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eISSN 2236-5257 |
Contexto, vivência e percepção: relatos de pessoas que
tiveram leishmaniose visceral em área de transmissão intensa e persistente do
Médio Jequitinhonha
Context, experience and perception: reports of people
who had visceral leishmaniasis in an intense and persistent transmission area
of the Middle Jequitinhonha
Renata Luiz Ursine[1]
João Victor Leite Dias [2]
Harriman Aley Morais³
Thamara de Souza Campos4
Herton Helder Rocha
Pires5
Resumo: Objetivo:
compreender as
percepções de pessoas acometidas pela Leishmaniose Visceral sobre os fatores
relacionados ao contexto de ocorrência da doença, bem como a compreensão do
processo de adoecimento e tratamento na população estudada. Metodologia:
trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica
empírica, cujos procedimentos teóricos metodológicos foram referenciados em
Amedeo Giorgi. Entre fevereiro e junho de 2014, foram
realizadas entrevistas com moradores da cidade de Araçuaí, que tinham no mínimo
dezoito anos, e que tiveram Leishmaniose Visceral entre os anos de 2007 a 2013.
As entrevistas foram gravadas e transcritas. Em seguida, foi realizada uma
primeira leitura das transcrições a fim de perceber o sentido geral nelas
contido. Posteriormente, foram efetuadas releituras dessas entrevistas no
intuito de identificação das unidades de significação, e, por fim, foi
realizada a análise das unidades, síntese dos resultados e categorização. Resultados:
a análise das entrevistas permitiu a identificação de quatro categorias, sendo
elas: desesperança, sintomas clínicos, transmissão e impacto socioeconômico. Conclusões: as dificuldades
vivenciadas pelos sujeitos, com o diagnóstico e tratamento, denotam a
necessidade de um apoio que vai além do atendimento médico, que contemple uma
assistência social. Além disso, pôde-se averiguar a necessidade de
investimentos em programas de educação permanente para os profissionais da
saúde e educação em saúde para a população. Esses achados podem servir para
direcionar a conduta dos profissionais da saúde para com os pacientes e
subsidiar ações de
prevenção e controle com maiores possibilidades de alcance e efetividade.
Palavras-chave: Fenomenologia.
Pesquisa Qualitativa. Calazar.
Abstract: Objective: Understand the perceptions of
people affected by Visceral Leishmaniasis about factors related to the context
in which the disease occurs, as well as the understanding of the process of
illness and treatment in the population studied. Methodology: this is a qualitative research, with an empirical phenomenological
approach, whose theoretical methodological procedures were referenced in Amedeo
Giorgi. Between February and June 2014 interviews were conducted with residents
of the city of Araçuaí, who were at least eighteen years old and who had
Visceral Leishmaniasis between the years 2007 and 2013. These were recorded and
transcribed. Then, a first reading of the transcriptions was made in order to
perceive the general meaning contained in them, later, they were made
re-readings in order to identify the units of signification and finally the
units analysis, results synthesis and categorization . Results: the
analysis of interviews allowed the identification of four categories:
hopelessness, clinical symptoms, transmission and socioeconomic impact. Conclusions:
the difficulties experienced by the subjects with the diagnosis and treatment
indicate the need for support that goes beyond medical care, which includes
social assistance. In addition, it was possible to investigate the need for
investments in permanent education programs for health professionals and health
education for the population. These findings can serve to direct the conduct of
health professionals towards patients and subsidize prevention and control
actions with greater possibilities of reach and effectiveness.
Key words: Phenomenology.
Qualitative research. Calazar.
INTRODUÇÃO
A Leishmaniose Visceral (LV) é uma doença infecto
parasitária com grande relevância para a saúde pública devido à sua crescente
urbanização, expansão geográfica e alta letalidade em pacientes não tratados1.
No Brasil, esta é classificada como uma zoonose, causada pela Leishmania infantum
(=Leishmania chagasi), transmitida principalmente pelo Lutzomyia longipalpis, tendo o cão
doméstico (Canis familiaris)
como principal fonte de infecção para o vetor em ambiente urbano2.
O
programa de controle da LV do Brasil preconiza a realização de tratamento de
pessoas infectadas; identificação e controle de reservatórios domésticos;
controle vetorial; manejo ambiental e educação em saúde3.
Entretanto, trabalhos têm mostrado que estas medidas têm sido insuficientes
para impedir a disseminação da infecção4,5. Segundo Zuben e
Donalísio (2016)5, a descontinuidade das ações de controle,
resistência dos proprietários de cães com indicação de eutanásia e baixa
cobertura do controle químico contribuem para a ineficiência de tais medidas
adotadas. Além disso, essas autoras salientam que no âmbito municipal os
gestores encontram dificuldades para o cumprimento pleno de suas diretrizes e
enfatizam a necessidade de ampliação do compromisso do Estado com a garantia de
recursos humanos, materiais e financeiros.
A
não colaboração da população no controle da LV pode estar relacionada ao
desconhecimento a respeito dos aspectos biológicos e epidemiológicos desta
doença6-8, bem como ao fato do conhecimento prévio da população
sobre a doença ser ignorado pelos propositores das ações de saúde9.
Neste contexto, Zuben e Donalísio (2016)5 afirmam que é necessário
investimento em treinamento das equipes de saúde, em ação comunicativa que vise
melhorar o diálogo com os grupos sociais atingidos pelo agravo.
Nesse
sentido, Martins et al. (2015)10
ressaltam que conhecer as formas como os indivíduos acometidos percebem e
compreendem o processo de adoecimento, a visão destes em relação às formas de
transmissão e fatores de risco, contribui para compreender o contexto de
ocorrência da doença e serve de base para o desenvolvimento de estratégias
locais de controle, com maiores possibilidades de alcance de sucesso.
Dessa
forma, este trabalho objetivou compreender as percepções de pessoas acometidas
pela LV sobre os fatores relacionados ao contexto de ocorrência da doença, bem
como a compreensão
do processo de adoecimento e tratamento na população estudada.
MÉTODOS
O
estudo foi desenvolvido no município de Araçuaí, Médio Jequitinhonha, Minas
Gerais, no período de fevereiro a junho de 2014. Segundo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), Araçuaí ocupa uma área de 2.236,279 Km2,
com uma população estimada de 37.220 habitantes no ano de 201511. Suas principais
atividades econômicas estão ligadas à agricultura de subsistência, a mineração
de forma artesanal e informal e ao artesanato11.
O
município de Araçuaí foi escolhido para a realização desta pesquisa por ser uma
área endêmica da LV, além de ter apresentado a maior incidência desta doença
dentre os 33 municípios de abrangência da Superintendência Regional de Saúde de
Diamantina, sendo classificado como uma área de transmissão intensa12.
O
presente estudo apresenta uma investigação de natureza qualitativa com
abordagem fenomenológica empírica sobre a percepção da população acometida pela
LV a respeito do contexto de ocorrência da doença. Para tal, foi
adotado o referencial do método teórico metodológico de Amedeo Giorgi13.
Segundo Andrade e Holanda (2010)14, o método fenomenológico é ideal
para investigar o sentido ou significado da vivência para uma pessoa em
determinada situação.
As
pessoas que apresentaram soropositividade para L. infantum, notificadas pelo serviço de saúde, entre o período de
2007 a 2013, e que possuíam idade acima de 18 anos no período avaliado, foram
convidadas a participarem de uma entrevista semiestruturada. As entrevistas
foram realizadas após o aceite do convite, certificado por meio da assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecidas (TCLE).
As
entrevistas foram realizadas na própria residência dos entrevistados, norteadas
por um roteiro composto pelas seguintes perguntas: Com a descoberta da doença, houve
alguma modificação em sua vida? Como você fez para tratar a doença? Como você
acha que alguém pode ter Leishmaniose Visceral?
As
entrevistas foram gravadas por meio de um gravador portátil de áudio. Em um
primeiro momento, foi realizada a transcrição integral das entrevistas. Os
nomes dos entrevistados foram substituídos por códigos, de forma a garantir o
sigilo das informações e a privacidade deles. Posteriormente, a leitura das
transcrições das entrevistas foi realizada, momento este de imersão total nas
transcrições, suspensão dos conceitos prévios, no intuito de explorar o
significado que a experiência vivida tem para os sujeitos colaboradores da
pesquisa, no intuito de alcançar o sentido geral.
Em
seguida, foram realizadas releituras dos textos, identificando as unidades
significativas. O próximo passo foi o exercício de análise das unidades
significativas, buscando o sentido nelas expresso, e, por fim, foi realizada a
categorização, síntese das unidades significativas, representando a compreensão
de como os diferentes sujeitos envolvidos vivenciaram a doença e como
compreendem este fenômeno.
O
estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob número do parecer
522.035, atendendo, desta forma, a Resolução nº466/13, do Conselho Nacional de
Saúde.
RESULTADOS
E DISCUSSÃO
No
período estudado, foram notificados 41 casos de LV no município de Araçuaí,
entretanto, dois destes não apresentavam registro de endereço e os dados
estavam incompletos nas fichas de notificação. Sendo assim, foram excluídos do
universo da pesquisa. Entre os 39 casos com o registro completo, 16 eram de
pacientes com idade acima de 18 anos, sendo que destes, três haviam falecido e
três haviam mudado de cidade. Desta forma, a pesquisa foi realizada com a
participação de 10 pacientes, com idade entre 22 e 83 anos (média= 49,4 anos;
mediana= 50 anos), sendo três mulheres e sete homens.
Por
meio das entrevistas realizadas, vários aspectos que permeiam o contexto de
ocorrência da doença foram elucidados. Dentre estes, se destacaram aspectos
relacionados às dificuldades enfrentadas com o diagnóstico e durante o
tratamento, o impacto financeiro, físico, psicológico, bem como a visão das
pessoas acometidas sobre o processo de transmissão.
Com
a análise das falas, emergiram unidades significativas, neste texto, referidas
como núcleos de sentidos, que culminaram em quatro categorias, descritas
abaixo.
Categoria
I – Desesperança
Nos depoimentos dos
participantes, foram identificados núcleos de sentidos referentes às
dificuldades enfrentadas pelos indivíduos e aos sentimentos de angústia e desesperança que emergiram
neste contexto. Esses trechos, em conjunto, deram significado à primeira
categoria “Desesperança”.
Durante a análise das falas dos
entrevistados, foi identificado trechos de relatos com expressões que em sua
essência representavam o fim da perspectiva de vida para alguns pacientes
quando estes se viram com LV:
“A minha saúde né?
Questão de saúde foi água abaixo né? Acabou minha vida, simplesmente eu acabei.” (005)
Achados
semelhantes foram encontrados por de Castro et al. (2016)9. Em uma pesquisa qualitativa, eles verificaram
que
alguns pacientes, quando questionados
sobre o significado da doença, associaram a morte.
Neste contexto,
observa-se o sentimento de desesperança pode ser fruto do sofrimento pelos
sintomas da doença, bem como, sobretudo, pela angústia vivenciada por estes
pacientes com a dificuldade de conseguirem o diagnóstico:
Tava
tomando remédio tudo ao contrário, é pra verme, ainda bem que eu num tinha
problema de como que fala pressão alta, graças a Deus eu num fumava, num bebia,
num mexia com isso né? E nem tinha colesterol alto [...] eu passei por dois
hospitais, *** e ***, no *** depois de 20 dias que eu fui descobrir [...] mas
pra descobrir foi difícil, aí Deus abençoou depois que descobriu, mas eu vô
falar com cê, é duro, injeção assim, tinha hora que picava 5, 6 agulha pra achar
uma veia, minha veia acabou tudo. (004)
Tanto que, neste cenário, observou-se que para um
dos pacientes o diagnóstico e o início do tratamento correto representaram uma
mudança de perspectiva, em que ele se sentiu aliviado e renasceu a esperança:
“Vou falar com cê, depois que eu fiz aquele exame que
eu sabia que eles tava medicando em cima da doença, aí como diz eu renasci de
novo, num tinha esperança não.” (004)
A
dificuldade em detectar a LV advém do fato de que os sinais e
sintomas iniciais são muito inespecíficos, o que contribui para a ocorrência de
erros de diagnósticos, podendo contribuir com o agravamento da infecção15. Outros trabalhos também apresentaram
relatos de pacientes que, antes de terem a confirmação diagnóstica da LV, foram
internados como outras causas por erros de diagnóstico16-18.
Leite
e Araújo (2013)19 apontaram que a demora no diagnóstico e tratamento
dos pacientes com LV tem sido identificada como fator de risco para morte. Neste contexto, pesquisadores recomendam o investimento
em programas de educação continuada permanente para profissionais que atuam em
áreas endêmicas, contextualizando as informações sobre a LV à realidade
estudada, a fim de melhorar a detecção dos casos, bem como a relação entre
paciente/profissional da saúde, e, evitar assim, a evolução da doença para a morte 20,21.
Categoria
II - Sintomas clínicos
Durante
as entrevistas, foi recorrente nas falas dos participantes a referência às
manifestações clínicas que eles tiveram durante a doença, emergindo assim, a
segunda categoria “Sintomas Clínicos”.
Os
sintomas mais frequentes relatados pelos entrevistados foram: febre,
emagrecimento, crescimento da barriga e do estômago, vômito e sensação de
fraqueza:
“É os trem tudo inflamado, aquele barrigão, a falta de
ar e as perna inchada, o menina agora que me deu uma formigueira no pé, aqui
mesmo de passar a mão, ardendo na pele.” (006)
Escureci o corpo, fiquei preto, mudei de cor, toda
três hora da tarde dava febre em mim, até hoje sente o sangue, o sangue ta
solto, qualquer coisa sai sangue em mim [...] Provocação de febre, cansaço e
não tem disposição pra fazer nada [...] deu pneumonia (007).
“Minha barriga que
cresceu bastante, fiz aqueles exames na Cismeje que olha dentro da barriga da
gente, tava aberto. Tava muito largo meu estômago e barriga tinha crescido bem
nessa época.” (008)
“[...] aí eu ficava
deitada direto, e só sentindo febre e a dor no corpo, ficava só deitada, não
tava aguentando ficar em pé, o que eu comia eu vomitava e só ismagricendo eu
pesava 69 e pesei 58 quilos, imagrici um tanto.” (009)
De
uma forma geral, os sintomas clínicos, descritos pelos entrevistados,
corroboram com os achados da literatura22- 24. Contudo, é
preocupante o relato de pneumonia, hemorragia, edema, aumento do fígado e
problemas gastrointestinais, pois são sinais de estado avançado da doença, com
maiores chances de evolução para o óbito 22,24,25. Segundo Lisboa et. al. (2014) 25, dentre estes sintomas, a hemorragia é
o mais agravante, pois pacientes com esta manifestação clínica tem
aproximadamente oito vezes mais chances de falecer comparado a quem não
apresenta este sintoma.
Categoria
III - Transmissão
Nos depoimentos dos entrevistados,
emergiram núcleos de sentidos referentes às formas de infecção e elementos do
ciclo biológico da L. infantum, bem
como, associações da doença a lesões e feridas externas apresentadas no corpo.
Esses depoimentos, quando analisados conjuntamente, revelaram o imaginário dos
pacientes acerca das percepções sobre as formas de transmissão da LV, e,
portanto, foram agrupados na categoria “Transmissão”. Em relação à forma de
infecção, pôde-se averiguar que a maioria dos entrevistados associou a transmissão
da “doença” a um mosquito:
“[...]
o mosquito infectado pica a pessoa
[...]” (002); “Eu
acredito que deve ser por uma picada do mosquito né?” (004); “Eu acho que é
negócio desses mosquitos.” (007)
Essa alusão de associar a
transmissão da “doença” a um mosquito decorre, provavelmente, do fato de que o
flebotomíneo é conhecido popularmente como “mosquito palha”, referência encontrada até mesmo em
encartes oficiais nas campanhas de controle da doença e em livros didáticos26. Para
alguns pesquisadores, essa associação pode levar a dificuldades no entendimento
das ações de prevenção e controle sobre a doença, uma vez que a
água é o ambiente propício para a reprodução e desenvolvimento de mosquitos, ao
passo que para os flebotomíneos é a matéria orgânica em decomposição26.
Entretanto,
deve-se ressaltar que, a fim de evitar confusões no entendimento da população,
alguns pesquisadores têm indicado que o caminho para o desenvolvimento de ações
de controle das leishmanioses e de outras doenças endêmicas, cuja prevenção
está relacionada a intervenções ambientais, é o de trabalhar o ambiente como
promotor da saúde, ao invés de propor medidas ambientais específicas para cada
doença27.
Além da associação da
transmissão da “doença” a um mosquito, alguns entrevistados mencionaram o
envolvimento do cachorro e/ou da raposa, o que demonstra conhecimento de
elementos importantes do ciclo biológico da LV:
Eles diz que é cachorro, diz que pega através do
mosquito, que vem até através da raposa parece que falou, que vem, o mosquito
pica a gente, só que eu mesmo num sei como eu peguei essa doença, porque eu num
tinha cachorro, só se o mosquito me picou no mato, porque eu trabalho na roça,
ou na casa de um vizinho se tiver cachorro porque aqui mesmo não tem não. (009)
Entretanto, foi possível
perceber que, mesmo associando alguns importantes elementos da cadeia de
transmissão da “doença”, alguns relatos demonstraram falhas no entendimento do
ciclo biológico da LV:
“[...]
através de cachorro, de animal, o mais
certo é cachorro que pega nas pessoas, pega até no ar assim sabe?”; (001) “Através carrapato, carrapato. Eu fui através disso,
cachorro, mais ou menos isso, acredito isso.” (005)
Carmo et al. (2016)27 averiguaram em um município da região
metropolitana de Belo Horizonte que alguns moradores associaram a transmissão
da infecção apenas ao cão, pelo contato direto através da mordedura e pelo
contato indireto com secreções, urina e fezes. Os pesquisadores observaram o
não reconhecimento dos flebotomíneos no ciclo de transmissão da doença, o que
sugere estar relacionado ao fato de que esses mosquitos possuem características
que dificultam a sua visualização, como o tamanho pequeno, voo silencioso e o
fato deles não pairarem no ar27.
Segundo
Dias et al. (2016) 28, existe uma grande distância entre o conhecimento científico produzido e
o que é aplicado pelos profissionais na prática na saúde, o que consiste em um
desafio para o controle de doenças de transmissão vetorial como a doença de
Chagas, as leishmanioses e a dengue. No presente estudo, por
meio das falas pôde-se perceber que associações errôneas são transmitidas até
mesmo por profissionais da saúde:
“Eu fui ao médico,
chegou lá ele falou num é nada não, isso é um mosquito que passeou aí.
Entendeu?”
(003).
A falta de
aplicabilidade, apontada por Dias et
al. (2016)28, pode ser oriunda tanto da carência de conhecimento dos profissionais,
como observado em alguns estudos27,29-31, como da falta de zelo com as informações que são transmitidas aos
pacientes, como observado na fala do entrevistado acima.
Algumas
pessoas fizeram associação do adoecimento a perfurações ou a feridas na pele,
que funcionaria como porta de entrada:
“É, eu acho, pelo
menos comigo aconteceu assim, quando eu fui cortar uma lenha furou, e aquilo
não sarava por nada, aí quando tava grandinho assim, eu fui ao médico” (003); “Num sei, porque
essa minha num tinha nada né? Eu vi que eu cortei o pé, furei num pau, fez um
furadinho, daí pra cá começou doer, deve ser que era no mato, tava tudo molhado
né?”
(006)
Por
outro lado, foi possível observar a associação de feridas externas não como
forma de adquirir a infecção, mas como resultado do adoecimento:
Tudo vem ser isso porque num sou eu que adoeci
primeiro, muitos que adoeceram uns
tinham uma ferida por fora né? E o meu foi no fígado, no baço, então o que
aconteceu comigo era mais difícil porque se fosse só ferida já sabia o que era
né?
(004);
“[...]
minha boca toda feria por dentro aí
[...]” (009); “[...] nasceu um
bolotinha aqui assim, e coçava, coçava e falei com ***, tô com um berne aqui na
minha perna que eu num to aguentando, só ferroando[...]” (010)
Tendo em vista que Araçuaí, também, é uma área
endêmica para Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA)32-34 não se
pode descartar a hipótese de que alguns pacientes também podem ter sido
acometidos por esta entidade mórbida. Contudo, por meio da fala de um dos
entrevistados que se referiu a feridas externas, pôde-se inferir que houve uma
associação com a forma tegumentar, podendo se verificar que na percepção dele a
LTA e a LV correspondem a uma única entidade mórbida, que, entretanto, se
manifesta de formas diferentes. Santos et al. (2014)35, ao
estudarem a percepção de indígenas Xakriabá sobre a LTA, também, observaram que
estes confundem a LTA e a LV, principalmente no que diz respeito aos
reservatórios.
Brustoloni et al. (2013)36, ao avaliarem o conhecimento
sobre a LV por parte de familiares de crianças acometidas pela doença no Mato
Grosso do Sul, perceberam um desconhecimento dos aspectos da doença por parte
desses habitantes. Segundo Martins et al. (2015)10, o desconhecimento sobre a enfermidade e
os cuidados necessários para impedir a transmissão colaboram para manutenção e dispersão
da doença ao longo dos anos.
Categoria
IV – Impacto socioeconômico
A partir da análise das falas,
emergiram núcleos de sentido referentes às alterações na rotina de atividades
laborais, bem como, núcleos referentes às dificuldades financeiras enfrentadas
pelos acometidos, que culminaram a categoria “Impacto socioeconômico”.
As dificuldades eram tanto com
relação aos deslocamentos para a realização do tratamento:
“Ah eu vim aqui pra
cidade, aí eu vim, tava até com um doutor de Belo Horizonte,***, aí eu fiquei
fazendo os exame tudo [...]
Quanto com medicamentos e exames
durante a realização:
[...]
pedia exame todo mês, uns eu pagava outros eu num pagava, Deus abençoou, [...]
o médico viu que num tinha jeito [...] ele falô (o médico) oh moço tem que
procurar um recurso e fica caro, esse exame ia ficar por 960 reais, mas [...]
uma médica doutora *** me ajudou muito, doutor ***, baixou pra 690 reais, mas
assim depositar hoje pro médico vim amanhã [...] Ou então eu morria né? Num
tivesse o dinheiro eu morria, minha solução foi essa né? (004)
Além
de acometer as regiões mais carentes, o fato de estar doente acaba aumentando a
pobreza em alguns locais, desencadeando um ciclo vicioso de doença e pobreza37.
Essa conjuntura foi observada no presente estudo, visto que a doença ocasionou
incapacidade física nos acometidos, que
manifestaram dificuldades para a realização de suas atividades cotidianas,
incluindo atividades laborais:
“Modificou muito,
vixe... num saio pra canto nenhum [...] eu num posso andar quase, tô mais
parado [...] modificou muito a minha vida...vixe[...]” (001); “Eu
não pude trabaiá, duenta né? Fiquei foi de cama, não comia, até pra mim beber
não conseguia[...]”
(009); “Eu
fiquei lá em cima da cama, num comia, num bebia [...] (010).
Situações semelhantes
foram reportadas em outros estudos. Silva et
al.16 entrevistaram famílias que tiveram casos de LV em crianças
e relataram ouvir destas que o “o calazar é um
desassossego”,
pois necessariamente tinham que mudar a rotina da família, gastar com remédios
e quando internado, uma pessoa, ainda, tinha que parar de trabalhar para
acompanhar, por serem crianças acometidas.
Neste contexto, tendo em vista o relato de alguns
pacientes, que tiveram um tratamento demorado, a magnitude do agravo a saúde e
do impacto socioeconômico vivenciado, é inestimável
“Foi muito repouso
né? [...] durou dois anos e seis meses o tratamento[...].” (004).
O Ministério da Saúde3
recomenda que o tratamento dure entre 20 a 40 dias, e, em caso de recidiva, seja instituído um segundo tratamento por, no
máximo, 40 dias. Entretanto, Pelissari et al. (2011)38 afirmaram que a duração da terapêutica depende do estado clínico, sendo
que, em alguns casos, os pacientes só evoluem para cura, após a tentativa de
vários esquemas terapêuticos.
Visto que as drogas utilizadas no tratamento são tóxicas, Oliveira
et al. (2010)22 destacaram
a necessidade de profissionais
capacitados para o monitoramento clínico e laboratorial, a fim de identificar,
precocemente, possíveis complicações, bem como a necessidade do desenvolvimento
de novas drogas com baixa toxicidade.
A
LV é uma doença negligenciada que atinge, principalmente, populações com
condições socioeconômicas desfavorecidas, as quais, por não terem instrução,
não cobram seus direitos à saúde, educação, saneamento e moradia, direitos
esses previstos na Constituição de 8839. Além disso, ainda que seja
previsto por leis e programas, suporte com gastos com medicamentos, transporte
e assistência médica, como se pôde verificar por meio das entrevistas, as
famílias sofrem um impacto financeiro, pois, em algumas situações, as pessoas
têm que abdicarem de empregos para fazer o tratamento ou para acompanhar um
parente doente.
Neste
sentido, Brustoloni et al. (2013)36
acreditam que o investimento em práticas educativas e políticas públicas
que melhorem a distribuição de renda podem auxiliar no controle da LV. Desta
forma, as instituições sociais e de saúde devem ter um olhar mais amplo frente
a estas questões e desempenharem projetos com foco em doenças negligenciadas
endêmicas e suas complexas interações sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O
município de Araçuaí é considerado endêmico para LV há anos. Neste contexto, as
dificuldades apresentadas pelos pacientes com o diagnóstico e tratamento denota
necessidade urgente de investimentos em programas de educação permanente para
os profissionais da saúde, a fim de contribuir para melhorar o diagnóstico e
detecção dos casos de LV, o tratamento dos acometidos e a relação entre estes e
os profissionais da saúde. Além disso, desconhecimento de aspectos da LV,
evidenciados nas falas das pessoas que foram acometidas, sinaliza que o
investimento em educação em saúde para a população também é premente.
Entretanto, deve-se considerar que trabalhos de cunho educativo só alcançam
resultados satisfatórios quando são realizados, tendo em vista o perfil das populações
alvo. Portanto, conhecer a percepção da população acerca da doença é
substancial e deve ser considerada para o desenvolvimento de estratégias de
controle e prevenção, contextualizadas com a realidade da doença.
Os
autores declaram que este trabalho não foi financiado, sendo o resultado da
dissertação de “Leishmaniose Visceral em municípios que compõem à
Superintendência Regional de Saúde de Diamantina, com ênfase no município e
Araçuaí, Minas Gerais”. Os autores declaram, ainda, que não há conflitos de
interesse.
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Recebido
em 14/08/2018 |
Aceito
em 08/11/2018 |
Publicado
em 03/05/2020 |
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1 Mestre em
Saúde, Sociedade e Ambiente pela Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Servidora da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri. Minas
Gerais. Brasil. *
(reursine@gmail.com).
2 Doutor em Ciências da Saúde pelo
Centro de Pesquisas René Rachou (FIOCRUZ). Professor Adjunto da Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Minas Gerais.
Brasil.
3 Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto II da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
4
Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professora do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais (UNILESTE). Minas Gerais.
Brasil.
5
Doutor em Biologia Parasitária pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professor
Associado da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Minas Gerais. Brasil.