, gerando a
adesão que se deseja e o controle das manifestações clínicas da síndrome.
Classe 2: O enfretamento
social e cultural da síndrome: preconceitos, estigmas e atitudes dentro do
grupo social de pertença
As relações
interpessoais estabelecidas com o grupo de amigos, conhecidos ou da sua
comunidade, refletem um conteúdo positivo de universo pessoal das pessoas que
vivem com HIV/Aids, presente em atividades simples do cotidiano e sociais e os
vínculos que os mesmos estabelecem com a vida, como um “sorriso” descrito na
primeira UCE ou uma “conversa” relatada na segunda UCE.
“vou
dizer um fato. eu estava subindo enquanto uma senhora estava vindo da casa da
minha filha mais velha, ela estava subindo chateada. eu passei por ela, sorri e
perguntei se estava tudo-bem. ela disse que não estava não, agora esta. E cada
coisa que esta ruim, coloca uma mão naquele que você
sabe que vai segurar sua mão com toda forca e vai te levantar (Unité n° 0133)”.
O apoio do grupo social de convivência mais
próxima, fora do âmbito do trabalho ou da unidade de saúde, se configura como
um importante aspecto do enfrentamento da aids e da situação de se ver com
quadro mórbido como este. Observa-se, com base nos discursos, o apoio
institucional prestado pelos profissionais de saúde guiados por conteúdo
clínico-terapêutico, o que termina por gerar, assim, confiança. O apoio, no geral,
parece ter um impacto na diminuição dos acontecimentos negativos produzidos
pelo grupo.
“ele
assim, nossa senhora, ele sofre muito ate mesmo quando ele e resgatado pra um
hospital ele continua sofrendo muito porque ele e obrigado a ficar preso no hospital
de loucos lá, não pode fugir pra lugar nenhum, e horroroso depois-que ele sai
do vale (Unité
n° 0387)”.
A aids recupera a situação de segregação de
objetos com vistas à impedir a transmissão do vírus.
Chama a atenção o fato de que este processo pode ser observado no comportamento
das pessoas com as quais se convive ou se faz presente simplesmente pela
possibilidade do comportamento do outro, o que mostra a força do preconceito e
do estigma interiorizados pelas pessoas que vivem com o HIV/Aids.
“de repente você está deprimida. como eu
já vi aqui no hospital chegar, receber a notícia, falar que não está com isso e
sair batendo o pé, reclamando, xingando, dizer que vai fazer outros exames (Unité n° 0150)”.
Com base nos dados apresentados e descritos, a
representação social dessa população está ligada a um processo de naturalização
da síndrome em sua dimensão biológica ao longo do tempo, inclusive levando ao
controle e não à morte, mostrando um processo de cronificação da doença.
Destaca-se, então, que há, no conjunto deste primeiro bloco uma naturalização
da biomedicina da síndrome, bem como de sua tecnologia, ao passo que a sua
dimensão social e simbólica ainda possui fortes elementos das suas primeiras
décadas, causando segregação e sofrimento. Se a naturalização biológica e a
evolução tecnológica impediu o crescimento ou a
manutenção nos níveis de mortalidade e morbidade, a manutenção de sua dimensão
simbólica negativa, ainda continua gerando mortes sociais e civis.
Bloco 2: As diferentes facetas
da Espiritualidade e da Religiosidade
Classe 3: A relação do
Divino com o Humano: a religiosidade e a
espiritualidade e suas representações para pessoas que vivem com o HIV/Aids
Essa
Classe apresenta um conteúdo marcadamente ligado à espiritualidade e à
religiosidade e a todas as outras questões que a elas se relacionam no
cotidiano da vivência do HIV/Aids, do seu tratamento e do uso da terapia
antirretroviral. Pode-se observar, na constituição da categoria, diversos
léxicos que se relacionam diretamente à dimensão da espiritualidade e da
religiosidade, bem como a seres transcendentes e a atos dos fiéis na relação
com estes seres ou com estas dimensões da profundidade humana.
Como
já destacado, os sujeitos se debruçam sobre a definição entre religiosidade e
espiritualidade. A primeira questão que surge de modo bastante expressivo é que
estes conceitos não é uma abstração para os sujeitos, mas estão sempre
relacionados a questões práticas, quer seja relacionadas
à síndrome ou às da existência de um modo geral.
“Os problemas vem, você pode morar em um quarto ou em uma
mansão, se o problema é para você, não adianta você correr, é seu! É assim que
eu levo a vida. Religiosidade é você praticar e ajudar. Eu acho que, para mim,
ser evangélica, espírita, seja a religião que for é você praticar (Unité n° 0129)”.
Se,
por um lado, há um reconhecimento da irrevogável situação humana de
enfrentamento dos problemas cotidianos da existência, por outro, a
religiosidade é definida como uma prática que transcende as particularidades de
uma ou outra religião, apresentando-se como uma característica essencial à sua
conceituação em si mesmo. Há, no entanto, uma pequena especificação desta
prática, que é a de ajudar, embora não haja uma adjetivação desta ação.
Esta
praticidade relaciona-se também aos benefícios que os próprios indivíduos possuem
no exercício da religiosidade, como a paz, a bênção e o conforto.
“Religiosidade
para mim é um modo de ter fé, uma paz interior, uma bêncão que a gente está
sempre buscando e não importa o caminho que seja, a religião que seja. É
realmente uma parte de conforto, religiosidade. Para mim é isso (Unité n° 0582)”.
Neste
caso, parece existir uma matriz subjacente a estes componentes cognitivos da
representação social em que a religiosidade deixa de ser algo estritamente
sociológico e institucional e passa a ser uma força motriz benéfica em direção
a si mesmo e ao outro, tendo como quadros iniciais ou gerais a proposta de
crescimento humano em si mesmo e em suas relações com os demais seres humanos
com os quais convive.
“Religiosidade
para mim são as pessoas que tem fé. Eu tenho fé, acredito no meu Deus e para
mim é isso: acredito no meu Deus. Não sou frequentador de nenhuma religião, mas
para mim religião é isso. É você ter Deus no coração, coisa que eu tenho (Unité n° 0005)”.
A crença neste ser
superior denominado de Deus se constitui como a verdadeira religião, em
contraposição às religiões criadas pelo homem, citadas pelos sujeitos como o
catolicismo e o cristianismo. Embora não se perceba uma crítica explícita às
religiões institucionais em si, pode-se ressaltar que a crença, a fé, a
presença da divindade no âmago humano fazendo o bem ao seu espírito e a
construção ou descoberta de um caminho próprios para se chegar a este Divino
são atitudes positivas propostas pelos sujeitos.
“Mas acho que entendi, então: espiritualidade é tudo que eu não
enxergo, não vejo, não alcanço, mas sei que existe, que me sustenta. O fato de
eu buscar estar conectado com o máximo de espiritualidade que eu posso, me auxilia, sem-duvida, no
enfrentamento da aids (Unité n° 0333)”.
Segundo a tradição
cristã, a divindade decidiu, de maneira irrevogável, permanecer junto à sua
criação e, mais especificamente, aos seres humanos. Desta maneira, quando a
missão de Cristo se encerra do ponto de vista tangível na história da salvação,
ele é substituído pela terceira pessoa da Trindade que, sendo a divindade que a
tudo plenifica e frutifica, agente da própria criação do mundo na mitologia
cristã, possui a capacidade de levar os cristãos à plenitude de humanidade,
fato que leva estes sujeitos a associar a definição de espiritualidade com a
presença e a relação com o Espírito Santo.
Isto
se torna ainda mais forte com a fala da imprescindibilidade das presenças de
figuras como Jesus e Espírito Santo no processo de espiritualidade:
“Eu
entendo que, como cristão, eu entendo que todo ser humano tem que tratar sua
vida espiritual e tratar a vida espiritual, eu entendo que somente com o
Espírito Santo, somente com Jesus (Unité n° 0505)”.
Aqui já se percebe
uma discursividade relativa a uma espiritualidade específica, a cristã, em que
a figura do próprio Espírito Santo ganha uma prioridade sobre a de Jesus.
Diferente das visões anteriores expostas até o momento, aqui ganha destaque a
visão exclusivista do caminho cristão, não permitindo a expressão de outras
sendas e construções espirituais. Outro aspecto apresentado, relaciona-se à sua
dimensão prática, especialmente no que tange à religião e sua influência no
cotidiano das pessoas que enfrentam a aids.
“com
religião, ela ajuda a você quando está naquele momento difícil. Você sabe que
tem um Deus que pode todas as coisas. Tem coisas que a gente tem que passar
nessa vida mesmo, não é porque eu sou evangélico que Deus vai me livrar. Tem
coisas que o homem faz e ele não vai fazer (Unité n° 0090)”.
“A
minha religião influencia no meu viver com a aids, pois, para mim, é a base.
Deus é que me dá forca, me dá vigor, me dá ânimo para seguir o dia-a-dia (Unité n° 0260)”.
Destaca-se a reiterada
afirmação da influência da religião no viver com a aids, mas deve-se ressaltar
que a importância desta influência não se dá na adoção de práticas rituais e
obediência a preceitos como é costume e comum nas religiões mais tradicionais,
mas sim na possibilidade de contato com o Divino que, ao menos para parte dos
sujeitos, parece ter relação com os quadros religiosos que subsidiam a sua
visão de mundo. A ajuda se concretiza no enfrentamento dos momentos difíceis,
uma vez que tem por base a crença em um ser onipotente, o que, de maneira
natural, gera força, vigor e ânimo para seguir o dia-a-dia.
“Nesse momento, você percebe que tem que
se autoajudar, procurar Deus e isso tudo me ajuda. Se eu tenho paz, eu consigo
ter paz e harmonia dentro da minha doença e consigo conversar e ajudar ao meu
próximo
(Unité n° 0464)”.
A religiosidade e a
espiritualidade deixam de ser uma opção racional de adesão a uma crença ou a um
exercício individualista e autocentrado, para se transformar em uma prática que
envolve a própria pessoa em questão, mas que o impele a sair de si mesmo e a ir
em direção aos demais que estão ao seu redor e que necessitam de ajuda e da
presença daquele que já construiu, mesmo que de maneira parcial, uma
experiência espiritual e religiosa. Ressalta-se que os sujeitos não
especificaram se se trata da espiritualidade e/ou da religiosidade,
possivelmente em função desta dimensão prática eliminar diferenças conceituais.
Classe 4: A religiosidade em
sua dimensão comunitária: acolhimento, boas ações e preconceitos
A
classe apresenta um conteúdo marcadamente ligado à religiosidade e à aids, bem
como ao processo de preconceito e discriminação vivido pelas pessoas que vivem
com o HIV/aids. Esta interpretação mostra-se ainda mais forte quando se
considera a presença de palavras como relação e tabu. As variáveis que mais
contribuíram para a formação da classe foram à religião católica e o sexo
masculino.
Pode-se
levantar a hipótese de que a adesão religiosa dos sujeitos possa estar na base
de representações sociais mais arcaicas. Esta representação com fortes
elementos negativos acerca da síndrome desdobra-se, ainda, nas representações
acerca dos pacientes:
“As pessoas da minha religião veem as pessoas com aids como
coitados, do tipo assim, o coitado é doente e vai morrer daqui a pouco (Unité n° 0522)”.
As construções
simbólicas da aids são tão fortes que este objeto representacional possui
ancoragem marcada pelas concepções religiosas dos distintos grupos religiosos,
mais frequentes em igrejas pentecostais e neopentecostais e no movimento
Carismático Católico.
A
origem da síndrome e a permanência da epidemiologia da aids nos níveis em que
estão na atualidade é relacionada à ação do opositor a Cristo, o seu contrário,
o Anticristo. Os sujeitos destacam a existência de um grande preconceito e
tabus, fora e dentro das religiões, ou seja, na sociedade em geral:
“eu/ pelo menos evito, não comento, não
falo. Com certeza as pessoas em-geral veem
as pessoas que vivem com aids assim. O grande tabu existe, um grande
preconceito, isso/ realmente ainda existe. não por mim, mas eu já vi (Unité n° 0013)”.
Se, por um lado, há o
reconhecimento da existência desta realidade no cotidiano das pessoas que vivem
com o HIV/Aids, há, por outro, a explicação de que é a falta de conhecimento
que está na base deste fenômeno social.
“independente de qualquer doença.
Infelizmente existe um preconceito na religião com relação a aids, mas não só
na minha religião, eu acho que isso em qualquer religião, mesmo fora de
religião as pessoas tem esse olhar crítico em relação a aids, por não conhecer (Unité n° 0521)”.
Torna-se importante
destacar, ainda, duas temáticas presentes nos dados empíricos, quais sejam, a
cura divina e as ações positivas das religiões em face da aids e das pessoas que
vivem com o vírus. No que tange à cura divina, os sujeitos trazem os relatos
acerca desta realidade em seu grupo religioso:
“E difícil falar como as pessoas da minha
religião veem a pessoa com aids
porque ate agora eu ainda não vi, nunca ouvi alguém falando, eu já vi ha muito
tempo no Pedro grita falando que ela foi curada (Unité n° 0071)”.
Ressaltam-se as ações
positivas dos grupos religiosos em face da síndrome e das pessoas que vivem com
a aids, que se caracterizam basicamente pela orientação aos fiéis e o
acolhimento através da ajuda, da oração e do apoio:
“hoje,
as pessoas da minha religião veem
a aids de forma mais comum, pois e bem orientado, em
varias entrevistas que eles orientam, eles chamam atenção de muita gente.
quando eles chamam a gente para uma sessão, eles falam a respeito disso, eles
estão sempre orientando para as pessoas não se envolverem porque o mundo aceita
(Unité n°
0274)”.
DISCUSSÃO
Pode-se observar duas
ações distintas dos grupos religiosos, uma interna, voltada aos seus fiéis, que
é a de orientação acerca da aids, tornando-a como uma “doença” comum, ao mesmo
tempo em que há, neste processo de formação informal, um objetivo que é impedir
uma adaptação do indivíduo ao que é considerado o mundo.
A segunda ação é
voltada para o seu exterior, uma expressão genérica “pessoas com aids” parece
não identificar estes sujeitos com os fiéis e o próprio grupo religioso. É
próprio da religião cristã a empatia e a solidariedade com os sofredores,
especialmente os doentes estigmatizados - vide a relação de Cristo com os
hansenianos de sua época -, como também costuma ser frequente em seu contexto a
dificuldade em lidar com o diferente, como bem considera. Compreende-se, então,
que, possivelmente, o discurso de empatia e de ajuda tem, mesmo que não seja o
único fator, esta importante questão para a compreensão da prática referida
pelos sujeitos6.
Desta maneira um
elemento importante no processo de mudança representacional e das relações
entre práticas e representações foi a incorporação da terapia antirretroviral
em associação à prevenção (presente na representação desde o início da
epidemia), como tecnologias de enfrentamento da aids 7.
Em concordância com
os achados, um estudo sobre representação social caracteriza a aids como uma
“doença crônica” ao compará-la à diabetes, que possui controle através de
fármacos disponíveis por programas governamentais. Esta consideração é ainda
corroborada com um estudo similar, onde os pacientes reconhecem a cronicidade
da síndrome como uma doença menos grave do que o câncer5.
Estudos apontam o
sucesso da adesão aos antirretrovirais como um dos desafios para o controle da
doença, tanto para os indivíduos acometidos quanto para a equipe de saúde,
tendo em vista que muitos efeitos colaterais ao tratamento se contrapõem aos
benefícios. Por outro lado, as falas nos mostram que não há um processo de
superação do preconceito, da exclusão social, dos constrangimentos vivos no
contexto microssocial e da preocupação constante da heteroproteção5.
Deve-se ter clareza que abordar a aids possa implica,
na maioria das vezes, em constrangimentos sociais, uma vez que significa falar
do próprio exercício da sexualidade e dos preconceitos, ainda fortemente
associados aos sujeitos que vivem com HIV/aids. Devido a esta associação, a
abordagem da temática pode ser difícil, tanto nos diálogos com os pacientes
quanto com os membros da família. Os constrangimentos
comumente ocorrem nas pessoas que vivem com HIV/Aids que podem ser relacionadas
aos diferentes sofrimentos emocionais vivenciados. Este sentimento negativo se
intensifica na condição de irreversibilidade da síndrome associado aos
sentimentos de medo, morte, rejeição, angústia e tristeza 2.
A aids também foi
descrita e definida como uma doença triste, infecciosa e normal, com
medicamentos, controlada, aumentando a qualidade de vida das pessoas que vivem
com ela. Constatou-se, ainda, que a memória da aids está ligada à depressão e
ao desespero do início da descoberta diagnóstica. Em contrapartida,
evidenciou-se o maior desenvolvimento do controle da síndrome com o processo de
adesão a medicação e a realização do auto e heterocuidado8.
Os resultados
abordaram diferentes aspectos da espiritualidade e da religiosidade para os
pacientes HIV positivos, bem como suas representações, englobando sua dimensão
cognitiva e prática, pessoal e interpessoal, bem como a comunitária. A
instituição religiosa em si tem a função de canalizar a possibilidade da
relação com o Divino através de rituais, dogmas, hierarquias e práticas religiosas
específicas.
A primeira questão
importante a ser colocada nesta discussão é a compreensão de que, para os
sujeitos estudados, a reconstrução sócio-cognitiva da religião se dá para além
das fronteiras sociológicas e institucionais do que se convencionou chamar
religião. O interessante é que, para este grupo estudado, a religiosidade deixa
de ser um fenômeno necessariamente sociológico, para se transformar em um que
tenha características universalizantes, o que permite considerar que o
pensamento social deste grupo concebe o ser humano, de fato, como o homo religiosus, ou seja, que
naturalmente possui a tendência a esta relação com o Transcendente,
independente da cultura, da sociedade e da religião predominante em sua região9.
A espiritualidade
ainda foi conceituada como algo não tangível, o que possui coerência com a
tradição cristã, uma vez que o Espírito Santo é das três pessoas da Trindade,
aquela menos concreta para os fiéis, já que o Pai foi tangível no velho
testamento em suas múltiplas aparições ao longo da história do povo hebreu,
especialmente a Abraão e a Moisés, e o Filho se tornou homem através do processo
de encarnação, centro da fé cristã ao longo de todos os séculos, desde o seu
início até o momento atual10-11.
Para finalizar esta
seção de discussão, torna-se importante destacar a dimensão representacional da
prática que, ao menos ao que parece em um primeiro olhar dos dados empíricos –
o que exigirá nova atenção e esforços da equipe de pesquisa para o seu aprofundamento
e melhor delimitação, condensam, em si mesma, a realidade da espiritualidade e
da religiosidade em um conjunto em que é impossível sua separação.
Ou seja, se há uma
separação bem marcada na definição conceitual do que é religiosidade e do que é
espiritualidade, em sua concretude prática no cotidiano dos sujeitos, os
efeitos são os mesmos, o que levanta a hipótese de que ambos os processos
possuem o mesmo fim ou a inter-relação entre ambos possuem raízes importantes a
ponto de não se separarem em sua manifestação concreta cotidiana. Levanta-se a
hipótese, ainda, de que a amplitude do conceito de religião e a especificidade
do de espiritualidade permitam uma complexa harmonia que causaria a
invisibilidade de ambos nos resultados práticos de sua interação.
CONCLUSÃO
A primeira conclusão
que se deseja expor, oriunda dos dados empíricos e das discussões expostas ao
longo deste trabalho, refere-se à importância do estudo da espiritualidade e da
religiosidade em grupos sociais, assim como à compreensão de como estes grupos
reconstroem este conceito e como o concretizam em seus cotidianos.
Destaca-se a
existência de representações socais sobre espiritualidade e religiosidade que
se mostram como estruturadas, explicitando uma maneira própria de reconstrução
sociocognitiva destes objetos, o primeiro alicerçado nos conhecimentos
acumulados na história da Igreja Cristã acerca do Espírito Santo e o segundo em
um dos pilares da filosofia ocidental no processo de definição de religião. No
primeiro, há uma dinamicidade de uma Divindade relacionada à criação e à
recriação, enquanto no segundo há a importante ligação entre Deus e os homens,
especialmente quando estes habitam em uma terra considerada como vale de
lágrimas.
Esta compreensão
ganha importância no contexto dos pacientes que vivem com o HIV, uma vez que,
tradicionalmente, este grupo é associado a práticas sexuais e sociais
socialmente reprováveis e o diagnóstico de soropositividade para o HIV, para
alguns grupos, mesmo na atualidade, é considerado como uma certificação social
do afastamento das condutas preconizadas pelas religiões e pelos livros
sagrados. A religião, como um processo de religação com o Divino e o Espírito
Santo, como uma força capaz de transformar a vida e o cotidiano destes
sujeitos, recriando o existir e o seu entorno, permite o exercício da
esperança, da criatividade, do sonho e da liberdade, bem como a crença em uma
Divindade que se faz presente na terra, em meio ao cotidiano cinzento e
rotineiro de todo ser humano.
REFERÊNCIAS
1.
GOMES AMT. Representações sociais da
espiritualidade de quem vive com Aids: um estudo a partir da abordagem
estrutural. Psicologia e Saber Social, 2016; 5(2), 187-197.
2.
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