REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM

ISSN: 2317-3092

 

 

Recebido em:

10/08/2021

Aprovado em:

16/12/2021

Como citar este artigo

 

Ribeiro FHR, Romano MCC, Pinto FM, Martins, MAP, Morais FA, Otoni A. Letramento Funcional em Saúde: Impacto no autocuidado em pacientes com doença renal não dialítica. Rev Norte Mineira de enferm. 2021; 10(2): 12-20.

Autor correspondente

Gráfico de linhas

 

Alba Otoni

Universidade Federal de São João Del Rei

Correio eletrônico: albaotoni@ufsj.edu.br

 

 

 

 

ARTIGO ORIGINAL

LETRAMENTO FUNCIONAL EM SAÚDE: IMPACTO NO AUTOCUIDADO EM PACIENTES COM DOENÇA RENAL NÃO DIALÍTICA

 

Functional Education in Health: impact on self-care in patients with non-dialytic kidney disease

Fernanda Henriques Rocha Ribeiro1, Márcia Christina Caetano Romano2, Flávio Mendonça Pinto3, Maria Auxiliadora Parreiras Martins5, Flávio Augusto de Morais5, Alba Otoni6.

 

1 Doutoranda em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São João Del Rei-UFSJ, mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ, Divinópolis-MG, Brasil, Contato: fernandahrocha@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1523-8866   

2 Doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ, Divinópolis – MG, Brasil, Contato: marciachristinacs@ufsj.edu.br, ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1819-4689

3 Doutorado pela Santa Casa de Belo Horizonte, Belo Horizonte MG, Brasil, Contato: flaviomendoncapinto64@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2961-6901

4 Pós-doutorado pela Boston University, Estados Unidos da América, Contato: auxiliadorapmartins@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5211-411X

5 Médico especialista pelo Hospital de Base do Distrito Federal – SES/DF. Secretaria Municipal de Saúde de Divinópolis-MG, Brasil, Contato: drfamorais@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9655-5139

6 Doutorado e Pós Doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Universidade Federal de São João Del Rei-UFSJ, Divinópolis-MG, Brasil, Contato: albaotoni@ufsj.edu.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8126-3026

 

Objetivo: avaliar a associação entre Letramento Funcional em Saúde (LFS) e a capacidade de autocuidado de pacientes renais crônicos não dialíticos. Métodos: estudo transversal em ambulatório de nefrologia de município mineiro/Brasil. Incluídos adultos e idosos com Doença Renal Crônica (DRC) não dialítica. O Letramento Funcional em Saúde foi avaliado pelo instrumento SAHLPA-18 e o autocuidado com a escala ASAS-R, ambos validados na língua portuguesa. Resultados: dentre os 167 participantes, 53,9% tinham LFS inadequado (≤14 pontos). O autocuidado apresentou mediana de 52 pontos. A associação entre o LFS e o autocuidado foi significativa (p<0,001) e a correlação entre essas variáveis também foi significativa, positiva e direta (coeficiente= 0,722; p<0,001). No modelo final, a cada aumento de um ponto no LFS ocorreu aumento de 0,20 na capacidade do autocuidado, sendo o R2=41,9%. Conclusão: a pontuação do LFS impactou de forma significativa a capacidade de autocuidado dos pacientes com DRC não dialítica.

 

DESCRITORES: doença renal crônica, insuficiência renal crônica, letramento em saúde, autocuidado, educação em saúde.

 

Objective: to evaluate the association between Functional Health Literacy (FHL) and the self-care capability of patients with chronic kidney disease in non-dialysis stages.

 

Methods: this is a cross-sectional analytical study conducted at the nephrology outpatient clinic in a city in the state of Minas Gerais / Brazil. Adults and elderly with chronic kidney disease under standard treatment were included. The Health Literacy was evaluated by the SAHLPA-18 and the self-care was evaluated by ASAS-R, both validated in Portuguese language. Results: among the 167 participants, 53.9% had inadequate Health Literacy (≤14 points). The self-care had a median of 52 points. The association between Health Literacy and self-care was significant (p<0,001) and the correlation between these variables was also significant, positive and direct (coefficient= 0,722; p<0,001). In the final model, in each increase of one point in Health Literacy, there was an increase of 0.20 in self-care capacity, with R2=41, 9%. Conclusion: The Health Literacy score significantly affected the self-care capacity of patients with chronic kidney disease under standard treatment.

 

DESCRIPTORS: Chronic Kidney Disease, Renal Insufficiency, Chronic Health Literacy, Self-Care, Health Education.

 

INTRODUÇÃO

 

A doença renal crônica (DRC) é atualmente considerada um grande problema de saúde pública a nível mundial. Nas últimas décadas, foi registrada a estimativa de 750 milhões de pessoas em todo o mundo com algum comprometimento das funções renais (1). Estima-se que 11% da população adulta seja portadora de algum grau de DRC, isto é aproximadamente 13 milhões de pessoas no Brasil, sendo que a maior parte não tem a  clareza de conhecimento sobre essa condição de saúde (2–4).

 

Considera-se primordial trabalhar uma abordagem preventiva no sentido de reduzir o número de casos e mitigar a evolução da doença para as fases mais graves dessa condição crônica. O foco dessas abordagens deveria se voltar não só para população já acometida pela doença renal diagnosticada com DRC, mas também para aquela em risco de desenvolve-la. Dentre as medidas preventivas clássicas para preservação das funções renais se encontram: o manejo adequado e controle da pressão arterial e dos níveis glicêmicos, o controle da proteinúria, da obesidade e o monitoramento do uso de medicamentos (5).

 

Em estudos considerados referência sobre a aplicação e prática do autocuidado vêm sendo enfatizadas e adotadas como medida preventiva adicional nas condições da DRC, pois se entende que o comportamento do indivíduo tem grande influência no sucesso terapêutico e na prevenção dos agravos da doença. Diversos fatores podem determinar ou influenciar o desempenho das pessoas frente aos cuidados necessários com sua saúde e consigo mesmo, entre eles, a motivação, a informação, o suporte familiar e o apoio da equipe e dos serviços de saúde (6,7).

 

As discussões acerca da possibilidade de se trabalhar o autocuidado, com orientações que modifiquem a postura do paciente diante da doença, trazem à tona uma expressão associada ao autocuidado até então pouco conhecido na educação em saúde da pessoa com DRC, o chamado letramento funcional em saúde (LFS). Conceitualmente, LFS implica na capacidade do paciente de obter, processar e compreender informações, que se fazem necessárias para alcançar o conhecimento sobre a saúde e assim corroborar e auxiliar a tomada de decisões pertinentes sobre sua própria saúde e autocuidado (8,9).

 

Compreendendo então que a DRC atualmente alcança uma elevada prevalência, e que o LFS pode impactar na capacidade de autocuidado, no controle da doença crônica e considerando a escassez da literatura relativa à aplicação prática do LFS para benefício do autocuidado e tomada de decisão, o objetivo desse estudo foi avaliar a associação entre o Letramento Funcional em Saúde e a capacidade de autocuidado em pacientes com doença renal não dialítica.

 

 

 

MÉTODO

 

Trata-se de um estudo transversal analítico, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa CAAE: 26414519.9.0000.5545, desenvolvido no ambulatório de nefrologia da policlínica de um município do centro oeste mineiro/Brasil. Para delineamento do estudo, utilizou-se as recomendações do Strengthening  Reporting of Observational Studies in Epidemiology Statement (STROBE) (10).

 

Para população elegível do estudo, considerou-se como critérios de inclusão: pacientes adultos e idosos de ambos os sexos, com diagnóstico estabelecido de DRC, que estavam em acompanhamento no ambulatório de nefrologia da policlínica no período da coleta do estudo, entre março a dezembro de 2020, com cognição adequada avaliada exame do Mini Mental (11) e sentidos preservados (visão, audição e fala), identificados pelo pesquisador no momento do convite para a participação da pesquisa. Foram excluídos do estudo pacientes que apresentaram comprometimentos neurológicos que limitavam a compreensão dos instrumentos do estudo.

 

O cálculo amostral foi realizado tendo como base a população total de pacientes que iniciou o acompanhamento no ambulatório de nefrologia no período entre junho de 2019 a junho de 2020, sendo essa população elegível (n=262). Considerando a população descrita, para um nível de confiança de 95%, precisão de 5%, proporção de 50% para desfechos múltiplos, calculou-se uma amostra de 157 pacientes que foi o maior tamanho amostral para a população finita de 262 pacientes (12). O cálculo foi executado no programa Open Epi versão 3.01.

 

O recrutamento para participação no estudo foi realizado quando os pacientes compareceram para consulta de rotina agendada no ambulatório de nefrologia.

 

O instrumento utilizado para identificação do LFS, foi o SAHLPA-18 (Avaliação Curta de Alfabetização em Saúde para adultos que falam português), que consiste em 18 questões , no qual cada item correto recebe um ponto e a pontuação total  é obtido pela soma dos itens, variando de 0 a 18. Na versão utilizada, se o  final for ≤14, o LFS é classificado como inadequado e escore entre 15 a 18 o LFS é considerado adequado (13). A capacidade de autocuidado foi avaliada pelo instrumento ASAS-R (Escala Revisada para a Avaliação da Agência de Autocuidado validado no Brasil, (14). Este instrumento é composto por três fatores (itens) abordados por questões específicas: “Tendo capacidade” questões 1, 2, 3, 5, 6 e 10; “Desenvolvimento para capacidade” questões 7, 8, 9, 12 e 13 e “Falta de capacidade” questões 4, 11, 14 e 15. A interpretação dos resultados é via escala do tipo Likert, com 15 itens e cinco opções de resposta. O escore de pontuação das respostas são 1, quando a opção for discordo totalmente, 2, discordo, 3, não sei, 4, concordo e 5, concordo totalmente. Das 15 questões, quatro se referem aos aspectos negativos, tendo a necessidade do escore ser invertido na análise dos dados. O intervalo possível de pontuação varia entre 15 e 75. Quanto mais próximo o escore de 75, maior a capacidade de autocuidado.

 

Para a caracterização da população, realizou-se análise descritiva de todas as variáveis investigadas. As categóricas foram apresentadas por meio de tabelas de distribuição de frequências, e para as variáveis contínuas foram utilizadas as medidas de posição (mediana, mínimo e máximo) conforme a distribuição de normalidade identificada pelo teste de Shapiro-Wilk. Para variáveis categóricas, realizou-se teste de Mann Whitney e Kruskal Wallis com pós-teste para identificar em qual ou quais dos grupos a diferença acontecia. Foi realizada ainda a correlação de Spearman para variáveis contínuas. O nível de significância utilizado foi de 0,05. Na análise multivariada considerando variável resposta como sendo o autocuidado (variável contínua), foi utilizado o modelo de regressão linear múltipla. As variáveis independentes são letramento, variáveis sociodemográficas e variáveis de saúde. Inicialmente todas serão testadas em uma análise univariada. As variáveis que apresentam valor de p < 0,20 são indicadas ao modelo multivariado. Utilizou-se o critério backward para entrada das variáveis no modelo e para permanência das mesmas variáveis no modelo final, sendo adotado um nível de 5% de significância. Foi avaliado o ajuste do modelo por meio da estimativa do coeficiente de determinação (R2). Para garantir que o modelo tenha um ajuste sem multicolinearidades entre as variáveis independentes foi verificado a medida do VIF, quando ela ultrapassava os 10 pontos, a variável foi excluída mesmo que apresentasse boa correlação com a variável resposta uma vez que seu resultado seria corrompido. A análise de dados foi realizada pelo software Statistical Package for the social (SPSS) versão 21.

 

RESULTADOS

 

As pessoas que compareceram ao ambulatório, durante o período da coleta de dados e que atenderam os critérios de elegibilidade totalizaram 181 pacientes. Entre estes, foram excluídos 14 pacientes por não preencheram os critérios de inclusão, totalizando um n de 167 pacientes participantes do estudo.

 

As características sociodemográficas da população estudada e a associação com a capacidade de autocuidado estão descritas na tabela 1.

 

Tabela 1 – Associação entre características sociodemográficas e capacidade de autocuidado dos usuários com Doença Renal Crônica do ambulatório de nefrologia da Policlínica Municipal de um município do centro-oeste mineiro, Brasil, março a junho de 2020 (n=167).

Variáveis

       Frequência %

P valor

 

Idade

 

 

 

Mediana (Q1 – Q3)

 68 (55 - 76)

 

Sexo

 

 

Feminino

 83 (49,7)

0,130*

Masculino

 84 (50,3)

 

Estado civil (n = 166)

 

 

Casado

92 (55,4)

0,889*

Solteiro/separado

74 (44,6)

 

Cor da pele

 

 

Branca

114 (68,3)

0,006*

Não branca

53 (31,7)

 

Religião

 

 

Católica

115 (68,9)

0,159*

Outras

52(31,1)

 

Escolaridade

 

 

Analfabeto (a)

30 (18,0)

0,001**

Fundamental incompleto (b)

78 (46,6)

 

Fundamental completo (b)

19 (11,4)

 

Médio incompleto a superior (c)

40 (24,0)

 

Trabalho remunerado

 

 

Sim

37 (22,2)

0,001*

Não

130 (77,8)

 

Renda familiar

 

 

Abaixo de 2 SM

148 (88,6)

0,004*

De 2 SM a 3 SM

19 (11,4)

 

Costuma ler

 

 

Sim

36 (21,6)

0,001*

Não

131(78,4)

 

Frequência de leitura

 

 

Sempre (a)

22 (13,2)

0,001**

Às vezes (a)

15 (9,0)

 

Nunca (b)

130 (77,8)

 

O que costuma ler:

 

 

Jornais (a)

17 (10,2)

0,001**

Outros (a)

19 (11,4)

 

Não costuma ler (b)

131 (78,4)

 

Usa internet

 

 

Sim

61 (36,5)

0,001*

Não

106 (63,5)

 

Frequência de uso da internet

 

 

Sempre (a)

55 (32,9)

0,001**

Às vezes/raramente (a) (b)

6 (3,6)

 

Nunca (b)

106 (63,5)

 

 

*Teste de Mann Whitney **Teste de Kruskal Wallis com pós teste.

Letras iguais representam grupos estatisticamente iguais (p>0,05); *Salário mínimo: R$ 1.079,00/2020

A tabela 2 apresenta a descrição dos dados referentes ao LFS e capacidade de autocuidado.

Tabela 2 - Análises descritivas dos dados de Letramento em Saúde e capacidade de autocuidado dos usuários com Doença Renal Crônica no ambulatório de nefrologia Policlínica Municipal de um município do centro-oeste mineiro, Brasil, março a junho de 2020 (n=167).

Variáveis

Frequência (n/%)

 

Letramento Adequado

 

 

 

Sim

77 (46,1%)

 

 

Não

90 (53,9%)

 

 

Pontuação (Letramento)

 

 

 

Mediana (Q1 – Q3)

14 (0 – 18)

 

 

Autocuidado Geral

 

 

 

Mediana (Q1 – Q3)

52 (45 – 60)

 

 

Ter capacidade de autocuidado

 

 

 

Mediana (Q1 – Q3)

24 (18 – 25)

 

 

Desenvolvimento para capacidade de autocuidado

 

 

 

Mediana (Q1 – Q3)

20 (15 – 20)

 

 

Falta de capacidade de autocuidado

 

 

 

Mediana (Q1 – Q3)

12 (8 – 16)

 

 

 

 

 

 

 

A tabela 3 demonstra que a maioria dos participantes teve mais de duas visitas ao médico nos últimos anos, mas mesmo assim, praticamente metade deles declarou não ter conhecimento da doença renal, embora já tivessem sido informados do diagnóstico. O estágio mais frequente de DRC encontrado foi o 3B. Ainda, o autocuidado geral foi diferente a partir do nível de conhecimento da doença renal sendo que quanto maior conhecimento, maior pontuação para capacidade de autocuidado (p=0,001). E por outro lado, em relação ao estágio da doença (p=0,001), identificou-se que quanto mais avançado era o estágio da DRC, menor foi a pontuação do autocuidado geral.

Tabela 3 – Associação entre variáveis clínicas (consulta médica e doença renal) e a capacidade de autocuidado dos usuários com DRC no ambulatório de nefrologia da Policlínica Municipal de Divinópolis-MG, Brasil, março a junho de 2020 (n=167).

Variáveis

Frequência (%)

P valor

Visita ao médico nos últimos anos

 

 

Até duas

23(13,8)

0,141*

Mais de duas

144(86,2)

 

Consulta ao nefrologista

 

 

Nenhuma

30(18,0)

0,907**

Uma ou duas

35(21,0)

 

Mais de duas

102(61,0)

 

Conhecimento sobre doença renal

 

 

Nenhum (a)

87(52,1)

0,001**

Pouco (b)

53(31,7)

 

Básico (b)

19(11,4)

 

Muito (b)

8(4,8)

 

Estágio da doença renal crônica (n=165)

 

 

Estágio 1 (a)

26(15,8)

0,001**

Estágio 2 (a)

21(12,7)

 

Estágio 3A (a) (b)

26(15,8)

 

Estágios 3B (b)

55(33,3)

 

Estágio 4 (b)

37(22,4)

 

*Teste de Mann Whitney **Teste de Kruskal Wallis com pós teste.

Letras iguais representam grupos estatisticamente iguais (p > 0,05).

 

A correlação entre idade e autocuidado foi significativa e inversa (p<0,001; coeficiente de correlação - 0,467), indicando que quanto maior a idade, menor foi a capacidade de autocuidado geral encontrada (correlação de Spearman) (dados não demonstrados em tabela).

A tabela 4 apresenta que quanto maiores os valores atribuídos às variáveis relativas ao autocuidado, maiores foram as pontuações do LFS avaliado como variável contínua.

Tabela 4: Correlação entre Letramento em Saúde e a capacidade de autocuidado dos usuários com DRC no ambulatório de nefrologia da Policlínica Municipal de Divinópolis-MG, Brasil, março a junho de 2020 (n=167).

 Variáveis

Pontuação (LFS)

 

Coeficiente*

Valor-p*

Autocuidado Geral

0,722

<0,001

 

 

Ter capacidade de autocuidado

0,599

<0,001

 

 

Desenvolvimento para capacidade de autocuidado

0,605

<0,001

 

 

Falta de capacidade de autocuidado

0,385

<0,001

 

*LFS: letramento funcional em saúde

*Correlação de Spearman

Quando se categorizou o LFS em adequado ou não, a associação com o autocuidado também foi significativa (p<0,001 - Teste Mann Whitney), corroborando a correlação realizada entre autocuidado e o LFS na forma de variável contínua (pontuação).

 

A análise multivariada apresentada na tabela 5 manteve no modelo final três variáveis: escolaridade, trabalhar (sim/não) e o LFS. Os resultados mostraram que quanto maior a escolaridade e o LFS, além do fato do trabalho remunerado, maior foi a capacidade de autocuidado geral. Em relação ao LFS, foi identificado que a cada aumento de um ponto ocorreu o aumento de 0,20 na capacidade de autocuidado.

 

O modelo final apresentou coeficiente de determinação/nível de explicação de 41,9%, ou seja, 41,9% da variabilidade de resultados do autocuidado foi explicada por escolaridade, trabalhar fora e LFS.

Tabela 5: Modelo final de regressão linear múltipla para autocuidado dos usuários com DRC no ambulatório de nefrologia da Policlínica Municipal de Divinópolis-MG, Brasil, março a junho de 2020 (n=167).

 Variáveis

Coeficiente

Erro padrão

t

Sig.

VIF

Escolaridade

3,49

0,66

5,30

,000

1,483

Trabalho remunerado

-5,29

1,52

-3,47

,001

1,243

Pontuação (Letramento)

0,20

0,06

3,19

,002

1,273

R2: 41,9%

 

DISCUSSÃO

 

No nosso estudo o LFS adequado associou-se à capacidade de autocuidado, além de apresentar uma correlação positiva indicando que quanto maior o LFS, maior a capacidade de autocuidado. Esses achados robustos corroboraram com estudos que demonstraram que o LFS adequadamente avaliado e trabalhado pode contribuir para o alcance do autocuidado pretendido viabilizando o manejo participativo do paciente na condução da doença e a sua progressão (8,15,16).

Uma possível explicação para esse resultado consiste no fato de que o LFS avalia a capacidade de uma pessoa de compreender informações de saúde, sendo as mesmas verbalmente passadas ou de forma escrita, favorecendo a implementação desses cuidados no cotidiano. Assim, um paciente com melhor LFS apresenta habilidades de comunicação e de entendimento que contribuirão para a tomada de decisões em saúde o que, certamente é limitado naqueles com LFS inadequado (17).

A capacidade de autocuidado e tomada assertiva de decisão relativa ao estado de saúde já são reconhecidos pelo Ministério da Saúde do Brasil (2014) como atitudes imprescindíveis para a evolução com bom prognóstico e controle das doenças crônicas (18).

Diante desses achados, seria oportuno pensar sobre a possibilidade de instituir oficialmente, via política pública de saúde, o LFS como ferramenta auxiliar a ser trabalhada pela equipe multidisciplinar de saúde. Por consequência, o autocuidado consciente balizaria a tomada de decisão adequada na aderência a abordagem terapêutica para controle das doenças, em especial, as renais crônicas que são foco desse estudo.

Por outro lado, a alta prevalência de LFS inadequado trouxe preocupação aos autores. Identificamos que 53,9% não tinha LFS adequado e ainda, que quanto pior o estágio da DRC, pior foi a capacidade de autocuidado encontrada. Sendo que, mesmo tendo ido ao nefrologista mais de duas vezes nos últimos anos, a maioria dos pacientes não tinha conhecimento adequado sobre formas de lidar com a prevenção da doença renal.

Toda essa sequência de eventos desfavoráveis frente a instalação/evolução da DRC, pode fragilizar a capacidade de participação/contribuição do paciente no cuidado com sua saúde, além de propiciar uma provável evolução desfavorável da doença renal. Alves et al (2017) avaliaram o nível do LFS em pacientes com doença cardiovascular crônica e observaram que pacientes com baixo LFS tiveram dificuldades de entendimento frente as condutas clínicas propostas pela equipe médica, acarretando em um desfecho negativo para controle da doença (19).

As consequências do não conhecimento do seu quadro de saúde e da limitada capacidade de tomada decisões assertivas por parte dos pacientes parecem conduzir para o cenário vivenciado na prática clínica brasileira atual, onde ambulatórios que deveriam trabalhar com abordagens preventivas em fases iniciais da doença renal, estão superlotados de pacientes não abordados previamente pela Atenção Primária de Saúde e necessitando de terapia renal substitutiva de urgência. O LFS poderia modificar essa realidade e viabilizar a solidificação do conhecimento sobre sua saúde e direcionar atitudes favoráveis à saúde dos rins (16,20,21).

Bastos e Mastroianni (2011) já alertavam e, mais atualmente, Silva et al. (2020) corroboram o alerta, sobre a importância do diagnóstico precoce a fim de estimular a implementação de medidas preventivas e orientações no sentido de haver uma compreensão efetiva sobre a enfermidade, por parte dos pacientes, além da conscientização da existência de assistência de excelência, via Sistema Único de Saúde (SUS), ainda nas fases iniciais da DRC (18,22).

Existe um movimento a nível mundial na direção da conscientização da saúde dos rins e da necessidade de que os pacientes sejam sujeitos ativos diante da sua doença, realizando cuidados preventivos para preservação das funções renais (23). Entretanto, também deve ser compreendido que a explosão de informações, por si só, não torna o paciente automaticamente mais letrado e capaz de se auto cuidar. Infelizmente não é hábito cultural brasileiro, em especial da classe social menos favorecida, a leitura informativa/educativa, como constatamos no nosso estudo onde 77,8 % informaram que nunca leem. Talvez, a “ideia equivocada” de que se está informando/conscientizando adequadamente sobre a doença renal, associada a falta de leitura educativa, além do acesso limitado as mídias digitais (63,0 % informaram que nunca acessam internet) justifiquem, em parte, o alto índice de LFS inadequado encontrado no nosso estudo (53,9%).

Resgatando por fim a prevalência alta da DRC entre pessoas com a faixa etária idosa, outro resultado merece reflexão: a correlação significativa e inversa entre idade e autocuidado (p<0,001 e coeficiente de correlação -0,467), sendo que quanto mais velho era o paciente, menor foi a capacidade de autocuidado geral. Resultados semelhantes foram encontrados por Lameira et al (2018) corroborando a afirmativa de que a capacidade de autocuidado diminui à medida que se envelhece (24). Por isso, é pertinente pensar que a equipe da Atenção Primária a Saúde (APS) deve se posicionar como coordenadora do cuidado a esses pacientes a fim de identificar em tempo hábil as fragilidades do autocuidado impostas pelo envelhecimento natural. E a partir daí, realizar ajustes no tratamento no sentido de minimizar os impactos gerados pela evolução para a fase terminal da doença. (9,25).

Por fim, a análise multivariada, incorporou robustez aos resultados solidificando a associação entre LFS e autocuidado. O maior nível de escolaridade, o trabalho remunerado e LFS adequado foram variáveis independentes que impactaram de forma positiva na capacidade de autocuidado. Segundo Lorena et al (2019) a capacidade de autocuidado no cenário da doença renal é primordial não só para controlar o avanço para estágios mais avançados, como também pode interferir inclusive na instalação dessa doença.

Diante de todo o exposto reafirma-se aqui que esse estudo trouxe contribuições acerca da importância de se efetivar o LFS como uma ferramenta eficaz e prática para o aprimoramento do autocuidado e assim propor intervenções junto ao paciente e a equipe multidisciplinar. Contudo, é preciso registrar que, por mais que pareça repetitivo, não é dispensável citar que o delineamento do estudo limita a identificação de causa/efeito, mesmo que a associação entre LFS e autocuidado tenha sido significativa. De qualquer forma, considerando a importância dessa associação, sugere-se que estudos de intervenção sejam realizados para que se possa confirmar o LFS inadequado como fator de risco importante para o desfecho desfavorável da evolução da doença renal.

CONCLUSÃO

A associação/correlação significativa entre o LFS e a capacidade de autocuidado nos pacientes com DRC não dialíticos foi identificada respeitando sólida metodologia científica. Para além de dados de pesquisa, esses resultados precisam ser socializados, em especial para profissionais da prática clínica assistencial ao paciente com comprometimento renal, a fim de que haja plena conscientização de que somente assegurar o acesso à informação em saúde para esses pacientes, não garante um autocuidado adequado e uma tomada assertiva de decisões diante do quadro de saúde. Transpor as “barreiras” dos meios acadêmicos para a prática clínica assistencial é essencial na busca de um perfil de paciente consciente, participativo e autor de um desfecho favorável das suas condições de saúde.

AGRADECIMENTOS

 

Agradecemos o financiamento da Universidade Federal de São João Del Rei e da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), na realização da pesquisa.

Declaramos que não há conflitos de interesse.

 

REFERÊNCIAS

 

1.      Crews DC, Bello AK, Saadi G. 2019 World Kidney Day Editorial - burden, access, and disparities in kidney disease Editorial. 2019;

2.      ABREU AP, RIELLA MC, NASCIMENTO MM DO. COVID-19. Brazilian J Nephrol. 2020;42.

3.      SBN. DIÁLISE. 2019;

4.      Xavier SS de M, Germano RM, da Silva IP, Lucena SKP, Martins JM, Costa IKF. In the current of life: The discovery of chronic kidney disease. Interface Commun Heal Educ. 2018;22(66):841–51.

5.      Ministerio da Saúde. Saúde brasil 2018. 2018.

6.      Almeida OAE de, Santos WS, Rehem TCMSB, Medeiros M. Envolvimento da pessoa com doença renal crônica em seus cuidados: revisão integrativa. Cien Saude Colet [Internet]. 2019 May;24(5):1689–98. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019000501689&tlng=pt

7.      Bettoni LC, Ottaviani AC, Orlandi FS. Associação entre o autocuidado e a qualidade de vida de pacientes com doença renal crônica. Rev Eletrônica Enferm. 2017;19(1):1–9.

8.      Santos LTM, Sarkis LBS, Colugnati FAB, Bastos MG. pedagógica de intervenção em doença renal crônica, segundo preceitos do letramento em saúde. HU Revista. 2017;255–63.

9.      Amaral TLM, Amaral C de A, Miranda Filho AL, Monteiro GTR. Trends and multiple causes of death due to chronic renal failure in a municipality in the Brazilian Amazon. Cienc e Saude Coletiva. 2018 Nov 1;23(11):3821–8.

10.    Inacio Bastos F, Maria Ferreira Magnanini Cosme Marcelo Furtado Passos da Silva II MI, Oswaldo Cruz Rio de Janeiro F, Malta M. Monica Malta I Leticia Oliveira Cardoso II [Internet]. Vol. 44, Rev Saúde Pública. 2010 [cited 2021 May 11]. Available from: http://www.consort-statement.org/consort-statement/

11.    Melo DM, Barbosa AJG. O uso do Mini-Exame do Estado Mental em pesquisas com idosos no Brasil: Uma revisão sistemática. Cienc e Saude Coletiva. 2015;20(12):3865–76.

12.    Hulley SB, Cumming SR, Browner WS, Grady DG, Hearst NB, Newman TB. Delineando a pesquisa clínica: uma abordagem epidemiológica.2008;308-384

13.    Apolinário D, Braga R de COP, Magaldi RM, Busse AL, Campora F, Brucki S, et al. Short Assessment of Health Literacy for Portuguese- Speaking Adults Avaliação Breve de Alfabetismo em Saúde em Português para adultos. Rev Saúde Pública. 2012;46(4):702–11.

14.    Stacciarini TSG. Adaptação e validação da escala para avaliar a capacidade de autocuidado. Appraisal of Self Care Agency Scale - Revised para o Brasil. 2012;191.

15.    Moraes KL, Brasil VV, Oliveira GF de, Cordeiro JABL, Silva AMTC, Boaventura RP, et al. Letramento funcional em saúde e conhecimento de doentes renais em tratamento pré-dialítico. Rev Bras Enferm. 2017 Feb 20;70(1):155–62.

16.    Maragno CAD, Mengue SS, Moraes CG, Rebelo MVD, Guimarães AM de M, Pizzol T da SD. Teste de letramento em saúde em português para adultos. Rev Bras Epidemiol. 2019 Apr 1;22(0).

17.    Rebeca S, Lessa DO. Letramento Em Saúde Dos Indivíduos Submetidos À Terapia Dialítica. Texto Context Enferm. 2019;2 8:1–13.

18.    Ministério da Saúde. ESTRATÉGIAS PARA O CUIDADO DA PESSOA COM DOENÇA CRÔNICA. 2014.

19.    Alves LF, Abreu TT de, Neves NCS, Morais FA de, Rosiany IL, Oliveira Júnior WV de, et al. Prevalence of chronic kidney disease in a city of southeast Brazil. J Bras Nefrol [Internet]. 2017;39(2):126–34. Available from: http://www.gnresearch.org/doi/10.5935/0101-2800.20170030

20.    Moraes KL. Conhecimento e Letramento Funcional em saúde de pacientes em tratamento Pré-Dialítico de um Hospital de ensino. In 2014 [cited 2019 Jun 18]. Available from: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/4507/5/Dissertação - Katarinne Lima Moraes - 2014.pdf

21.    Passamai M da PB, Sampaio HA de C, Iorio Dias AM, Cabra LA. Functional Health Literacy: Reflections and concepts on its impact on the interaction among users, professionals and the health system. Interface Commun Heal Educ [Internet]. 2012 Apr [cited 2020 Jul 23];16(41):301. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832012000200002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

22.    Gomes Bastos M, Mastroianni Kirsztajn G. Artigo de revisão | review Article Correspondência para. J Bras Nefrol [Internet]. 2011;33(1):93–108. Available from: http://www.scielo.br/pdf/jbn/v33n1/v33n1a13.pdf

23.    Andrade MC de, Tavares M de S. Dia Mundial do Rim - 2020 [Internet]. SBP, Sociedade Brasileira de Pediatria. 2020 [cited 2021 Jan 25]. Available from: https://www.sbn.org.br/dia-mundial-do-rim/dia-mundial-do-rim-2020/

24.    Lameira T, Amaral M, De Araújo C, Ii A, Teixeira Leite De Vasconcellos M, Torres G, et al. Prevalence and factors associated to chronic kidney disease in older adults. 2018 [cited 2021 Jan 25]; Available from: http://www.rsp.fsp.usp.br/2

25.    Meneghetti Dallacosta F, Helen Belotto Masson N, Cristiane da Silva Pasquali D. Doença Renal: Detecção Precoce Em Grupos De Hiperdia. Saúde.com. 2018;14(2):1197–201.