eISSN 2236-5257

 

 

Contexto, vivência e percepção: relatos de pessoas que tiveram leishmaniose visceral em área de transmissão intensa e persistente do Médio Jequitinhonha

               

Context, experience and perception: reports of people who had visceral leishmaniasis in an intense and persistent transmission area of the Middle Jequitinhonha

 

Renata Luiz Ursine[1]

João Victor Leite Dias [2]

Harriman Aley Morais³

Thamara de Souza Campos4

Herton Helder Rocha Pires5

Resumo: Objetivo: compreender as percepções de pessoas acometidas pela Leishmaniose Visceral sobre os fatores relacionados ao contexto de ocorrência da doença, bem como a compreensão do processo de adoecimento e tratamento na população estudada.  Metodologia: trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica empírica, cujos procedimentos teóricos metodológicos foram referenciados em Amedeo Giorgi.  Entre fevereiro e junho de 2014, foram realizadas entrevistas com moradores da cidade de Araçuaí, que tinham no mínimo dezoito anos, e que tiveram Leishmaniose Visceral entre os anos de 2007 a 2013. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Em seguida, foi realizada uma primeira leitura das transcrições a fim de perceber o sentido geral nelas contido. Posteriormente, foram efetuadas releituras dessas entrevistas no intuito de identificação das unidades de significação, e, por fim, foi realizada a análise das unidades, síntese dos resultados e categorização. Resultados: a análise das entrevistas permitiu a identificação de quatro categorias, sendo elas: desesperança, sintomas clínicos, transmissão e impacto socioeconômico. Conclusões: as dificuldades vivenciadas pelos sujeitos, com o diagnóstico e tratamento, denotam a necessidade de um apoio que vai além do atendimento médico, que contemple uma assistência social. Além disso, pôde-se averiguar a necessidade de investimentos em programas de educação permanente para os profissionais da saúde e educação em saúde para a população. Esses achados podem servir para direcionar a conduta dos profissionais da saúde para com os pacientes e subsidiar ações de prevenção e controle com maiores possibilidades de alcance e efetividade.

 

Palavras-chave: Fenomenologia. Pesquisa Qualitativa. Calazar.         

 

Abstract: Objective: Understand the perceptions of people affected by Visceral Leishmaniasis about factors related to the context in which the disease occurs, as well as the understanding of the process of illness and treatment in the population studied.  Methodology: this is a qualitative research, with an empirical phenomenological approach, whose theoretical methodological procedures were referenced in Amedeo Giorgi. Between February and June 2014 interviews were conducted with residents of the city of Araçuaí, who were at least eighteen years old and who had Visceral Leishmaniasis between the years 2007 and 2013. These were recorded and transcribed. Then, a first reading of the transcriptions was made in order to perceive the general meaning contained in them, later, they were made re-readings in order to identify the units of signification and finally the units analysis, results synthesis and categorization . Results: the analysis of interviews allowed the identification of four categories: hopelessness, clinical symptoms, transmission and socioeconomic impact. Conclusions: the difficulties experienced by the subjects with the diagnosis and treatment indicate the need for support that goes beyond medical care, which includes social assistance. In addition, it was possible to investigate the need for investments in permanent education programs for health professionals and health education for the population. These findings can serve to direct the conduct of health professionals towards patients and subsidize prevention and control actions with greater possibilities of reach and effectiveness.

 

Key words: Phenomenology. Qualitative research. Calazar.

 

INTRODUÇÃO

A Leishmaniose Visceral (LV) é uma doença infecto parasitária com grande relevância para a saúde pública devido à sua crescente urbanização, expansão geográfica e alta letalidade em pacientes não tratados1. No Brasil, esta é classificada como uma zoonose, causada pela Leishmania infantum (=Leishmania chagasi), transmitida principalmente pelo Lutzomyia longipalpis, tendo o cão doméstico (Canis familiaris) como principal fonte de infecção para o vetor em ambiente urbano2.

O programa de controle da LV do Brasil preconiza a realização de tratamento de pessoas infectadas; identificação e controle de reservatórios domésticos; controle vetorial; manejo ambiental e educação em saúde3. Entretanto, trabalhos têm mostrado que estas medidas têm sido insuficientes para impedir a disseminação da infecção4,5. Segundo Zuben e Donalísio (2016)5, a descontinuidade das ações de controle, resistência dos proprietários de cães com indicação de eutanásia e baixa cobertura do controle químico contribuem para a ineficiência de tais medidas adotadas. Além disso, essas autoras salientam que no âmbito municipal os gestores encontram dificuldades para o cumprimento pleno de suas diretrizes e enfatizam a necessidade de ampliação do compromisso do Estado com a garantia de recursos humanos, materiais e financeiros.

A não colaboração da população no controle da LV pode estar relacionada ao desconhecimento a respeito dos aspectos biológicos e epidemiológicos desta doença6-8, bem como ao fato do conhecimento prévio da população sobre a doença ser ignorado pelos propositores das ações de saúde9. Neste contexto, Zuben e Donalísio (2016)5 afirmam que é necessário investimento em treinamento das equipes de saúde, em ação comunicativa que vise melhorar o diálogo com os grupos sociais atingidos pelo agravo.

Nesse sentido, Martins et al. (2015)10 ressaltam que conhecer as formas como os indivíduos acometidos percebem e compreendem o processo de adoecimento, a visão destes em relação às formas de transmissão e fatores de risco, contribui para compreender o contexto de ocorrência da doença e serve de base para o desenvolvimento de estratégias locais de controle, com maiores possibilidades de alcance de sucesso.

Dessa forma, este trabalho objetivou compreender as percepções de pessoas acometidas pela LV sobre os fatores relacionados ao contexto de ocorrência da doença, bem como a compreensão do processo de adoecimento e tratamento na população estudada.

 

MÉTODOS

 

O estudo foi desenvolvido no município de Araçuaí, Médio Jequitinhonha, Minas Gerais, no período de fevereiro a junho de 2014. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Araçuaí ocupa uma área de 2.236,279 Km2, com uma população estimada de 37.220 habitantes no ano de 201511. Suas principais atividades econômicas estão ligadas à agricultura de subsistência, a mineração de forma artesanal e informal e ao artesanato11.

O município de Araçuaí foi escolhido para a realização desta pesquisa por ser uma área endêmica da LV, além de ter apresentado a maior incidência desta doença dentre os 33 municípios de abrangência da Superintendência Regional de Saúde de Diamantina, sendo classificado como uma área de transmissão intensa12.

O presente estudo apresenta uma investigação de natureza qualitativa com abordagem fenomenológica empírica sobre a percepção da população acometida pela LV a respeito do contexto de ocorrência da doença. Para tal, foi adotado o referencial do método teórico metodológico de Amedeo Giorgi13. Segundo Andrade e Holanda (2010)14, o método fenomenológico é ideal para investigar o sentido ou significado da vivência para uma pessoa em determinada situação.

As pessoas que apresentaram soropositividade para L. infantum, notificadas pelo serviço de saúde, entre o período de 2007 a 2013, e que possuíam idade acima de 18 anos no período avaliado, foram convidadas a participarem de uma entrevista semiestruturada. As entrevistas foram realizadas após o aceite do convite, certificado por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecidas (TCLE).

As entrevistas foram realizadas na própria residência dos entrevistados, norteadas por um roteiro composto pelas seguintes perguntas: Com a descoberta da doença, houve alguma modificação em sua vida? Como você fez para tratar a doença? Como você acha que alguém pode ter Leishmaniose Visceral?

As entrevistas foram gravadas por meio de um gravador portátil de áudio. Em um primeiro momento, foi realizada a transcrição integral das entrevistas. Os nomes dos entrevistados foram substituídos por códigos, de forma a garantir o sigilo das informações e a privacidade deles. Posteriormente, a leitura das transcrições das entrevistas foi realizada, momento este de imersão total nas transcrições, suspensão dos conceitos prévios, no intuito de explorar o significado que a experiência vivida tem para os sujeitos colaboradores da pesquisa, no intuito de alcançar o sentido geral.

Em seguida, foram realizadas releituras dos textos, identificando as unidades significativas. O próximo passo foi o exercício de análise das unidades significativas, buscando o sentido nelas expresso, e, por fim, foi realizada a categorização, síntese das unidades significativas, representando a compreensão de como os diferentes sujeitos envolvidos vivenciaram a doença e como compreendem este fenômeno.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob número do parecer 522.035, atendendo, desta forma, a Resolução nº466/13, do Conselho Nacional de Saúde.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

No período estudado, foram notificados 41 casos de LV no município de Araçuaí, entretanto, dois destes não apresentavam registro de endereço e os dados estavam incompletos nas fichas de notificação. Sendo assim, foram excluídos do universo da pesquisa. Entre os 39 casos com o registro completo, 16 eram de pacientes com idade acima de 18 anos, sendo que destes, três haviam falecido e três haviam mudado de cidade. Desta forma, a pesquisa foi realizada com a participação de 10 pacientes, com idade entre 22 e 83 anos (média= 49,4 anos; mediana= 50 anos), sendo três mulheres e sete homens.

Por meio das entrevistas realizadas, vários aspectos que permeiam o contexto de ocorrência da doença foram elucidados. Dentre estes, se destacaram aspectos relacionados às dificuldades enfrentadas com o diagnóstico e durante o tratamento, o impacto financeiro, físico, psicológico, bem como a visão das pessoas acometidas sobre o processo de transmissão.

Com a análise das falas, emergiram unidades significativas, neste texto, referidas como núcleos de sentidos, que culminaram em quatro categorias, descritas abaixo.

Categoria I – Desesperança

                        Nos depoimentos dos participantes, foram identificados núcleos de sentidos referentes às dificuldades enfrentadas pelos indivíduos e aos sentimentos de angústia e desesperança que emergiram neste contexto. Esses trechos, em conjunto, deram significado à primeira categoria “Desesperança”.

            Durante a análise das falas dos entrevistados, foi identificado trechos de relatos com expressões que em sua essência representavam o fim da perspectiva de vida para alguns pacientes quando estes se viram com LV:

A minha saúde né? Questão de saúde foi água abaixo né? Acabou minha vida, simplesmente eu acabei.” (005)

 

 

            Achados semelhantes foram encontrados por de Castro et al. (2016)9.  Em uma pesquisa qualitativa, eles verificaram que alguns pacientes, quando questionados sobre o significado da doença, associaram a morte.

                        Neste contexto, observa-se o sentimento de desesperança pode ser fruto do sofrimento pelos sintomas da doença, bem como, sobretudo, pela angústia vivenciada por estes pacientes com a dificuldade de conseguirem o diagnóstico:

                  Tava tomando remédio tudo ao contrário, é pra verme, ainda bem que eu num tinha problema de como que fala pressão alta, graças a Deus eu num fumava, num bebia, num mexia com isso né? E nem tinha colesterol alto [...] eu passei por dois hospitais, *** e ***, no *** depois de 20 dias que eu fui descobrir [...] mas pra descobrir foi difícil, aí Deus abençoou depois que descobriu, mas eu vô falar com cê, é duro, injeção assim, tinha hora que picava 5, 6 agulha pra achar uma veia, minha veia acabou tudo. (004)

 

Tanto que, neste cenário, observou-se que para um dos pacientes o diagnóstico e o início do tratamento correto representaram uma mudança de perspectiva, em que ele se sentiu aliviado e renasceu a esperança:

Vou falar com cê, depois que eu fiz aquele exame que eu sabia que eles tava medicando em cima da doença, aí como diz eu renasci de novo, num tinha esperança não.” (004)

 

            A dificuldade em detectar a LV advém do fato de que os sinais e sintomas iniciais são muito inespecíficos, o que contribui para a ocorrência de erros de diagnósticos, podendo contribuir com o agravamento da infecção15. Outros trabalhos também apresentaram relatos de pacientes que, antes de terem a confirmação diagnóstica da LV, foram internados como outras causas por erros de diagnóstico16-18.

                        Leite e Araújo (2013)19 apontaram que a demora no diagnóstico e tratamento dos pacientes com LV tem sido identificada como fator de risco para morte. Neste contexto, pesquisadores recomendam o investimento em programas de educação continuada permanente para profissionais que atuam em áreas endêmicas, contextualizando as informações sobre a LV à realidade estudada, a fim de melhorar a detecção dos casos, bem como a relação entre paciente/profissional da saúde, e, evitar assim, a evolução da doença para a morte 20,21.

 

Categoria II - Sintomas clínicos

            Durante as entrevistas, foi recorrente nas falas dos participantes a referência às manifestações clínicas que eles tiveram durante a doença, emergindo assim, a segunda categoria “Sintomas Clínicos”.

            Os sintomas mais frequentes relatados pelos entrevistados foram: febre, emagrecimento, crescimento da barriga e do estômago, vômito e sensação de fraqueza:

 

É os trem tudo inflamado, aquele barrigão, a falta de ar e as perna inchada, o menina agora que me deu uma formigueira no pé, aqui mesmo de passar a mão, ardendo na pele.” (006)

 

     Escureci o corpo, fiquei preto, mudei de cor, toda três hora da tarde dava febre em mim, até hoje sente o sangue, o sangue ta solto, qualquer coisa sai sangue em mim [...] Provocação de febre, cansaço e não tem disposição pra fazer nada [...] deu pneumonia (007).

 

Minha barriga que cresceu bastante, fiz aqueles exames na Cismeje que olha dentro da barriga da gente, tava aberto. Tava muito largo meu estômago e barriga tinha crescido bem nessa época.” (008)

 

[...] aí eu ficava deitada direto, e só sentindo febre e a dor no corpo, ficava só deitada, não tava aguentando ficar em pé, o que eu comia eu vomitava e só ismagricendo eu pesava 69 e pesei 58 quilos, imagrici um tanto.” (009)

 

 

            De uma forma geral, os sintomas clínicos, descritos pelos entrevistados, corroboram com os achados da literatura22- 24. Contudo, é preocupante o relato de pneumonia, hemorragia, edema, aumento do fígado e problemas gastrointestinais, pois são sinais de estado avançado da doença, com maiores chances de evolução para o óbito 22,24,25.  Segundo Lisboa et. al. (2014) 25, dentre estes sintomas, a hemorragia é o mais agravante, pois pacientes com esta manifestação clínica tem aproximadamente oito vezes mais chances de falecer comparado a quem não apresenta este sintoma. 

 

Categoria III - Transmissão

            Nos depoimentos dos entrevistados, emergiram núcleos de sentidos referentes às formas de infecção e elementos do ciclo biológico da L. infantum, bem como, associações da doença a lesões e feridas externas apresentadas no corpo. Esses depoimentos, quando analisados conjuntamente, revelaram o imaginário dos pacientes acerca das percepções sobre as formas de transmissão da LV, e, portanto, foram agrupados na categoria “Transmissão”. Em relação à forma de infecção, pôde-se averiguar que a maioria dos entrevistados associou a transmissão da “doença” a um mosquito:

 

[...] o mosquito infectado pica a pessoa [...]” (002); Eu acredito que deve ser por uma picada do mosquito né?” (004); Eu acho que é negócio desses mosquitos.” (007)

 

            Essa alusão de associar a transmissão da “doença” a um mosquito decorre, provavelmente, do fato de que o flebotomíneo é conhecido popularmente como “mosquito palha”, referência encontrada até mesmo em encartes oficiais nas campanhas de controle da doença e em livros didáticos26. Para alguns pesquisadores, essa associação pode levar a dificuldades no entendimento das ações de prevenção e controle sobre a doença, uma vez que a água é o ambiente propício para a reprodução e desenvolvimento de mosquitos, ao passo que para os flebotomíneos é a matéria orgânica em decomposição26.

            Entretanto, deve-se ressaltar que, a fim de evitar confusões no entendimento da população, alguns pesquisadores têm indicado que o caminho para o desenvolvimento de ações de controle das leishmanioses e de outras doenças endêmicas, cuja prevenção está relacionada a intervenções ambientais, é o de trabalhar o ambiente como promotor da saúde, ao invés de propor medidas ambientais específicas para cada doença27.

                        Além da associação da transmissão da “doença” a um mosquito, alguns entrevistados mencionaram o envolvimento do cachorro e/ou da raposa, o que demonstra conhecimento de elementos importantes do ciclo biológico da LV:

                      Eles diz que é cachorro, diz que pega através do mosquito, que vem até através da raposa parece que falou, que vem, o mosquito pica a gente, só que eu mesmo num sei como eu peguei essa doença, porque eu num tinha cachorro, só se o mosquito me picou no mato, porque eu trabalho na roça, ou na casa de um vizinho se tiver cachorro porque aqui mesmo não tem não. (009)

 

 

                        Entretanto, foi possível perceber que, mesmo associando alguns importantes elementos da cadeia de transmissão da “doença”, alguns relatos demonstraram falhas no entendimento do ciclo biológico da LV:

[...] através de cachorro, de animal, o mais certo é cachorro que pega nas pessoas, pega até no ar assim sabe?”; (001)Através carrapato, carrapato. Eu fui através disso, cachorro, mais ou menos isso, acredito isso.” (005)

 

            Carmo et al. (2016)27 averiguaram em um município da região metropolitana de Belo Horizonte que alguns moradores associaram a transmissão da infecção apenas ao cão, pelo contato direto através da mordedura e pelo contato indireto com secreções, urina e fezes. Os pesquisadores observaram o não reconhecimento dos flebotomíneos no ciclo de transmissão da doença, o que sugere estar relacionado ao fato de que esses mosquitos possuem características que dificultam a sua visualização, como o tamanho pequeno, voo silencioso e o fato deles não pairarem no ar27.

            Segundo Dias et al. (2016) 28, existe uma grande distância entre o conhecimento científico produzido e o que é aplicado pelos profissionais na prática na saúde, o que consiste em um desafio para o controle de doenças de transmissão vetorial como a doença de Chagas, as leishmanioses e a dengue. No presente estudo, por meio das falas pôde-se perceber que associações errôneas são transmitidas até mesmo por profissionais da saúde:

 

Eu fui ao médico, chegou lá ele falou num é nada não, isso é um mosquito que passeou aí. Entendeu?” (003).

 

 

            A falta de aplicabilidade, apontada por Dias et al. (2016)28, pode ser oriunda tanto da carência de conhecimento dos profissionais, como observado em alguns estudos27,29-31, como da falta de zelo com as informações que são transmitidas aos pacientes, como observado na fala do entrevistado acima.

                        Algumas pessoas fizeram associação do adoecimento a perfurações ou a feridas na pele, que funcionaria como porta de entrada:

É, eu acho, pelo menos comigo aconteceu assim, quando eu fui cortar uma lenha furou, e aquilo não sarava por nada, aí quando tava grandinho assim, eu fui ao médico” (003); “Num sei, porque essa minha num tinha nada né? Eu vi que eu cortei o pé, furei num pau, fez um furadinho, daí pra cá começou doer, deve ser que era no mato, tava tudo molhado né?” (006)

 

            Por outro lado, foi possível observar a associação de feridas externas não como forma de adquirir a infecção, mas como resultado do adoecimento:

Tudo vem ser isso porque num sou eu que adoeci primeiro, muitos que   adoeceram uns tinham uma ferida por fora né? E o meu foi no fígado, no baço, então o que aconteceu comigo era mais difícil porque se fosse só ferida já sabia o que era né? (004);

 

[...] minha boca toda feria por dentro aí [...]” (009);[...] nasceu um bolotinha aqui assim, e coçava, coçava e falei com ***, tô com um berne aqui na minha perna que eu num to aguentando, só ferroando[...]” (010)

 

Tendo em vista que Araçuaí, também, é uma área endêmica para Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA)32-34 não se pode descartar a hipótese de que alguns pacientes também podem ter sido acometidos por esta entidade mórbida. Contudo, por meio da fala de um dos entrevistados que se referiu a feridas externas, pôde-se inferir que houve uma associação com a forma tegumentar, podendo se verificar que na percepção dele a LTA e a LV correspondem a uma única entidade mórbida, que, entretanto, se manifesta de formas diferentes. Santos et al. (2014)35, ao estudarem a percepção de indígenas Xakriabá sobre a LTA, também, observaram que estes confundem a LTA e a LV, principalmente no que diz respeito aos reservatórios.

Brustoloni et al. (2013)36, ao avaliarem o conhecimento sobre a LV por parte de familiares de crianças acometidas pela doença no Mato Grosso do Sul, perceberam um desconhecimento dos aspectos da doença por parte desses habitantes. Segundo Martins et al. (2015)10, o desconhecimento sobre a enfermidade e os cuidados necessários para impedir a transmissão colaboram para manutenção e dispersão da doença ao longo dos anos.

 

Categoria IV – Impacto socioeconômico

            A partir da análise das falas, emergiram núcleos de sentido referentes às alterações na rotina de atividades laborais, bem como, núcleos referentes às dificuldades financeiras enfrentadas pelos acometidos, que culminaram a categoria “Impacto socioeconômico”.

            As dificuldades eram tanto com relação aos deslocamentos para a realização do tratamento:

 

Ah eu vim aqui pra cidade, aí eu vim, tava até com um doutor de Belo Horizonte,***, aí eu fiquei fazendo os exame tudo [...]

 

            Quanto com medicamentos e exames durante a realização:

[...] pedia exame todo mês, uns eu pagava outros eu num pagava, Deus abençoou, [...] o médico viu que num tinha jeito [...] ele falô (o médico) oh moço tem que procurar um recurso e fica caro, esse exame ia ficar por 960 reais, mas [...] uma médica doutora *** me ajudou muito, doutor ***, baixou pra 690 reais, mas assim depositar hoje pro médico vim amanhã [...] Ou então eu morria né? Num tivesse o dinheiro eu morria, minha solução foi essa né? (004)

 

                        Além de acometer as regiões mais carentes, o fato de estar doente acaba aumentando a pobreza em alguns locais, desencadeando um ciclo vicioso de doença e pobreza37. Essa conjuntura foi observada no presente estudo, visto que a doença ocasionou incapacidade física nos acometidos, que manifestaram dificuldades para a realização de suas atividades cotidianas, incluindo atividades laborais:

 

Modificou muito, vixe... num saio pra canto nenhum [...] eu num posso andar quase, tô mais parado [...] modificou muito a minha vida...vixe[...]” (001); Eu não pude trabaiá, duenta né? Fiquei foi de cama, não comia, até pra mim beber não conseguia[...]” (009);Eu fiquei lá em cima da cama, num comia, num bebia [...] (010).

 

                        Situações semelhantes foram reportadas em outros estudos. Silva et al.16 entrevistaram famílias que tiveram casos de LV em crianças e relataram ouvir destas que o “o calazar é um desassossego”, pois necessariamente tinham que mudar a rotina da família, gastar com remédios e quando internado, uma pessoa, ainda, tinha que parar de trabalhar para acompanhar, por serem crianças acometidas.

Neste contexto, tendo em vista o relato de alguns pacientes, que tiveram um tratamento demorado, a magnitude do agravo a saúde e do impacto socioeconômico vivenciado, é inestimável

Foi muito repouso né? [...] durou dois anos e seis meses o tratamento[...].” (004).

 

            O Ministério da Saúde3 recomenda que o tratamento dure entre 20 a 40 dias, e, em caso de recidiva, seja instituído um segundo tratamento por, no máximo, 40 dias. Entretanto, Pelissari et al. (2011)38 afirmaram que a duração da terapêutica depende do estado clínico, sendo que, em alguns casos, os pacientes só evoluem para cura, após a tentativa de vários esquemas terapêuticos.

            Visto que as drogas utilizadas no tratamento são tóxicas, Oliveira et al. (2010)22 destacaram a necessidade de profissionais capacitados para o monitoramento clínico e laboratorial, a fim de identificar, precocemente, possíveis complicações, bem como a necessidade do desenvolvimento de novas drogas com baixa toxicidade.

            A LV é uma doença negligenciada que atinge, principalmente, populações com condições socioeconômicas desfavorecidas, as quais, por não terem instrução, não cobram seus direitos à saúde, educação, saneamento e moradia, direitos esses previstos na Constituição de 8839. Além disso, ainda que seja previsto por leis e programas, suporte com gastos com medicamentos, transporte e assistência médica, como se pôde verificar por meio das entrevistas, as famílias sofrem um impacto financeiro, pois, em algumas situações, as pessoas têm que abdicarem de empregos para fazer o tratamento ou para acompanhar um parente doente.

            Neste sentido, Brustoloni et al. (2013)36 acreditam que o investimento em práticas educativas e políticas públicas que melhorem a distribuição de renda podem auxiliar no controle da LV. Desta forma, as instituições sociais e de saúde devem ter um olhar mais amplo frente a estas questões e desempenharem projetos com foco em doenças negligenciadas endêmicas e suas complexas interações sociais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

                        O município de Araçuaí é considerado endêmico para LV há anos. Neste contexto, as dificuldades apresentadas pelos pacientes com o diagnóstico e tratamento denota necessidade urgente de investimentos em programas de educação permanente para os profissionais da saúde, a fim de contribuir para melhorar o diagnóstico e detecção dos casos de LV, o tratamento dos acometidos e a relação entre estes e os profissionais da saúde. Além disso, desconhecimento de aspectos da LV, evidenciados nas falas das pessoas que foram acometidas, sinaliza que o investimento em educação em saúde para a população também é premente. Entretanto, deve-se considerar que trabalhos de cunho educativo só alcançam resultados satisfatórios quando são realizados, tendo em vista o perfil das populações alvo. Portanto, conhecer a percepção da população acerca da doença é substancial e deve ser considerada para o desenvolvimento de estratégias de controle e prevenção, contextualizadas com a realidade da doença.

 

            Os autores declaram que este trabalho não foi financiado, sendo o resultado da dissertação de “Leishmaniose Visceral em municípios que compõem à Superintendência Regional de Saúde de Diamantina, com ênfase no município e Araçuaí, Minas Gerais”. Os autores declaram, ainda, que não há conflitos de interesse.

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Recebido em 14/08/2018

Aceito em 08/11/2018

Publicado em 03/05/2020

 

 

 

 



1 Mestre em Saúde, Sociedade e Ambiente pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Servidora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Minas Gerais. Brasil. * (reursine@gmail.com).  (https://orcid.org/0000-0003-0649-6708).

2 Doutor em Ciências da Saúde pelo Centro de Pesquisas René Rachou (FIOCRUZ). Professor Adjunto da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Minas Gerais. Brasil. 

3 Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto II da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
4 Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais (UNILESTE).
Minas Gerais. Brasil. 
5 Doutor em Biologia Parasitária pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professor Associado da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Minas Gerais. Brasil.