REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM

ISSN: 2317-3092

 

 

Recebido em:

24/01/2020

Aprovado em:

16/03/2020

Como citar este artigo

 

Machado YY, Gomes AMT, Marques SC, França LCM, Couto PLS, Barbosa BFS. “Eu vou vivendo”: representações sociais da religiosidade e espiritualidade para pessoas vivendo com HIV. Rev Norte Mineira de enferm. 2020; 9(1): 11-21.

Autor correspondente

 

Yndira Yta Machado

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Correio eletrônico: yndiramachado@gmail.com

 

 

 

ARTIGO ORIGINAL

“EU VOU VIVENDO”: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE PARA PESSOAS VIVENDO COM HIV

 

“I will live”: social representations of religiosity and spirituality for people living with HIV

Yndira Yta Machado 1,, Antonio Marcos Tosoli Gomes2, Sergio Corrêa Marques 3, Luiz Carlos Moraes França 4, Pablo Luiz Santos Couto 5, Bruno Ferreira do Serrado Barbosa 6.

 

 

1 Enfermeira. Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Rio de Janeiro. Brasil. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0692-7299. 

2 Enfermeiro. Professor Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Brasil. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4235-9647

3 Enfermeiro. Professor Adjunto no Departamento de Fundamentos de Enfermagem e no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Rio de Janeiro, Brasil. ORCID ID https://orcid.org/0000-0002-0038-0790

4 Enfermeiro. Mestre em Enfermagem pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Rio de Janeiro. Brasil. ID: https://orcid.org/0000.0002.6370-115

5 Enfermeiro. Mestre em Enfermagem pela EEFBA e Professor da Faculdade Guanambi (Centro de Ensino Superior Guanambi. Bahia, BA, Brasil. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-2692-9243.

6 Enfermeiro. Pós doutorando em Enfermagem pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Docente da UniCBE. Fiscal do Coren-RJ. Rio de Janeiro, Brasil. ORCID ID http//orcid.org/0000-0001-9942-4919

 

 

 

RESUMO: Objetivo: Analisar as representações da religiosidade e da espiritualidade para as pessoas vivendo com o Vírus da Imunodeficiência Humana. Métodos: Estudo qualitativo baseado na Teoria das Representações Sociais, desenvolvido em um ambulatório com 32 pessoas vivendo com HIV. Os dados foram coletados através de entrevistas e analisadas pelo software ALCESTE. Resultados: No que tange à caracterização dos sujeitos, destacam-se que a maioria são homens, e Dentre os que nunca enfrentaram internações hospitalares em decorrência da aids também são maioria. Todos os participantes utilizam antirretrovirais, destes, uma parcela considerável apresentou alteração de esquema terapêutico. A quase totalidade refere que acredita em Deus. Conclusão: A religião, como um processo de religação com o Divino e o Espírito Santo, como uma força capaz de transformar o cotidiano destes sujeitos, recriando o existir e o seu entorno, permite o exercício da esperança, da criatividade, do sonho e da liberdade, bem como a crença em uma Divindade que se faz presente na terra.

 

Palavras-chave: Espiritualidade; Religiosidade; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; enfermagem; Representações Sociais.

 

ABSTRACT: Objective: To analyze the representations of religiosity and spirituality for people living with the Human Immunodeficiency Virus. Methods: Qualitative study based on the Theory of Social Representations, developed in an outpatient clinic with 32 people living with HIV. Data were collected through interviews and analyzed using the ALCESTE software. Results: Regarding the characterization of the subjects, it is highlighted that the majority are men, and Among those who have never faced hospital admissions due to AIDS, they are also the majority. All participants use antiretrovirals, of which, a considerable portion presented changes in the therapeutic regimen. Almost all report that they believe in God. Conclusion: Religion, as a process of reconnecting with the Divine and the Holy Spirit, as a force capable of transforming the daily life of these subjects, recreating the existence and its surroundings, allows the exercise of hope, creativity, dreams and freedom, as well as the belief in a Divinity that is present on earth.

 

Keywords: Spirituality; Religiosity; Acquired Immunodeficiency Syndrome; nursing; Social Representations.

 

INTRODUÇÃO

 

A dimensão cognitiva das representações sociais da religiosidade possui seu fundamento na definição histórica, tradicional e clássica do termo. Essa dimensão, assim como a religiosa encontram-se, historicamente para a maioria do povo brasileiro, no centro da vida cotidiana. De acordo com alguns teóricos o transcendente e o divino não são uma instância abstrata para os latinoamericanos como um todo. São uma realidade existencial quase tangível nas mais variadas situações, gerando atitudes e conformando decisões que possuem relevância para as diversas áreas da vida humana, inclusive a saúde1.

 

Somada a essa dimensão cognitiva, podemos dizer que as pessoas vivendo com Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) apresentam, como estratégias de sobrevivência social, o ocultamento da síndrome. Assim, podem continuar a vida como pessoas consideradas socialmente normais, sem serem acusadas e discriminadas, seja no âmbito familiar ou no contexto social ou do trabalho. Neste último, a omissão do HIV é uma forma de manter o emprego, uma vez que, tendo o seu segredo revelado, os indivíduos correm o risco de sofrer preconceitos. As dificuldades de relacionamento familiar são uma constante na vida dos que acabaram revelando sua condição de saúde, e que, salvo raras exceções, enfrentaram o preconceito2.

 

Estudar as Representações Sociais que é um conjunto de conceitos, proposições e explicações criados na vida cotidiana, equivalem, na nossa sociedade, aos mitos e crenças das sociedades tradicionais; podem ainda ser vistas como a versão contemporânea do senso comum e essas representações da espiritualidade e da religiosidade no contexto do HIV/Aids ocorre pela memória social da síndrome estar relacionada ao castigo divino, bem como ao estigma e ao preconceito ainda existentes3.

 

Ao abordar a religiosidade/espiritualidade, relacionadas ao contexto da saúde, diversos estudos encontram dificuldades de aprofundamento, devido ao reconhecimento confrontado, como forma de avaliação, no processo saúde-doença. Com relação à aids, este fato ganha particular importância, dada a carga simbólica presente em sua construção psicossocial e biomédica e à presença marcante da ancoragem da síndrome em pestes e castigos religiosos, fomentando, ainda mais, o preconceito circulante na sociedade 1-4.

 

Pensando nesse contexto definiu-se como objetivo de estudo analisar as representações da religiosidade e da espiritualidade para as pessoas vivendo com HIV, a fim de estimular iniciativas de pesquisa acerca do tema em questão.

 

MÉTODOS

 

Este estudo utilizou-se abordagem qualitativa, descritiva, fundamentada na abordagem processual da teoria das representações sociais. A Abordagem Processual possui a definição de representações sociais mais difundidas, consiste naquela descrita como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social3. O campo escolhido para o desenvolvimento do estudo foi o ambulatório de um Hospital Escola do Estado do Rio de Janeiro, por ser um centro de referência na assistência as pessoas vivendo com HIV. Participaram da pesquisa 32 pessoas vivendo com HIV que realizam o seu tratamento na referida instituição. As entrevistas foram realizadas de março a outubro de 2015. Teve parecer aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob Protocolo nº 699.220/2014.

 

Foi construído pelos autores dois instrumentos para a coleta dos dados, um questionário de caracterização sócio demográfica e um roteiro de entrevistas semiestruturado. A captação dos participantes foi feita na sala de espera do ambulatório, mediante convite informal e o consentimento livre e esclarecido dos sujeitos. A transcrição das entrevistas foi feita pelos autores. Os critérios de inclusão adotados foram que os participantes tivessem idade acima de 18 anos e que fizessem o acompanhamento no referido serviço.

 

Para análise das entrevistas utilizou-se o software ALCESTE 4.5, com o uso da técnica de análise hierárquica descendente de conteúdo textual. O ALCESTE é um software criado na França em 1979 por Max Reinert, para o sistema operacional Windows, que possibilita analisar quantitativamente os dados textuais, tendo por base as leis de distribuição do vocabulário nos textos transcritos ou escritos, permite o estudo dos tipos de representação presentes no texto, em que os processos de constituição da representação social podem participar da interpretação das classes e da identificação das representações através da busca de elementos que indiquem a ancoragem e a objetivação nas classes resultantes da análise Alceste5.

 

RESULTADOS

 

No que tange à caracterização dos sujeitos, destacam-se a maioria são homens e a mediana de tempo de diagnóstico foi de 14 anos, com mínimo de 1 e máximo de 30 anos. Quase metade dos sujeitos nunca enfrentaram internações hospitalares em decorrência da aids. Todos os participantes utilizam antirretrovirais, Com relação a outras variáveis, mais da metade dos sujeitos são casados, quase a metade possui apenas o ensino fundamental completo, quase totalidade refere que acredita em Deus.

 

O corpus de análise foi composto por 32 entrevistas identificadas como unidades de contexto inicial (UCI). O ALCESTE dividiu o corpus em 650 unidades de contexto elementar (UCE), que representam as unidades de análise de texto. As UCE continham 23.067 palavras, formas ou vocábulos distintos que, após a redução dos vocábulos aos seus radicais, resultou em 558 palavras analisáveis.

 

O corpus de análise foi divido pelo software em dois grandes blocos distintos, sendo o primeiro bloco composto pelas classes 1 e 2 proveniente da primeira segmentação das UCE e que possuem diferenças significativas das classes 3 e 4 que compõem o segundo bloco.

 

Observou-se que no primeiro bloco, denominado “o HIV/Aids ao longo do tempo: construções sociais e vivências dos sujeitos”, engloba tanto a classe 1, chamada de “As memórias sociais do convívio com a síndrome: entre o passado e presente”, que corresponde a 27% do corpus analisado, contendo 145 UCE, quanto a classe 2, denominada “o enfretamento social e cultural da síndrome: preconceitos, estigmas e atitudes dentro do grupo social de pertença”, que possui 26% da analise com 135 UCE.

 

O segundo bloco, denominado de “As diferentes facetas da Espiritualidade e da Religiosidade” é constituído pelas classes 3, nominada “relação do Divino com o Humano:  a religiosidade e a espiritualidade e suas representações para pessoas que vivem com o HIV/Aids”, com 28% do material analisado, o que corresponde a 152 UCE, e pela classe 4, chamada de “A religiosidade em sua dimensão comunitária: acolhimento, boas ações e preconceitos”, com 19% do material analisado e 99 UCE.

 

Bloco 1: O HIV/Aids ao longo do tempo: construções sociais e vivências dos sujeitos

 

Classe 1: As memórias sociais do convívio com a síndrome: entre o passado e presente

 

Essa classe traz uma dimensão cognitiva das Representações Sociais ligadas à definição da síndrome em três diferentes conceitos, quais sejam, como “doença” triste, como normal e “doença” infecciosa, descrevendo a dificuldade de adaptação com o uso da medicação e seus possíveis efeitos colaterais.

 

A aids para mim é uma doenca triste. Eu nao queria estar tomando remédio, mas para mim, sinceramente, eu pensei que fosse me afetar. No comeco foi bem difícil, eu nem lembro porque eu considero a mesma coisa que eu era. Não sinto nenhum efeito graças a Deus (Unité n° 0158)”.

 

A UCE abaixo exemplifica uma atitude mais positiva frente à síndrome e ao tratamento, dando uma ideia de transição de conceito da doença triste para a normal. Viver com a aids foi retratado, para este sujeito, a partir da normalidade do cotidiano, desde que se siga corretamente o tratamento.

 

“Para mim, a aids é isso. Viver com aids é normal, desde que você tome todos os remédios. Graças à ciência, eu peguei o tratamento em uma fase bem adiantada, eu já peguei os antirretrovirais (Unité n° 0180)”.

 

Outra dimensão importante em relação à síndrome foi de doença infecciosa. Esta dimensão traduz a representação ligada ao processo infeccioso da aids, existindo também uma memória ligada às doenças que estigmatizaram a história do ocidente, o que gerou, e parece que se estende até a atualidade, uma memória de epidemias, mortandades, dissolução social, segregação de grupos sociais e explicações religiosas para estes fenômenos.

 

“uma doença infecciosa como tem agora a dengue, o zika virus, como na idade media teve a lepra, que eu não me lembro bem-como que-se chamava, mas que a gente hoje chama vulgarmente de lepra (Unité n° 0179)”.

 

A vivência do HIV/Aids requer um tempo de adaptação e o posterior controle sobre a síndrome, seus sinais e sintomas e a familiaridade com os antirretrovirais. O uso medicamento é percebido como comprovador de consequências positivas, associado à melhor perspectiva de vida e ao aumento da adesão ao tratamento.

 

O tratamento eu nunca abandonei, tanto que eu desde 2008 uso a mesma medicação. foi tão boa a minha reação ao remédio, aos antirretrovirais. tem ate um número nesses laboratórios que me mandou parabéns. eu tomo os remédios e não sinto nada, só me da sono (Unité n° 0198)”.

 

A adesão ao tratamento se configura como uma questão importante e atual, em que se configura como essencial para a manutenção da vida e sua qualidade na convivência com o vírus. Se, por um lado, os medicamentos podem se configurar como um invasor cultural na vida dos pacientes (se você perguntar um nome de um antirretroviral desse eu não sei responder), por outro, há um processo de relacionamento que permite a identificação por suas características, gerando a adesão que se deseja e o controle das manifestações clínicas da síndrome.

 

Classe 2: O enfretamento social e cultural da síndrome: preconceitos, estigmas e atitudes dentro do grupo social de pertença

 

As relações interpessoais estabelecidas com o grupo de amigos, conhecidos ou da sua comunidade, refletem um conteúdo positivo de universo pessoal das pessoas que vivem com HIV/Aids, presente em atividades simples do cotidiano e sociais e os vínculos que os mesmos estabelecem com a vida, como um “sorriso” descrito na primeira UCE ou uma “conversa” relatada na segunda UCE.

 

“vou dizer um fato. eu estava subindo enquanto uma senhora estava vindo da casa da minha filha mais velha, ela estava subindo chateada. eu passei por ela, sorri e perguntei se estava tudo-bem. ela disse que não estava não, agora esta. E cada coisa que esta ruim, coloca uma mão naquele que você sabe que vai segurar sua mão com toda forca e vai te levantar (Unité n° 0133)”.

    

O apoio do grupo social de convivência mais próxima, fora do âmbito do trabalho ou da unidade de saúde, se configura como um importante aspecto do enfrentamento da aids e da situação de se ver com quadro mórbido como este. Observa-se, com base nos discursos, o apoio institucional prestado pelos profissionais de saúde guiados por conteúdo clínico-terapêutico, o que termina por gerar, assim, confiança. O apoio, no geral, parece ter um impacto na diminuição dos acontecimentos negativos produzidos pelo grupo.

 

“ele assim, nossa senhora, ele sofre muito ate mesmo quando ele e resgatado pra um hospital ele continua sofrendo muito porque ele e obrigado a ficar preso no hospital de loucos lá, não pode fugir pra lugar nenhum, e horroroso depois-que ele sai do vale (Unité n° 0387)”.

 

A aids recupera a situação de segregação de objetos com vistas à impedir a transmissão do vírus. Chama a atenção o fato de que este processo pode ser observado no comportamento das pessoas com as quais se convive ou se faz presente simplesmente pela possibilidade do comportamento do outro, o que mostra a força do preconceito e do estigma interiorizados pelas pessoas que vivem com o HIV/Aids.

 

de repente você está deprimida. como eu já vi aqui no hospital chegar, receber a notícia, falar que não está com isso e sair batendo o pé, reclamando, xingando, dizer que vai fazer outros exames (Unité n° 0150)”.

 

Com base nos dados apresentados e descritos, a representação social dessa população está ligada a um processo de naturalização da síndrome em sua dimensão biológica ao longo do tempo, inclusive levando ao controle e não à morte, mostrando um processo de cronificação da doença. Destaca-se, então, que há, no conjunto deste primeiro bloco uma naturalização da biomedicina da síndrome, bem como de sua tecnologia, ao passo que a sua dimensão social e simbólica ainda possui fortes elementos das suas primeiras décadas, causando segregação e sofrimento. Se a naturalização biológica e a evolução tecnológica impediu o crescimento ou a manutenção nos níveis de mortalidade e morbidade, a manutenção de sua dimensão simbólica negativa, ainda continua gerando mortes sociais e civis.

 

 

 

Bloco 2: As diferentes facetas da Espiritualidade e da Religiosidade

 

Classe 3: A relação do Divino com o Humano:  a religiosidade e a espiritualidade e suas representações para pessoas que vivem com o HIV/Aids

 

Essa Classe apresenta um conteúdo marcadamente ligado à espiritualidade e à religiosidade e a todas as outras questões que a elas se relacionam no cotidiano da vivência do HIV/Aids, do seu tratamento e do uso da terapia antirretroviral. Pode-se observar, na constituição da categoria, diversos léxicos que se relacionam diretamente à dimensão da espiritualidade e da religiosidade, bem como a seres transcendentes e a atos dos fiéis na relação com estes seres ou com estas dimensões da profundidade humana.

 

Como já destacado, os sujeitos se debruçam sobre a definição entre religiosidade e espiritualidade. A primeira questão que surge de modo bastante expressivo é que estes conceitos não é uma abstração para os sujeitos, mas estão sempre relacionados a questões práticas, quer seja relacionadas à síndrome ou às da existência de um modo geral.

 

“Os problemas vem, você pode morar em um quarto ou em uma mansão, se o problema é para você, não adianta você correr, é seu! É assim que eu levo a vida. Religiosidade é você praticar e ajudar. Eu acho que, para mim, ser evangélica, espírita, seja a religião que for é você praticar (Unité n° 0129)”.

 

Se, por um lado, há um reconhecimento da irrevogável situação humana de enfrentamento dos problemas cotidianos da existência, por outro, a religiosidade é definida como uma prática que transcende as particularidades de uma ou outra religião, apresentando-se como uma característica essencial à sua conceituação em si mesmo. Há, no entanto, uma pequena especificação desta prática, que é a de ajudar, embora não haja uma adjetivação desta ação.

 

Esta praticidade relaciona-se também aos benefícios que os próprios indivíduos possuem no exercício da religiosidade, como a paz, a bênção e o conforto.

 

“Religiosidade para mim é um modo de ter fé, uma paz interior, uma bêncão que a gente está sempre buscando e não importa o caminho que seja, a religião que seja. É realmente uma parte de conforto, religiosidade. Para mim é isso (Unité n° 0582)”.

 

Neste caso, parece existir uma matriz subjacente a estes componentes cognitivos da representação social em que a religiosidade deixa de ser algo estritamente sociológico e institucional e passa a ser uma força motriz benéfica em direção a si mesmo e ao outro, tendo como quadros iniciais ou gerais a proposta de crescimento humano em si mesmo e em suas relações com os demais seres humanos com os quais convive.

 

“Religiosidade para mim são as pessoas que tem fé. Eu tenho fé, acredito no meu Deus e para mim é isso: acredito no meu Deus. Não sou frequentador de nenhuma religião, mas para mim religião é isso. É você ter Deus no coração, coisa que eu tenho (Unité n° 0005)”.

 

A crença neste ser superior denominado de Deus se constitui como a verdadeira religião, em contraposição às religiões criadas pelo homem, citadas pelos sujeitos como o catolicismo e o cristianismo. Embora não se perceba uma crítica explícita às religiões institucionais em si, pode-se ressaltar que a crença, a fé, a presença da divindade no âmago humano fazendo o bem ao seu espírito e a construção ou descoberta de um caminho próprios para se chegar a este Divino são atitudes positivas propostas pelos sujeitos.

 

“Mas acho que entendi, então: espiritualidade é tudo que eu não enxergo, não vejo, não alcanço, mas sei que existe, que me sustenta. O fato de eu buscar estar conectado com o máximo de espiritualidade que eu posso, me auxilia, sem-duvida, no enfrentamento da aids (Unité n° 0333)”.

 

Segundo a tradição cristã, a divindade decidiu, de maneira irrevogável, permanecer junto à sua criação e, mais especificamente, aos seres humanos. Desta maneira, quando a missão de Cristo se encerra do ponto de vista tangível na história da salvação, ele é substituído pela terceira pessoa da Trindade que, sendo a divindade que a tudo plenifica e frutifica, agente da própria criação do mundo na mitologia cristã, possui a capacidade de levar os cristãos à plenitude de humanidade, fato que leva estes sujeitos a associar a definição de espiritualidade com a presença e a relação com o Espírito Santo.

 

Isto se torna ainda mais forte com a fala da imprescindibilidade das presenças de figuras como Jesus e Espírito Santo no processo de espiritualidade:

 

“Eu entendo que, como cristão, eu entendo que todo ser humano tem que tratar sua vida espiritual e tratar a vida espiritual, eu entendo que somente com o Espírito Santo, somente com Jesus (Unité n° 0505)”.

 

Aqui já se percebe uma discursividade relativa a uma espiritualidade específica, a cristã, em que a figura do próprio Espírito Santo ganha uma prioridade sobre a de Jesus. Diferente das visões anteriores expostas até o momento, aqui ganha destaque a visão exclusivista do caminho cristão, não permitindo a expressão de outras sendas e construções espirituais. Outro aspecto apresentado, relaciona-se à sua dimensão prática, especialmente no que tange à religião e sua influência no cotidiano das pessoas que enfrentam a aids.

 

“com religião, ela ajuda a você quando está naquele momento difícil. Você sabe que tem um Deus que pode todas as coisas. Tem coisas que a gente tem que passar nessa vida mesmo, não é porque eu sou evangélico que Deus vai me livrar. Tem coisas que o homem faz e ele não vai fazer (Unité n° 0090)”.

“A minha religião influencia no meu viver com a aids, pois, para mim, é a base. Deus é que me dá forca, me dá vigor, me dá ânimo para seguir o dia-a-dia (Unité n° 0260)”.

 

Destaca-se a reiterada afirmação da influência da religião no viver com a aids, mas deve-se ressaltar que a importância desta influência não se dá na adoção de práticas rituais e obediência a preceitos como é costume e comum nas religiões mais tradicionais, mas sim na possibilidade de contato com o Divino que, ao menos para parte dos sujeitos, parece ter relação com os quadros religiosos que subsidiam a sua visão de mundo. A ajuda se concretiza no enfrentamento dos momentos difíceis, uma vez que tem por base a crença em um ser onipotente, o que, de maneira natural, gera força, vigor e ânimo para seguir o dia-a-dia.

 

Nesse momento, você percebe que tem que se autoajudar, procurar Deus e isso tudo me ajuda. Se eu tenho paz, eu consigo ter paz e harmonia dentro da minha doença e consigo conversar e ajudar ao meu próximo (Unité n° 0464)”.

 

A religiosidade e a espiritualidade deixam de ser uma opção racional de adesão a uma crença ou a um exercício individualista e autocentrado, para se transformar em uma prática que envolve a própria pessoa em questão, mas que o impele a sair de si mesmo e a ir em direção aos demais que estão ao seu redor e que necessitam de ajuda e da presença daquele que já construiu, mesmo que de maneira parcial, uma experiência espiritual e religiosa. Ressalta-se que os sujeitos não especificaram se se trata da espiritualidade e/ou da religiosidade, possivelmente em função desta dimensão prática eliminar diferenças conceituais.

 

 

Classe 4: A religiosidade em sua dimensão comunitária: acolhimento, boas ações e preconceitos

 

A classe apresenta um conteúdo marcadamente ligado à religiosidade e à aids, bem como ao processo de preconceito e discriminação vivido pelas pessoas que vivem com o HIV/aids. Esta interpretação mostra-se ainda mais forte quando se considera a presença de palavras como relação e tabu. As variáveis que mais contribuíram para a formação da classe foram à religião católica e o sexo masculino.

 

Pode-se levantar a hipótese de que a adesão religiosa dos sujeitos possa estar na base de representações sociais mais arcaicas. Esta representação com fortes elementos negativos acerca da síndrome desdobra-se, ainda, nas representações acerca dos pacientes:

 

As pessoas da minha religião veem as pessoas com aids como coitados, do tipo assim, o coitado é doente e vai morrer daqui a pouco (Unité n° 0522)”.

 

As construções simbólicas da aids são tão fortes que este objeto representacional possui ancoragem marcada pelas concepções religiosas dos distintos grupos religiosos, mais frequentes em igrejas pentecostais e neopentecostais e no movimento Carismático Católico. 

 

A origem da síndrome e a permanência da epidemiologia da aids nos níveis em que estão na atualidade é relacionada à ação do opositor a Cristo, o seu contrário, o Anticristo. Os sujeitos destacam a existência de um grande preconceito e tabus, fora e dentro das religiões, ou seja, na sociedade em geral:

 

eu/ pelo menos evito, não comento, não falo. Com certeza as pessoas em-geral veem as pessoas que vivem com aids assim. O grande tabu existe, um grande preconceito, isso/ realmente ainda existe. não por mim, mas eu já vi (Unité n° 0013)”.

 

Se, por um lado, há o reconhecimento da existência desta realidade no cotidiano das pessoas que vivem com o HIV/Aids, há, por outro, a explicação de que é a falta de conhecimento que está na base deste fenômeno social.

 

independente de qualquer doença. Infelizmente existe um preconceito na religião com relação a aids, mas não só na minha religião, eu acho que isso em qualquer religião, mesmo fora de religião as pessoas tem esse olhar crítico em relação a aids, por não conhecer (Unité n° 0521)”.

 

Torna-se importante destacar, ainda, duas temáticas presentes nos dados empíricos, quais sejam, a cura divina e as ações positivas das religiões em face da aids e das pessoas que vivem com o vírus. No que tange à cura divina, os sujeitos trazem os relatos acerca desta realidade em seu grupo religioso:

 

E difícil falar como as pessoas da minha religião veem a pessoa com aids porque ate agora eu ainda não vi, nunca ouvi alguém falando, eu já vi ha muito tempo no Pedro grita falando que ela foi curada (Unité n° 0071)”.

 

Ressaltam-se as ações positivas dos grupos religiosos em face da síndrome e das pessoas que vivem com a aids, que se caracterizam basicamente pela orientação aos fiéis e o acolhimento através da ajuda, da oração e do apoio:

 

“hoje, as pessoas da minha religião veem a aids de forma mais comum, pois e bem orientado, em varias entrevistas que eles orientam, eles chamam atenção de muita gente. quando eles chamam a gente para uma sessão, eles falam a respeito disso, eles estão sempre orientando para as pessoas não se envolverem porque o mundo aceita (Unité n° 0274)”.

 

DISCUSSÃO    

 

Pode-se observar duas ações distintas dos grupos religiosos, uma interna, voltada aos seus fiéis, que é a de orientação acerca da aids, tornando-a como uma “doença” comum, ao mesmo tempo em que há, neste processo de formação informal, um objetivo que é impedir uma adaptação do indivíduo ao que é considerado o mundo.

 

A segunda ação é voltada para o seu exterior, uma expressão genérica “pessoas com aids” parece não identificar estes sujeitos com os fiéis e o próprio grupo religioso. É próprio da religião cristã a empatia e a solidariedade com os sofredores, especialmente os doentes estigmatizados - vide a relação de Cristo com os hansenianos de sua época -, como também costuma ser frequente em seu contexto a dificuldade em lidar com o diferente, como bem considera. Compreende-se, então, que, possivelmente, o discurso de empatia e de ajuda tem, mesmo que não seja o único fator, esta importante questão para a compreensão da prática referida pelos sujeitos6.

 

Desta maneira um elemento importante no processo de mudança representacional e das relações entre práticas e representações foi a incorporação da terapia antirretroviral em associação à prevenção (presente na representação desde o início da epidemia), como tecnologias de enfrentamento da aids 7.

 

Em concordância com os achados, um estudo sobre representação social caracteriza a aids como uma “doença crônica” ao compará-la à diabetes, que possui controle através de fármacos disponíveis por programas governamentais. Esta consideração é ainda corroborada com um estudo similar, onde os pacientes reconhecem a cronicidade da síndrome como uma doença menos grave do que o câncer5.

 

Estudos apontam o sucesso da adesão aos antirretrovirais como um dos desafios para o controle da doença, tanto para os indivíduos acometidos quanto para a equipe de saúde, tendo em vista que muitos efeitos colaterais ao tratamento se contrapõem aos benefícios. Por outro lado, as falas nos mostram que não há um processo de superação do preconceito, da exclusão social, dos constrangimentos vivos no contexto microssocial e da preocupação constante da heteroproteção5.

 

Deve-se ter clareza que abordar a aids possa implica, na maioria das vezes, em constrangimentos sociais, uma vez que significa falar do próprio exercício da sexualidade e dos preconceitos, ainda fortemente associados aos sujeitos que vivem com HIV/aids. Devido a esta associação, a abordagem da temática pode ser difícil, tanto nos diálogos com os pacientes quanto com os membros da família. Os constrangimentos comumente ocorrem nas pessoas que vivem com HIV/Aids que podem ser relacionadas aos diferentes sofrimentos emocionais vivenciados. Este sentimento negativo se intensifica na condição de irreversibilidade da síndrome associado aos sentimentos de medo, morte, rejeição, angústia e tristeza 2.

 

A aids também foi descrita e definida como uma doença triste, infecciosa e normal, com medicamentos, controlada, aumentando a qualidade de vida das pessoas que vivem com ela. Constatou-se, ainda, que a memória da aids está ligada à depressão e ao desespero do início da descoberta diagnóstica. Em contrapartida, evidenciou-se o maior desenvolvimento do controle da síndrome com o processo de adesão a medicação e a realização do auto e heterocuidado8.

 

Os resultados abordaram diferentes aspectos da espiritualidade e da religiosidade para os pacientes HIV positivos, bem como suas representações, englobando sua dimensão cognitiva e prática, pessoal e interpessoal, bem como a comunitária. A instituição religiosa em si tem a função de canalizar a possibilidade da relação com o Divino através de rituais, dogmas, hierarquias e práticas religiosas específicas.

 

A primeira questão importante a ser colocada nesta discussão é a compreensão de que, para os sujeitos estudados, a reconstrução sócio-cognitiva da religião se dá para além das fronteiras sociológicas e institucionais do que se convencionou chamar religião. O interessante é que, para este grupo estudado, a religiosidade deixa de ser um fenômeno necessariamente sociológico, para se transformar em um que tenha características universalizantes, o que permite considerar que o pensamento social deste grupo concebe o ser humano, de fato, como o homo religiosus, ou seja, que naturalmente possui a tendência a esta relação com o Transcendente, independente da cultura, da sociedade e da religião predominante em sua região9.

 

A espiritualidade ainda foi conceituada como algo não tangível, o que possui coerência com a tradição cristã, uma vez que o Espírito Santo é das três pessoas da Trindade, aquela menos concreta para os fiéis, já que o Pai foi tangível no velho testamento em suas múltiplas aparições ao longo da história do povo hebreu, especialmente a Abraão e a Moisés, e o Filho se tornou homem através do processo de encarnação, centro da fé cristã ao longo de todos os séculos, desde o seu início até o momento atual10-11.

 

Para finalizar esta seção de discussão, torna-se importante destacar a dimensão representacional da prática que, ao menos ao que parece em um primeiro olhar dos dados empíricos – o que exigirá nova atenção e esforços da equipe de pesquisa para o seu aprofundamento e melhor delimitação, condensam, em si mesma, a realidade da espiritualidade e da religiosidade em um conjunto em que é impossível sua separação.

 

Ou seja, se há uma separação bem marcada na definição conceitual do que é religiosidade e do que é espiritualidade, em sua concretude prática no cotidiano dos sujeitos, os efeitos são os mesmos, o que levanta a hipótese de que ambos os processos possuem o mesmo fim ou a inter-relação entre ambos possuem raízes importantes a ponto de não se separarem em sua manifestação concreta cotidiana. Levanta-se a hipótese, ainda, de que a amplitude do conceito de religião e a especificidade do de espiritualidade permitam uma complexa harmonia que causaria a invisibilidade de ambos nos resultados práticos de sua interação.

 

CONCLUSÃO

 

A primeira conclusão que se deseja expor, oriunda dos dados empíricos e das discussões expostas ao longo deste trabalho, refere-se à importância do estudo da espiritualidade e da religiosidade em grupos sociais, assim como à compreensão de como estes grupos reconstroem este conceito e como o concretizam em seus cotidianos.

 

Destaca-se a existência de representações socais sobre espiritualidade e religiosidade que se mostram como estruturadas, explicitando uma maneira própria de reconstrução sociocognitiva destes objetos, o primeiro alicerçado nos conhecimentos acumulados na história da Igreja Cristã acerca do Espírito Santo e o segundo em um dos pilares da filosofia ocidental no processo de definição de religião. No primeiro, há uma dinamicidade de uma Divindade relacionada à criação e à recriação, enquanto no segundo há a importante ligação entre Deus e os homens, especialmente quando estes habitam em uma terra considerada como vale de lágrimas.

 

Esta compreensão ganha importância no contexto dos pacientes que vivem com o HIV, uma vez que, tradicionalmente, este grupo é associado a práticas sexuais e sociais socialmente reprováveis e o diagnóstico de soropositividade para o HIV, para alguns grupos, mesmo na atualidade, é considerado como uma certificação social do afastamento das condutas preconizadas pelas religiões e pelos livros sagrados. A religião, como um processo de religação com o Divino e o Espírito Santo, como uma força capaz de transformar a vida e o cotidiano destes sujeitos, recriando o existir e o seu entorno, permite o exercício da esperança, da criatividade, do sonho e da liberdade, bem como a crença em uma Divindade que se faz presente na terra, em meio ao cotidiano cinzento e rotineiro de todo ser humano.

 

REFERÊNCIAS

 

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5.               CAMARGO BV; JUSTO AM. Tutorial para uso do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Análise do corpus textual. 2013.

6.               BOFF L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis: Vozes, 2012.

7.               OLIVEIRA DC. Construção e transformação das representações sociais da AIDS e implicações para os cuidados de saúde. Rev. Latino-Am. Enfer. 2013. 21(Spec):[10 telas]: 276-86.

8.               COUTINHO MFC; O´DWYER G; FROSSAR V. Tratamento antirretroviral: adesão e a influência da depressão em usuários com HIV/Aids atendidos na atenção primária. Saúde debate. 2018. 42: (116) Jan-Mar.

9.               KOENIG HG. Religion, spirituality, and health: a review and update. Advances. 2015; 29(3): 11-18.

10.             BUBER M. Le chemin de l’homme d’après la doctrine hassidique, Mónaco, Éditions du Rocher, 1995.

11.             SIQUEIRA D. Novos movimentos religiosos como desafio à sociologia da religião na atualidade. Goiânia, 2008; 6(1): 34-43, jan./jun.