REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM

ISSN: 2317-3092

 

 

Recebido em:

09/07/2020

Aprovado em:

18/02/2021

Como citar este artigo

Gráfico de linhas

 

Torres MEL, Nasi C, Schneider JF, Pinho LB, Camatta MW, Mello RM. Desafios vividos por uma equipe de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica. Rev Norte Mineira de enferm. 2020; 9(2): 69-77.

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Autor correspondente

Gráfico de linhas

 

Cíntia Nasi

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Correio eletrônico: nasi.cintia@gmail.com

 

 

 

 

ARTIGO ORIGINAL

DESAFIOS VIVIDOS POR UMA EQUIPE DE ENFERMAGEM EM UMA UNIDADE DE INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA

 

Challenges experienced by a nursing team at a psychiatric inpatient unit

Maria Eduarda de Lima Torres1, Cíntia Nasi2, Jacó Fernando Schneider3, Leandro Barbosa de Pinho4, Marcio Wagner Camatta5, Rita Mello de Mello6

 

 

1 Enfermeira, Mestranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PPGENF) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, BR, m.eduardatorres1@gmail.com, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-5728-0910

2 Doutora em Enfermagem, Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, BR, nasi.cintia@gmail.com, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-4322-3701

3 Doutor em Enfermagem, Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, BR, jaco_schneider@uol.com.br, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-0151-3612

4 Doutor em Enfermagem, Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, BR, lbpinho@uol.com.br, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-1434-3058

5 Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, BR, mcamatta@gmail.com, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-4067-526X

6 Doutora em Enfermagem, Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, BR, ritamello42@gmail.com  ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-0032-9055

 

DOI: https://doi.org/10.46551/rnm23173092202090207

 

 

Objetivo: identificar os desafios vividos por uma equipe de enfermagem de uma Unidade de Internação Psiquiátrica em um Hospital Geral. Método: pesquisa qualitativa, com o referencial teórico-metodológico da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. Participaram do estudo 20 profissionais de enfermagem, que atuam em uma unidade de internação psiquiátrica de um Hospital Universitário de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Os dados foram coletados no primeiro semestre de 2018, por meio de entrevistas, e analisados mediante análise fenomenológica. O estudo seguiu todos os aspectos éticos e foi aprovado pelo Comitê de Ética. Resultados: o fenômeno do estudo foi sustentado pelas categorias concretas: superar o excesso de demandas no trabalho; aprimorar o estoque de conhecimento profissional e aperfeiçoar a comunicação entre os profissionais. Considerações finais: foi possível abranger as vivências destes profissionais e suas dificuldades na atuação do serviço, possibilitando a expressão dos sujeitos sobre sua narrativa no mundo social.

 

DESCRITORES: Enfermagem psiquiátrica; Prática profissional; Hospitalização; Pesquisa qualitativa.

 

Objective: to identify the challenges lived by a nursing team from a Psychiatric Inpatient Unit of a General Hospital. Method: A qualitative and phenomenological study, with Alfred Schutz’s framework of phenomenological sociology. Participated in the study twenty nursing professionals who work in a psychiatric hospitalization unit of a university hospital in the city of Porto Alegre, in Rio Grande do Sul, Brazil. Data was collected through interviews in the first half of 2018, and analyzed using phenomenological analysis. The study followed all ethical aspects and was approved by the ethics committee. Results: the study phenomenon was supported by the concrete categories: to overcome excess demands at work; to improve the storage of professional knowledge and improve communication among professionals. Final considerations: it was possible to embrace the experiences of these professionals and their difficulties lived in the line of duty, allowing the subjects’ expression about their narrative in the social world.

 

DESCRIPTORS: Psychiatric nursing; Professional practice; Hospitalization; Qualitative research

INTRODUÇÃO

 

A atenção em saúde mental é marcada pelas fortes mudanças de paradigmas vivenciadas nos serviços de saúde, advindas do processo de luta pela democratização da saúde e das pautas de inclusão e resistência social defendidas pela Reforma Psiquiátrica, que serviram como base e idealização para as legislações sequentes da área. Como forma de consolidar o cuidado em saúde mental foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial, que preconiza a criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, como os serviços territoriais e a implementação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais1. A ampliação dos leitos psiquiátricos e o acolhimento dessa população nos hospitais gerais é de extrema importância, sendo um fator necessário para modificar o cenário de exclusão social que era propagado pela reclusão nos hospitais psiquiátricos. A assistência a estes pacientes em hospitais gerais propicia a efetivação de um cuidado integral pela disponibilidade de equipes multidisciplinares, possibilitando um tratamento que contemple também as alterações físico-biológicas, além de prezar pela melhoria das condições psicossociais2. 

Entretanto, entre as dificuldades vivenciadas no processo de desinstitucionalização, provindas desde o início da Reforma Psiquiátrica, está o repasse de recursos financeiros para o desenvolvimento das estratégias substitutivas, ocasionando lentidão para a ampliação de vagas em serviços extra hospitalares, enquanto há redução dos leitos hospitais psiquiátricos, levando à maior fragilidade de abrangência destes usuários3. Quanto à disponibilidade dos serviços de saúde mental na América do Sul, segundo os dados notificados na Organização Mundial de Saúde (OMS), a média de leitos disponíveis nos hospitais psiquiátricos é de 5,1 por 100.000 habitante; já nos hospitais gerais, a disponibilidade de leitos disponíveis para a população com transtorno mental é de 1,6 por 100.000 habitantes4. Constata-se ainda a crescente demanda de atendimentos em saúde mental, considerando que uma a cada dez pessoas, cerca de 10% da população mundial, sofre com algum tipo de transtorno mental. O número de pessoas que vivem com depressão aumentou 18,4% dentro de um período de dez anos, de 2005 a 2015, totalizando 322 milhões de pessoas com este transtorno no mundo; já os diagnósticos de transtornos de ansiedade aumentaram 14,9% neste mesmo período, compreendendo 264 milhões de pessoas5.

Em contrapartida, os profissionais de saúde que atuam no cuidado em saúde mental (enfermeiros, psicólogos, médicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros trabalhadores), ainda representam um número restrito frente às demandas das pessoas que apresentam algum quadro de sofrimento mental. A ausência de profissionais qualificados para atuar no atendimento em saúde mental também é um obstáculo, já que apenas 1,8% de enfermeiros que atuam nesta área participaram de capacitações5. Dessa forma, além dos desafios que envolvem as assimetrias e impasses de âmbito político-econômico que interferem na expansão das pautas previstas nas políticas públicas, a assistência em saúde mental enfrenta diversas barreiras como a escassez de profissionais qualificados, a crescente demanda dos casos de saúde mental, as frequentes reinternações psiquiátricas que podem levar à ruptura de laços familiares e a cronificação do usuário, o preconceito e as dificuldades de reinserção social dessa população6.

O papel da enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica se dá como protagonista na atuação do tratamento durante o atendimento hospitalar por sua assistência direta ao cuidado do paciente, transcorrendo a maior parte de sua carga horária de trabalho junto ao mesmo. No entanto, no seu cotidiano de trabalho a equipe de enfermagem se depara com diversos obstáculos, como dificuldades de manejo ao paciente e barreiras estruturais, como a organização do serviço de um hospital geral, falhas e descontinuidades no fluxo da rede de atenção psicossocial; além disso, a equipe de enfermagem se depara com dificuldades como a grande demanda de fluxo de pacientes, além da dinâmica do processo de trabalho de enfermagem7.

Com a complexidade do cuidado de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica, os profissionais são expostos a barreiras e obstáculos que dificultam seu processo de trabalho. Para a melhoria da prestação do cuidado de saúde mental desenvolvido pela equipe de enfermagem, é fundamental identificar os desafios experienciados durante a abordagem aos indivíduos em sofrimento mental, buscando compreender as dificuldades e barreiras vivenciadas pela equipe em seu cotidiano de trabalho, através de uma postura imparcial e empática, focando na percepção dos profissionais. Assim, o objetivo desta pesquisa é identificar os desafios vividos por uma equipe de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica.

 

MÉTODO

 

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza fenomenológica, sendo um recorte de um projeto de pesquisa maior denominado “O significado das ações da equipe de enfermagem em uma Unidade de Internação Psiquiátrica: perspectivas da sociologia fenomenológica”, tendo como referencial a sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.

O uso do referencial se faz pertinente nas pesquisas de saúde mental, já que este caminha na direção de fortalecimento do movimento da reforma psiquiátrica, uma vez que a sociologia fenomenológica busca dar voz aos sujeitos envolvidos, considerando a sua subjetividade, vivências e singularidades. A fenomenologia propicia o enfoque no mundo social das pessoas, oportunizando uma abertura para compreensão da vivência do outro e evidenciando os desafios da equipe de enfermagem8.

Schutz traz como perspectiva a possibilidade de interpretar a realidade social subjetiva a partir do significado que é atribuído aos fenômenos vividos pelos sujeitos, reflexão que deve ser verbalizada pelo próprio sujeito, para que não sejam assumidas concepções prévias e o fenômeno se mostre como é de fato. A entrevista fenomenológica reitera como tarefa da sociologia compreensiva a escuta pela busca da essência do vivido, adotando uma postura sem pré conceitos ou julgamentos, desvelando o significado e a compreensão adotada pelo sujeito sobre seus desafios vivenciados 8,9.

 O estudo foi realizado na Unidade de Internação Psiquiátrica (UIP) de um hospital geral, localizado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil. Participaram do estudo 20 profissionais de uma equipe de enfermagem, sendo dez enfermeiros e dez técnicos de enfermagem que atuam na UIP. Os critérios de inclusão foram: ser profissional da equipe de enfermagem na UIP há mais de um ano e aceitar participar do estudo. Foram excluídos da participação os profissionais da equipe de enfermagem que se encontravam de atestado médico por mais de 15 dias. Todos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Quanto à caracterização dos participantes, constatou-se que dos 20 integrantes do estudo, 14 eram do sexo feminino, com idade entre 33 a 57 anos. O tempo de vínculo com a instituição variou entre um a 30 anos. Todos os enfermeiros participantes possuem formação complementar, sendo especializados na área de saúde mental; dos dez técnicos de enfermagem, dois estão cursando graduação, um em enfermagem e um em psicologia. Os participantes foram selecionados de forma intencional por sua atuação em diferentes turnos de trabalho, englobando profissionais do turno da manhã, tarde, noturno e período intermediário.

Ao realizar as entrevistas, utilizou-se como questão norteadora: “Quais os desafios que você enfrenta no seu dia a dia na unidade de internação psiquiátrica?”. As entrevistas foram realizadas de forma individual, em uma sala privativa disponível na própria UIP; as entrevistas foram gravadas, apresentando em média 45 minutos de duração, sendo transcritas na íntegra posteriormente para análise. A coleta de dados ocorreu no primeiro semestre de 2018, sendo realizada pelos doutorandos e mestrandos vinculados ao projeto de pesquisa, através de uma postura compreensiva e livre de julgamentos, seguindo a instância de uma entrevista fenomenológica.

A análise fenomenológica das entrevistas seguiu quatro etapas, sendo a primeira a leitura atenta de cada transcrição realizada na íntegra, com intuito de captar a situação vivenciada. Após, foi realizada uma releitura das entrevistas, objetivando agrupar trechos que contém aspectos significativos semelhantes, com o foco no fenômeno desta pesquisa, os desafios dos sujeitos. A partir disso, é realizada a descrição (denominada como categorização) de acordo com os desafios identificados no discurso subjetivo do sujeito; finalizando a análise dos dados, as características das falas ficam explícitas e será estabelecido o significado dos desafios, revelando a essência do fenômeno pesquisado 9,10.

A partir da análise das falas dos participantes, organizaram-se os resultados das vivências dos profissionais de enfermagem em três categorias concretas: “superar o excesso de demandas no trabalho”; “aprimorar o estoque de conhecimento profissional” e “aperfeiçoar a comunicação entre os profissionais”.

O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil e aprovado em 26/12/2016 pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos, sob o parecer nº 1.882.506. Como forma de garantir o anonimato dos participantes, utilizou-se a letra E (enfermagem) e o número sequencial de um a vinte para referir-se aos participantes (E01 à E20).

 

RESULTADOS  E DISCUSSÃO

 

A partir da análise dos depoimentos dos participantes, sob a perspectiva da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz, emergiram as três categorias concretas, que estão descritas a seguir:

 

Superar o excesso de demandas no trabalho

 

 Na primeira categoria os profissionais discorrem acerca do desafio de superar o excesso de demandas no trabalho, o que costuma acarretar em uma reorganização na dinâmica de serviço, como forma de evitar a sobrecarga de um único profissional, sendo relacionado ao déficit de profissionais presentes para suprir a assistência aos pacientes e para prestar suporte aos técnicos de enfermagem. O número de profissionais disponíveis também reflete na dificuldade em administrar o tempo de trabalho para viabilizar produtividade, já que além da assistência prestada diretamente ao paciente, faz-se necessário executar os registros das atividades realizadas e escalas de avaliação de enfermagem.

 

“O desafio é conseguir conciliar tudo. Cada vez está aumentando mais o número de coisas que tem que fazer registros, a parte burocrática tem crescido muito [...] tu vai ter que saber dar conta disso aí e mais da assistência.” (E20)

“Porque às vezes tu não sabe se vai conseguir fazer tudo... a gente tem que se organizar, pedir ajuda para uma colega. O desafio pra mim, é cumprir tudo aquilo que eu tenho pra fazer naquele período.” (E01)

“Um dos grandes desafios é o tempo, dentro dessas 6 horas, tu tem muita coisa pra fazer... tu tem todo esse cuidado com o paciente.” (E15)

“O desafio com a quantidade de demanda de trabalho que a gente tem, é conseguir manter o meu trabalho como eu gosto. Todos os dias, estou correndo atrás do tempo para conseguir fazer tudo e manter da melhor maneira possível.” (E05)

 

A divisão do processo de trabalho da equipe de enfermagem advém de leis e normas que regem as funções específicas aos atores envolvidos na assistência do cuidado, sendo atribuídas conforme a categoria dos profissionais.

Em uma unidade de internação psiquiátrica, cabe aos enfermeiros suas competências específicas como a gerência do trabalho, avaliação dos pacientes e cuidados de maior complexidade, realização das escalas de trabalho e dimensionamento de pessoal, assim como a solicitação e manutenção dos materiais. Aos técnicos de enfermagem cabe a prática de cuidados diretos ao paciente, como administração de medicação, medidas de higiene e conforto, controle de sinais vitais e monitoramentos dos sintomas psiquiátricos/clínicos ao longo do turno; além disso, também são responsáveis por demandas como transporte dos pacientes e auxiliar na organização do posto de enfermagem11.

Mesmo com a estruturação da escala de trabalho que objetiva dividir de forma equitativa o número de pacientes conforme os profissionais disponíveis, diariamente a equipe de enfermagem vivencia intercorrências que interrompem o processo de trabalho e afetam diretamente a administração do tempo de assistência, como a organização da estrutura física da unidade, imprevistos e/ou solicitações dos pacientes ou familiares que surgem ao longo do turno.

Essa dimensão invisível foge do que é previsto em prescrições, sendo uma parte não antecipável do processo de trabalho e que acarreta em alterações da dinâmica do serviço, contribuindo para o sentimento de acúmulo de funções11. A partir dos relatos dos participantes, percebe-se que tais adversidades geram um agir coletivo na enfermagem, sendo necessária a articulação da equipe para não causar a sobrecarga individual, fazendo com que os profissionais auxiliem na assistência de outros pacientes e acolham além de sua escala profissional.   

O número de profissionais presentes no turno de trabalho para cumprir as demandas diárias e manejar as intercorrências, é proporcional ao maior ou menor desgaste dos trabalhadores; o déficit de recursos humanos reflete na qualidade do serviço, podendo gerar riscos nas medidas de segurança do paciente e à saúde ocupacional. A sobrecarga de trabalho pode ocasionar uma pressão psicológica ao profissional, sendo relacionada ao desenvolvimento de sofrimento mental e sintomas como ansiedade no ambiente de serviço12.

As adaptações assumidas para suprir as tarefas apresentam aspectos que se distanciam e outros que aproximam de uma assistência integral. Faz-se necessário refletir sobre a possibilidade de incorporar novos modelos gerenciais, que analisem a medida de carga de trabalho de cada paciente e quantos profissionais realmente são necessários para a sua assistência13. É fundamental unir-se e dialogar com as chefias do serviço, visando prover meios de adequar o dimensionamento e propiciar um ambiente favorável para o bem-estar profissional e um olhar ao paciente em sua totalidade.

 

Aprimorar o estoque de conhecimento profissional

 

Incorporado às demandas que fazem parte da assistência e englobam prestar o cuidado aos pacientes, a equipe de enfermagem tem como desafio a necessidade de conciliar o tratamento dos sintomas psiquiátricos e clínicos, já que os pacientes podem ser portadores de doenças crônicas ou agudas. Os profissionais relatam que os desafios são diários e fazem parte do cotidiano do serviço, já que envolvem aspectos como lidar com situações singulares, urgências psiquiátricas, pacientes de difícil manejo e com comorbidades que requerem novos aprendizados no âmbito clínico e/ou psiquiátrico. A partir dessa dificuldade, os profissionais discorrem sobre a necessidade de buscar aperfeiçoamento em enfermagem, para adquirir novos conhecimentos e proporcionar um cuidado de qualidade.

 

“O paciente tem várias outras comorbidades clínicas e vem para a nossa unidade... a gente fica um pouco inseguro, porque vai muito além do nosso conhecimento do dia-a-dia. São barreiras que não tem como desviar [...] fazem com que a gente tenha que se adaptar, tenha que se qualificar.” (E03)

“Tu pode estar preparado nesse momento e depois surge outro desafio e aquilo que tu achava que estava preparado, tu vai ter que desconstruir e inventar um outro cuidado, uma outra forma de cuidar. A gente tem que buscar, a gente tem que se capacitar.” (E04)

“O cuidado psiquiátrico já está tudo na ponta da língua, mas o cuidado clínico, exige um pouco mais a nível de articular estratégias que possam ser eficientes para aquele cuidado. Exige, às vezes tu pesquisar, falar com a equipe...” (E13)

“É um desafio todos os dias, de aprender coisas novas, de fazer o melhor que pode, de ter uma passagem de plantão completa, com todas as informações.” (E08)

 

O atendimento prestado pela equipe de enfermagem em uma unidade de internação tem como tarefa promover o cuidado através de um olhar multifacetado, buscando contemplar os sintomas psiquiátricos e as demais comorbidades apresentadas pelo paciente, para que seja possível um atendimento integral e igualitário, como é preconizado pela Reforma Psiquiátrica14. De acordo com as falas dos participantes, os profissionais percebem os cuidados de caráter clínico como desafios de maior complexidade em seu trabalho, por carecer de práticas e procedimentos que não fazem parte de seu cotidiano, sendo necessário revisar protocolos ou solicitar apoio da equipe multiprofissional para realizá-las.

Para Schutz, este conjunto de aprendizados e experiências prévias é denominado como estoque de conhecimentos, sendo construído a partir das vivências de cada sujeito e que influenciam na forma de agir, pensar e interpretar as situações vivenciadas no passado, presente e até mesmo na forma de refletir sobre o futuro9. O estoque de conhecimento pode ser “acessado” diariamente e é mutável, seguindo um fluxo contínuo e sofrendo alterações conforme as experiências posteriores que enriquecem e acrescentam novos significados, atribuindo novas perspectivas as suas experiências14. 

Conforme a fala do participante E04, a equipe de enfermagem resgata seu estoque de conhecimento no cotidiano de trabalho para traçar estratégias de cuidado e, reconhece também a necessidade de estar aberto a novas concepções e (des)construções para reinventar uma melhor forma de cuidado, tendo em vista que não existe uma única forma de cuidar ou algum conhecimento absoluto. Neste contexto, os profissionais relatam sentir a necessidade de aprimorar seu estoque de conhecimento para sentir-se seguros na assistência, através do consumo de pesquisas científicas, da troca de informações com a equipe multiprofissional e ações como a educação continuada. 

  A educação continuada consiste na implementação de programas de capacitação nas instituições, sendo uma ferramenta essencial para desenvolver o elo entre a experiência prática e o subsídio teórico, abordando dúvidas e temáticas que sejam apontadas pela equipe. A contribuição dos programas de capacitação na melhoria dos processos de saúde é confirmada por estudos, sendo comprovado que o processo de aprendizagem contínua reflete em uma detecção precoce dos agravos e no aprimoramento da competência dos profissionais que foram integrantes de práticas educativas15. 

Em contraponto às falas dos participantes, há estudos que trazem como principal dificuldade as práticas de âmbito psiquiátrico, inferindo que os profissionais se percebem despreparados para o manejo das situações de crise psiquiátricas, devido a ausência de capacitação para lidar com as necessidades das pessoas com transtorno mental. O despreparo provém também da falta de experiência prévia com a assistência a tais pacientes, gerando sentimentos de medo e impotência nos profissionais, estando relacionados ao estigma de que estes pacientes são imprevisíveis e de difícil socialização16.

A atuação de profissionais de saúde que não apresentem estoque de conhecimento relacionado ao cuidado de saúde mental e, principalmente, que não estejam dispostos a sua aprimoração, pode levar a propagação do estigma dentro dos serviços de saúde e expor os pacientes a situações de vulnerabilização e injustiça social, como a incredulidade por parte dos profissionais de saúde ao questionar ou reduzir sua percepção quanto a sua sintomatologia. Assim, percebe-se a importância de qualificar os profissionais que irão atuar em serviços específicos de atenção em saúde mental, para que estejam aptos ao enfrentamento de circunstâncias do cotidiano17.      

 

Aperfeiçoar a comunicação entre os profissionais

 

Na terceira categoria emerge o desafio de aperfeiçoar a comunicação entre profissionais. Neste, a equipe discorre sobre o papel de educador exercido no cotidiano da assistência, visando desenvolver autonomia do paciente e de sua família com vistas a reabilitação e autocuidado por meio de conversas e trocas de informações, compreendendo a educação em saúde como uma linha contínua de cuidado. Neste âmbito, a forma de execução das estratégias de cuidado é subjetiva e singular conforme cada profissional, o que reflete em visões controvérsias dentro da equipe e gera dificuldade em implementar comunicação assertiva entre os profissionais. Além disso, a dificuldade de comunicação também se agrava pelos obstáculos que interferem no contato direto com os demais profissionais, como as trocas de turnos e o grande número de profissionais envolvidos na assistência, devido a atuação da equipe multiprofissional.

 

“Fazer com que todas as partes venham conversando visando o bem do paciente, a diferença de visões é comum e elas normalmente fazem bem. Mas elas não podem se tornar uma distração e também não pode se tornar um problema”.  (E03)

“É um desafio fazer com que todo mundo fale a mesma língua, que todo mundo maneje no mesmo sentido, é um desafio a dificuldade de comunicação também, não tem como falar com todo mundo sempre...” (E10)

“Fazer um trabalho conjunto, ter uma conduta uniforme, ter uma sequência, falar a mesma língua... que não haja dissociações.” (E20)

“A equipe de enfermagem é muito plural, são pessoas com diversas vivências, diversas idades, diferentes experiências. Embora, sempre exista um cuidado ético, humanizado, essas coisas assim que interferem diretamente no atendimento do paciente.” (E06)

 

Entre os obstáculos citados nos discursos dos profissionais está a dificuldade em manter um só direcionamento nas intervenções e combinações planejadas para o tratamento do paciente ao longo do período de sua internação, devido a rotação dos profissionais de enfermagem e pelo envolvimento de diversos profissionais da saúde, caracterizado pela disposição de uma equipe multidisciplinar. A dificuldade em assegurar uma série de intervenções terapêuticas que devem ser vigentes se agrava também pela dificuldade em lidar com a pluralidade, apresentada nas formas de pensar e agir no trabalho. A heterogeneidade dos profissionais enriquece as discussões e planejamentos, mas são dessas diferenças que surgem as situações de conflitos, na medida em que não é possível conciliar todos os valores pessoais18.

Implementar a comunicação entre os profissionais requer o estabelecimento de um encontro direto entre atores sociais, o que Schutz denomina como relação face a face, ocorrendo quando os sujeitos envolvidos estão conscientes um do outro, expressando sua intersubjetividade em sua densidade total. Neste contexto, sempre que um indivíduo encontra outro, ambos trazem consigo seu estoque de conhecimento previamente construído. Portanto, o cuidado profissional deriva a partir da singularidade do sujeito envolvido, das diferentes concepções do processo de saúde e doença e do próprio fazer do enfermeiro, conduzindo com a sua individualidade experiências que são compartilhadas com seus semelhantes, porém, ao serem interpretadas por outros, podem conduzir vivências positivas ou negativas19.

A impossibilidade de desenvolver parceria entre os profissionais e a comunicação insatisfatória levam ao desenvolvimento de um ambiente de trabalho desarticulado, gerando conflitos que podem ser manifestados de forma declarada ou velada. A comunicação entre a equipe perpassa a comunicação verbal, reconhecendo também que a linguagem corporal e postura adotada durante a atuação no trabalho podem transmitir ideias negativas. As relações interpessoais inadequadas podem ser um fator gerador de sofrimento, resultando em sentimentos de irritação, desgaste emocional e desvalorização profissional, podendo levar ao adoecimento psicológico20.

O déficit de comunicação afeta diretamente no atendimento ao paciente, pois informações pertinentes não são compartilhadas de forma adequada, devido a interrupção do processo de comunicação. Nesta conjuntura, há profissionais que evitam questionar planos de tratamento por medo de sofrer represálias, impactando negativamente na segurança do paciente e na autonomia profissional21. O trabalho da equipe de enfermagem implica no estabelecimento diário de relações face a face, seja entre a própria equipe, com os pacientes e os demais profissionais; durante a prática assistencial, a equipe de enfermagem lida com o ser humano e sua individualidade, mesmo no desenvolvimento de ações de cunho coletivo, sendo necessário refletir sobre estratégias que potencializam a comunicação assertiva.

Como estratégia de evitar conflitos no ambiente de trabalho, destaca-se a importância de reuniões periódicas com intuito de promover um feedback das situações apresentadas pela equipe, abrangendo o diálogo não só entre determinadas categorias, mas toda a equipe de enfermagem, para que os problemas possam ser pontuados e solucionados coletivamente. A presença de uma liderança autêntica que oriente e apoie os demais profissionais, prestando suporte e valorizando o respeito mútuo é essencial para uma comunicação efetiva, contribuindo para a reflexão e aperfeiçoamento das relações interpessoais21.   

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Com essa pesquisa, pode-se identificar os desafios vivenciados pelos profissionais de uma equipe de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica. A partir do referencial utilizado neste estudo, foi possível abranger as vivências destes profissionais e as dificuldades decorrentes com sua atuação no serviço, possibilitando a expressão dos sujeitos sobre sua narrativa no mundo social. 

Constatou-se como desafio a dificuldade em superar o excesso de demandas no trabalho, demarcados pela crescente demanda de tarefas diárias e as diversas competências que são desenvolvidas durante a assistência direta ao paciente, em contraponto ao déficit de profissionais disponíveis.

Também foi identificado como desafio a necessidade de aprimorar o estoque de conhecimento profissional, sendo apreendido principalmente em momentos de atendimento aos imprevistos e urgências, diante de situações em que se clarifica como indispensável manter-se atualizado sobre os conhecimentos científicos de enfermagem, visando garantir maior segurança para prestar a assistência.

Por último, emergiu como um desafio aperfeiçoar a comunicação entre os profissionais, advindo das diferentes visões sobre como deve ser a atuação profissional no ambiente de trabalho e agravado pela logística do serviço, que, por vezes, impede o diálogo direto.

Como limitações do estudo, pondera-se a realização das entrevistas apenas com a equipe de enfermagem, estudos posteriores podem ser realizados englobando-se as ações dos demais profissionais da equipe multiprofissional nesse cenário. Ainda, o contexto do cenário de estudo em que os participantes atuam pode repercutir nas suas ações, não possibilitando que os resultados sejam generalizados para outras unidades de internação psiquiátrica.

Ainda assim, considera-se os resultados relevantes para ampliar a discussão sobre o cuidado de saúde mental, podendo instigar a produção de estratégias para minimizar os obstáculos, impactando positivamente para subsidiar um ambiente de trabalho melhor e, por consequência, a melhora do bem-estar destes profissionais. A reorganização do processo de trabalho, no sentido de superar as adversidades, reflete também no cuidado em saúde, gerando um cuidado integral e efetivo.

 

 

Os autores declaram que não possuem conflito de interesse.

 

REFERÊNCIAS

 

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