REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM
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INTRODUÇÃO
A
atenção em saúde mental é marcada pelas fortes mudanças de paradigmas
vivenciadas nos serviços de saúde, advindas do processo de luta pela
democratização da saúde e das pautas de inclusão e resistência social
defendidas pela Reforma Psiquiátrica, que serviram como base e idealização para
as legislações sequentes da área. Como forma de consolidar o cuidado em saúde
mental foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial, que preconiza a criação
de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, como os serviços
territoriais e a implementação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais1.
A ampliação dos leitos psiquiátricos e o acolhimento dessa população nos
hospitais gerais é de extrema importância, sendo um fator necessário para
modificar o cenário de exclusão social que era propagado pela reclusão nos
hospitais psiquiátricos. A assistência a estes pacientes em hospitais gerais
propicia a efetivação de um cuidado integral pela disponibilidade de equipes
multidisciplinares, possibilitando um tratamento que contemple também as
alterações físico-biológicas, além de prezar pela melhoria das condições
psicossociais2.
Entretanto,
entre as dificuldades vivenciadas no processo de desinstitucionalização,
provindas desde o início da Reforma Psiquiátrica, está o repasse de recursos
financeiros para o desenvolvimento das estratégias substitutivas, ocasionando
lentidão para a ampliação de vagas em serviços extra hospitalares, enquanto há
redução dos leitos hospitais psiquiátricos, levando à maior fragilidade de
abrangência destes usuários3. Quanto à disponibilidade
dos serviços de saúde mental na América do Sul, segundo os dados notificados na
Organização Mundial de Saúde (OMS), a média de leitos disponíveis nos hospitais
psiquiátricos é de 5,1 por 100.000 habitante; já nos hospitais gerais, a
disponibilidade de leitos disponíveis para a população com transtorno mental é
de 1,6 por 100.000 habitantes4. Constata-se ainda a crescente
demanda de atendimentos em saúde mental, considerando que uma a cada dez
pessoas, cerca de 10% da população mundial, sofre com algum tipo de transtorno
mental. O número de pessoas que vivem com depressão aumentou 18,4% dentro de um
período de dez anos, de 2005 a 2015, totalizando 322 milhões de pessoas com
este transtorno no mundo; já os diagnósticos de transtornos de ansiedade
aumentaram 14,9% neste mesmo período, compreendendo 264 milhões de pessoas5.
Em
contrapartida, os profissionais de saúde que atuam no cuidado em saúde mental
(enfermeiros, psicólogos, médicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais
e outros trabalhadores), ainda representam um número restrito frente às
demandas das pessoas que apresentam algum quadro de sofrimento mental. A
ausência de profissionais qualificados para atuar no atendimento em saúde
mental também é um obstáculo, já que apenas 1,8% de enfermeiros que atuam nesta
área participaram de capacitações5. Dessa forma, além dos
desafios que envolvem as assimetrias e impasses de âmbito político-econômico
que interferem na expansão das pautas previstas nas políticas públicas, a
assistência em saúde mental enfrenta diversas barreiras como a escassez de
profissionais qualificados, a crescente demanda dos casos de saúde mental, as
frequentes reinternações psiquiátricas que podem levar à ruptura de laços
familiares e a cronificação do usuário, o preconceito e as dificuldades de
reinserção social dessa população6.
O
papel da enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica se dá como
protagonista na atuação do tratamento durante o atendimento hospitalar por sua
assistência direta ao cuidado do paciente, transcorrendo a maior parte de sua
carga horária de trabalho junto ao mesmo. No entanto, no seu cotidiano de
trabalho a equipe de enfermagem se depara com diversos obstáculos, como
dificuldades de manejo ao paciente e barreiras estruturais, como a organização
do serviço de um hospital geral, falhas e descontinuidades no fluxo da rede de
atenção psicossocial; além disso, a equipe de enfermagem se depara com
dificuldades como a grande demanda de fluxo de pacientes, além da dinâmica do
processo de trabalho de enfermagem7.
Com
a complexidade do cuidado de enfermagem em uma unidade de internação
psiquiátrica, os profissionais são expostos a barreiras e obstáculos que
dificultam seu processo de trabalho. Para a melhoria da prestação do cuidado de
saúde mental desenvolvido pela equipe de enfermagem, é fundamental identificar
os desafios experienciados durante a abordagem aos indivíduos em sofrimento
mental, buscando compreender as dificuldades e barreiras vivenciadas pela
equipe em seu cotidiano de trabalho, através de uma postura imparcial e
empática, focando na percepção dos profissionais. Assim, o objetivo desta pesquisa
é identificar os desafios vividos por uma equipe de enfermagem em uma unidade
de internação psiquiátrica.
MÉTODO
Trata-se
de uma pesquisa qualitativa, de natureza fenomenológica, sendo um recorte de um
projeto de pesquisa maior denominado “O significado das ações da equipe de
enfermagem em uma Unidade de Internação Psiquiátrica: perspectivas da
sociologia fenomenológica”, tendo como referencial a sociologia fenomenológica
de Alfred Schutz.
O
uso do referencial se faz pertinente nas pesquisas de saúde mental, já que este
caminha na direção de fortalecimento do movimento da reforma psiquiátrica, uma
vez que a sociologia fenomenológica busca dar voz aos sujeitos envolvidos,
considerando a sua subjetividade, vivências e singularidades. A fenomenologia propicia
o enfoque no mundo social das pessoas, oportunizando uma abertura para
compreensão da vivência do outro e evidenciando os desafios da equipe de
enfermagem8.
Schutz
traz como perspectiva a possibilidade de interpretar a realidade social
subjetiva a partir do significado que é atribuído aos fenômenos vividos pelos
sujeitos, reflexão que deve ser verbalizada pelo próprio sujeito, para que não
sejam assumidas concepções prévias e o fenômeno se mostre como é de fato. A
entrevista fenomenológica reitera como tarefa da sociologia compreensiva a
escuta pela busca da essência do vivido, adotando uma postura sem pré conceitos
ou julgamentos, desvelando o significado e a compreensão adotada pelo sujeito
sobre seus desafios vivenciados 8,9.
O estudo foi realizado na Unidade de
Internação Psiquiátrica (UIP) de um hospital geral, localizado em Porto Alegre,
no Rio Grande do Sul, Brasil. Participaram do estudo 20 profissionais de uma
equipe de enfermagem, sendo dez enfermeiros e dez técnicos de enfermagem que atuam
na UIP. Os critérios de inclusão foram: ser profissional da equipe de
enfermagem na UIP há mais de um ano e aceitar participar do estudo. Foram
excluídos da participação os profissionais da equipe de enfermagem que se
encontravam de atestado médico por mais de 15 dias. Todos participantes
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Quanto
à caracterização dos participantes, constatou-se que dos 20 integrantes do
estudo, 14 eram do sexo feminino, com idade entre 33 a 57 anos. O tempo de
vínculo com a instituição variou entre um a 30 anos. Todos os enfermeiros
participantes possuem formação complementar, sendo especializados na área de
saúde mental; dos dez técnicos de enfermagem, dois estão cursando graduação, um
em enfermagem e um em psicologia. Os participantes foram selecionados de forma
intencional por sua atuação em diferentes turnos de trabalho, englobando
profissionais do turno da manhã, tarde, noturno e período intermediário.
Ao
realizar as entrevistas, utilizou-se como questão norteadora: “Quais os
desafios que você enfrenta no seu dia a dia na unidade de internação
psiquiátrica?”. As entrevistas foram realizadas de forma individual, em uma
sala privativa disponível na própria UIP; as entrevistas foram gravadas,
apresentando em média 45 minutos de duração, sendo transcritas na íntegra
posteriormente para análise. A coleta de dados ocorreu no primeiro semestre de
2018, sendo realizada pelos doutorandos e mestrandos vinculados ao projeto de
pesquisa, através de uma postura compreensiva e livre de julgamentos, seguindo
a instância de uma entrevista fenomenológica.
A
análise fenomenológica das entrevistas seguiu quatro etapas, sendo a primeira a
leitura atenta de cada transcrição realizada na íntegra, com intuito de captar
a situação vivenciada. Após, foi realizada uma releitura das entrevistas,
objetivando agrupar trechos que contém aspectos significativos semelhantes, com
o foco no fenômeno desta pesquisa, os desafios dos sujeitos. A partir disso, é
realizada a descrição (denominada como categorização) de acordo com os desafios
identificados no discurso subjetivo do sujeito; finalizando a análise dos
dados, as características das falas ficam explícitas e será estabelecido o
significado dos desafios, revelando a essência do fenômeno pesquisado 9,10.
A
partir da análise das falas dos participantes, organizaram-se os resultados das
vivências dos profissionais de enfermagem em três categorias concretas:
“superar o excesso de demandas no trabalho”; “aprimorar o estoque de
conhecimento profissional” e “aperfeiçoar a comunicação entre os
profissionais”.
O
projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil e aprovado em 26/12/2016
pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos, sob o parecer nº
1.882.506. Como forma de garantir o anonimato dos participantes, utilizou-se a
letra E (enfermagem) e o número sequencial de um a vinte para referir-se aos
participantes (E01 à E20).
RESULTADOS
E DISCUSSÃO
A
partir da análise dos depoimentos dos participantes, sob a perspectiva da
sociologia fenomenológica de Alfred Schutz, emergiram as três categorias
concretas, que estão descritas a seguir:
Superar
o excesso de demandas no trabalho
Na
primeira categoria os profissionais discorrem acerca do desafio de superar o
excesso de demandas no trabalho, o que costuma acarretar em uma reorganização
na dinâmica de serviço, como forma de evitar a sobrecarga de um único
profissional, sendo relacionado ao déficit de profissionais presentes para
suprir a assistência aos pacientes e para prestar suporte aos técnicos de
enfermagem. O número de profissionais disponíveis também reflete na dificuldade
em administrar o tempo de trabalho para viabilizar produtividade, já que além
da assistência prestada diretamente ao paciente, faz-se necessário executar os
registros das atividades realizadas e escalas de avaliação de enfermagem.
“O desafio é conseguir
conciliar tudo. Cada vez está aumentando mais o número de coisas que tem que
fazer registros, a parte burocrática tem crescido muito [...] tu vai ter que
saber dar conta disso aí e mais da assistência.” (E20)
“Porque às vezes tu não
sabe se vai conseguir fazer tudo... a gente tem que se organizar, pedir ajuda
para uma colega. O desafio pra mim, é cumprir tudo aquilo que eu tenho pra
fazer naquele período.” (E01)
“Um dos grandes desafios é
o tempo, dentro dessas 6 horas, tu tem muita coisa pra fazer... tu tem todo
esse cuidado com o paciente.” (E15)
“O desafio com a
quantidade de demanda de trabalho que a gente tem, é conseguir manter o meu
trabalho como eu gosto. Todos os dias, estou correndo atrás do tempo para
conseguir fazer tudo e manter da melhor maneira possível.” (E05)
A
divisão do processo de trabalho da equipe de enfermagem advém de leis e normas
que regem as funções específicas aos atores envolvidos na assistência do
cuidado, sendo atribuídas conforme a categoria dos profissionais.
Em
uma unidade de internação psiquiátrica, cabe aos enfermeiros suas competências
específicas como a gerência do trabalho, avaliação dos pacientes e cuidados de
maior complexidade, realização das escalas de trabalho e dimensionamento de
pessoal, assim como a solicitação e manutenção dos materiais. Aos técnicos de
enfermagem cabe a prática de cuidados diretos ao paciente, como administração
de medicação, medidas de higiene e conforto, controle de sinais vitais e
monitoramentos dos sintomas psiquiátricos/clínicos ao longo do turno; além
disso, também são responsáveis por demandas como transporte dos pacientes e
auxiliar na organização do posto de enfermagem11.
Mesmo
com a estruturação da escala de trabalho que objetiva dividir de forma
equitativa o número de pacientes conforme os profissionais disponíveis,
diariamente a equipe de enfermagem vivencia intercorrências que interrompem o
processo de trabalho e afetam diretamente a administração do tempo de
assistência, como a organização da estrutura física da unidade, imprevistos
e/ou solicitações dos pacientes ou familiares que surgem ao longo do turno.
Essa
dimensão invisível foge do que é previsto em prescrições, sendo uma parte não
antecipável do processo de trabalho e que acarreta em alterações da dinâmica do
serviço, contribuindo para o sentimento de acúmulo de funções11. A
partir dos relatos dos participantes, percebe-se que tais adversidades geram um
agir coletivo na enfermagem, sendo necessária a articulação da equipe para não
causar a sobrecarga individual, fazendo com que os profissionais auxiliem na
assistência de outros pacientes e acolham além de sua escala profissional.
O
número de profissionais presentes no turno de trabalho para cumprir as demandas
diárias e manejar as intercorrências, é proporcional ao maior ou menor desgaste
dos trabalhadores; o déficit de recursos humanos reflete na qualidade do
serviço, podendo gerar riscos nas medidas de segurança do paciente e à saúde
ocupacional. A sobrecarga de trabalho pode ocasionar uma pressão psicológica ao
profissional, sendo relacionada ao desenvolvimento de sofrimento mental e
sintomas como ansiedade no ambiente de serviço12.
As
adaptações assumidas para suprir as tarefas apresentam aspectos que se
distanciam e outros que aproximam de uma assistência integral. Faz-se
necessário refletir sobre a possibilidade de incorporar novos modelos
gerenciais, que analisem a medida de carga de trabalho de cada paciente e
quantos profissionais realmente são necessários para a sua assistência13.
É fundamental unir-se e dialogar com as chefias do serviço, visando prover
meios de adequar o dimensionamento e propiciar um ambiente favorável para o
bem-estar profissional e um olhar ao paciente em sua totalidade.
Aprimorar
o estoque de conhecimento profissional
Incorporado
às demandas que fazem parte da assistência e englobam prestar o cuidado aos
pacientes, a equipe de enfermagem tem como desafio a necessidade de conciliar o
tratamento dos sintomas psiquiátricos e clínicos, já que os pacientes podem ser
portadores de doenças crônicas ou agudas. Os profissionais relatam que os
desafios são diários e fazem parte do cotidiano do serviço, já que envolvem
aspectos como lidar com situações singulares, urgências psiquiátricas,
pacientes de difícil manejo e com comorbidades que requerem novos aprendizados
no âmbito clínico e/ou psiquiátrico. A partir dessa dificuldade, os
profissionais discorrem sobre a necessidade de buscar aperfeiçoamento em
enfermagem, para adquirir novos conhecimentos e proporcionar um cuidado de
qualidade.
“O paciente tem várias
outras comorbidades clínicas e vem para a nossa unidade... a gente fica um
pouco inseguro, porque vai muito além do nosso conhecimento do dia-a-dia. São
barreiras que não tem como desviar [...] fazem com que a gente tenha que se
adaptar, tenha que se qualificar.” (E03)
“Tu pode estar preparado
nesse momento e depois surge outro desafio e aquilo que tu achava que estava
preparado, tu vai ter que desconstruir e inventar um outro cuidado, uma outra
forma de cuidar. A gente tem que buscar, a gente tem que se capacitar.” (E04)
“O cuidado psiquiátrico já
está tudo na ponta da língua, mas o cuidado clínico, exige um pouco mais a
nível de articular estratégias que possam ser eficientes para aquele cuidado.
Exige, às vezes tu pesquisar, falar com a equipe...” (E13)
“É um desafio todos os
dias, de aprender coisas novas, de fazer o melhor que pode, de ter uma passagem
de plantão completa, com todas as informações.” (E08)
O
atendimento prestado pela equipe de enfermagem em uma unidade de internação tem
como tarefa promover o cuidado através de um olhar multifacetado, buscando
contemplar os sintomas psiquiátricos e as demais comorbidades apresentadas pelo
paciente, para que seja possível um atendimento integral e igualitário, como é
preconizado pela Reforma Psiquiátrica14. De acordo com as falas dos
participantes, os profissionais percebem os cuidados de caráter clínico como
desafios de maior complexidade em seu trabalho, por carecer de práticas e
procedimentos que não fazem parte de seu cotidiano, sendo necessário revisar
protocolos ou solicitar apoio da equipe multiprofissional para realizá-las.
Para
Schutz, este conjunto de aprendizados e experiências prévias é denominado como
estoque de conhecimentos, sendo construído a partir das vivências de cada
sujeito e que influenciam na forma de agir, pensar e interpretar as situações
vivenciadas no passado, presente e até mesmo na forma de refletir sobre o
futuro9. O estoque de conhecimento pode ser “acessado”
diariamente e é mutável, seguindo um fluxo contínuo e sofrendo alterações
conforme as experiências posteriores que enriquecem e acrescentam novos
significados, atribuindo novas perspectivas as suas experiências14.
Conforme
a fala do participante E04, a equipe de enfermagem resgata seu estoque de
conhecimento no cotidiano de trabalho para traçar estratégias de cuidado e,
reconhece também a necessidade de estar aberto a novas concepções e
(des)construções para reinventar uma melhor forma de cuidado, tendo em vista
que não existe uma única forma de cuidar ou algum conhecimento absoluto. Neste
contexto, os profissionais relatam sentir a necessidade de aprimorar seu
estoque de conhecimento para sentir-se seguros na assistência, através do
consumo de pesquisas científicas, da troca de informações com a equipe
multiprofissional e ações como a educação continuada.
A educação continuada consiste na
implementação de programas de capacitação nas instituições, sendo uma
ferramenta essencial para desenvolver o elo entre a experiência prática e o
subsídio teórico, abordando dúvidas e temáticas que sejam apontadas pela
equipe. A contribuição dos programas de capacitação na melhoria dos processos
de saúde é confirmada por estudos, sendo comprovado que o processo de
aprendizagem contínua reflete em uma detecção precoce dos agravos e no
aprimoramento da competência dos profissionais que foram integrantes de
práticas educativas15.
Em
contraponto às falas dos participantes, há estudos que trazem como principal
dificuldade as práticas de âmbito psiquiátrico, inferindo que os profissionais
se percebem despreparados para o manejo das situações de crise psiquiátricas,
devido a ausência de capacitação para lidar com as necessidades das pessoas com
transtorno mental. O despreparo provém também da falta de experiência prévia
com a assistência a tais pacientes, gerando sentimentos de medo e impotência
nos profissionais, estando relacionados ao estigma de que estes pacientes são
imprevisíveis e de difícil socialização16.
A
atuação de profissionais de saúde que não apresentem estoque de conhecimento
relacionado ao cuidado de saúde mental e, principalmente, que não estejam
dispostos a sua aprimoração, pode levar a propagação do estigma dentro dos
serviços de saúde e expor os pacientes a situações de vulnerabilização e
injustiça social, como a incredulidade por parte dos profissionais de saúde ao
questionar ou reduzir sua percepção quanto a sua sintomatologia. Assim,
percebe-se a importância de qualificar os profissionais que irão atuar em
serviços específicos de atenção em saúde mental, para que estejam aptos ao
enfrentamento de circunstâncias do cotidiano17.
Aperfeiçoar
a comunicação entre os profissionais
Na
terceira categoria emerge o desafio de aperfeiçoar a comunicação entre
profissionais. Neste, a equipe discorre sobre o papel de educador exercido no
cotidiano da assistência, visando desenvolver autonomia do paciente e de sua
família com vistas a reabilitação e autocuidado por meio de conversas e trocas
de informações, compreendendo a educação em saúde como uma linha contínua de
cuidado. Neste âmbito, a forma de execução das estratégias de cuidado é
subjetiva e singular conforme cada profissional, o que reflete em visões
controvérsias dentro da equipe e gera dificuldade em implementar comunicação
assertiva entre os profissionais. Além disso, a dificuldade de comunicação
também se agrava pelos obstáculos que interferem no contato direto com os
demais profissionais, como as trocas de turnos e o grande número de
profissionais envolvidos na assistência, devido a atuação da equipe
multiprofissional.
“Fazer com que todas as
partes venham conversando visando o bem do paciente, a diferença de visões é comum
e elas normalmente fazem bem. Mas elas não podem se tornar uma distração e
também não pode se tornar um problema”. (E03)
“É um desafio fazer com
que todo mundo fale a mesma língua, que todo mundo maneje no mesmo sentido, é
um desafio a dificuldade de comunicação também, não tem como falar com todo
mundo sempre...” (E10)
“Fazer um trabalho
conjunto, ter uma conduta uniforme, ter uma sequência, falar a mesma língua...
que não haja dissociações.” (E20)
“A equipe de enfermagem é
muito plural, são pessoas com diversas vivências, diversas idades, diferentes experiências.
Embora, sempre exista um cuidado ético, humanizado, essas coisas assim que
interferem diretamente no atendimento do paciente.” (E06)
Entre
os obstáculos citados nos discursos dos profissionais está a dificuldade em
manter um só direcionamento nas intervenções e combinações planejadas para o
tratamento do paciente ao longo do período de sua internação, devido a rotação
dos profissionais de enfermagem e pelo envolvimento de diversos profissionais
da saúde, caracterizado pela disposição de uma equipe multidisciplinar. A
dificuldade em assegurar uma série de intervenções terapêuticas que devem ser
vigentes se agrava também pela dificuldade em lidar com a pluralidade,
apresentada nas formas de pensar e agir no trabalho. A heterogeneidade dos
profissionais enriquece as discussões e planejamentos, mas são dessas
diferenças que surgem as situações de conflitos, na medida em que não é
possível conciliar todos os valores pessoais18.
Implementar
a comunicação entre os profissionais requer o estabelecimento de um encontro
direto entre atores sociais, o que Schutz denomina como relação face a face,
ocorrendo quando os sujeitos envolvidos estão conscientes um do outro,
expressando sua intersubjetividade em sua densidade total. Neste contexto,
sempre que um indivíduo encontra outro, ambos trazem consigo seu estoque de
conhecimento previamente construído. Portanto, o cuidado profissional deriva a
partir da singularidade do sujeito envolvido, das diferentes concepções do
processo de saúde e doença e do próprio fazer do enfermeiro, conduzindo com a
sua individualidade experiências que são compartilhadas com seus semelhantes,
porém, ao serem interpretadas por outros, podem conduzir vivências positivas ou
negativas19.
A
impossibilidade de desenvolver parceria entre os profissionais e a comunicação
insatisfatória levam ao desenvolvimento de um ambiente de trabalho
desarticulado, gerando conflitos que podem ser manifestados de forma declarada
ou velada. A comunicação entre a equipe perpassa a comunicação verbal, reconhecendo
também que a linguagem corporal e postura adotada durante a atuação no trabalho
podem transmitir ideias negativas. As relações interpessoais inadequadas podem
ser um fator gerador de sofrimento, resultando em sentimentos de irritação,
desgaste emocional e desvalorização profissional, podendo levar ao adoecimento
psicológico20.
O
déficit de comunicação afeta diretamente no atendimento ao paciente, pois
informações pertinentes não são compartilhadas de forma adequada, devido a
interrupção do processo de comunicação. Nesta conjuntura, há profissionais que
evitam questionar planos de tratamento por medo de sofrer represálias,
impactando negativamente na segurança do paciente e na autonomia profissional21.
O trabalho da equipe de enfermagem implica no estabelecimento diário de
relações face a face, seja entre a própria equipe, com os pacientes e os demais
profissionais; durante a prática assistencial, a equipe de enfermagem lida com
o ser humano e sua individualidade, mesmo no desenvolvimento de ações de cunho
coletivo, sendo necessário refletir sobre estratégias que potencializam a
comunicação assertiva.
Como
estratégia de evitar conflitos no ambiente de trabalho, destaca-se a
importância de reuniões periódicas com intuito de promover um feedback das
situações apresentadas pela equipe, abrangendo o diálogo não só entre
determinadas categorias, mas toda a equipe de enfermagem, para que os problemas
possam ser pontuados e solucionados coletivamente. A presença de uma liderança
autêntica que oriente e apoie os demais profissionais, prestando suporte e
valorizando o respeito mútuo é essencial para uma comunicação efetiva,
contribuindo para a reflexão e aperfeiçoamento das relações interpessoais21.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Com
essa pesquisa, pode-se identificar os desafios vivenciados pelos profissionais
de uma equipe de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica. A partir
do referencial utilizado neste estudo, foi possível abranger as vivências
destes profissionais e as dificuldades decorrentes com sua atuação no serviço,
possibilitando a expressão dos sujeitos sobre sua narrativa no mundo
social.
Constatou-se
como desafio a dificuldade em superar o excesso de demandas no trabalho,
demarcados pela crescente demanda de tarefas diárias e as diversas competências
que são desenvolvidas durante a assistência direta ao paciente, em contraponto
ao déficit de profissionais disponíveis.
Também
foi identificado como desafio a necessidade de aprimorar o estoque de
conhecimento profissional, sendo apreendido principalmente em momentos de
atendimento aos imprevistos e urgências, diante de situações em que se
clarifica como indispensável manter-se atualizado sobre os conhecimentos
científicos de enfermagem, visando garantir maior segurança para prestar a
assistência.
Por
último, emergiu como um desafio aperfeiçoar a comunicação entre os
profissionais, advindo das diferentes visões sobre como deve ser a atuação
profissional no ambiente de trabalho e agravado pela logística do serviço, que,
por vezes, impede o diálogo direto.
Como
limitações do estudo, pondera-se a realização das entrevistas apenas com a
equipe de enfermagem, estudos posteriores podem ser realizados englobando-se as
ações dos demais profissionais da equipe multiprofissional nesse cenário.
Ainda, o contexto do cenário de estudo em que os participantes atuam pode
repercutir nas suas ações, não possibilitando que os resultados sejam
generalizados para outras unidades de internação psiquiátrica.
Ainda
assim, considera-se os resultados relevantes para ampliar a discussão sobre o
cuidado de saúde mental, podendo instigar a produção de estratégias para
minimizar os obstáculos, impactando positivamente para subsidiar um ambiente de
trabalho melhor e, por consequência, a melhora do bem-estar destes profissionais.
A reorganização do processo de trabalho, no sentido de superar as adversidades,
reflete também no cuidado em saúde, gerando um cuidado integral e efetivo.
Os
autores declaram que não possuem conflito de interesse.
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