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eISSN 2236-5257 |
Aplicação das ferramentas de abordagem familiar por
uma equipe de Saúde da Família: relato de caso
Application of
family approach tools in the Family Health team: case report
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Jozimara Rodrigues da Mata [1]
Yara Silveira Miranda[2]
Matheus Mendes Pereira³
Resumo: a família
é considerada fator determinante no processo saúde doença, devendo ser vista de
forma integral pela equipe de Saúde da Família. O presente relato tem por
objetivo descrever o estudo de caso desenvolvido pela equipe da Residência
Multiprofissional em Saúde da Família. Trata-se de uma abordagem familiar de
pacientes residentes na área de abrangência de uma Equipe de Saúde da Família,
situada em Montes Claros – MG, por meio da aplicação das ferramentas de
abordagem familiar - Genograma, Ecomapa, FIRO, P.R.A.C.T.I.C.E. e a Conferência
Familiar. A partir da abordagem foi possível promover assistência integral pela
melhor compreensão da composição da família, do seu modo de funcionamento e
estrutura. O conhecimento do funcionamento familiar, obtido pela aplicação das
ferramentas, proporcionou à Equipe de Saúde da Família embasamento para a
prestação de assistência abrangente e integral, ao considerar a estrutura
familiar, auxiliando a família no alcance de resultados mais eficazes e
duradouros.
Palavras-chave: Relações familiares; Estratégia
Saúde da Família; Conflito familiar.
Abstract: the family is
considered a determining factor in the health-disease process, and should be
seen in full by the Family Health team. This report aims to describe the case
study developed by the Multiprofessional Residency in Family Health team. It is
a family approach of patients residing in the area covered by a Family Health
Team, located in Montes Claros – MG through the application of family approach
tools - Genogram, Ecomap, FIRO, P.R.A.C.T.I.C.E.
and the Family Conference. From the approach, it was possible to promote
comprehensive assistance for a better understanding of the family’s
composition, its way of functioning and structure. The knowledge of family
functioning, obtained through the application of the tools, provided the Family
Health Team with the basis for
providing comprehensive and comprehensive assistance, were considering the
family structure, helping the family to achieve more effective and lasting
results.
Key words: Family relationships; Family Health Strategy; Family conflict.
INTRODUÇÃO
A família pode ser conceituada como grupo de pessoas aparentadas, que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos. Da mesma forma, pode significar pessoas unidas por laços de parentesco, linhagem, ascendência, estirpe, sangue e por adoção. Pode-se, portanto, dizer que a entidade família é de existência incontestável1.
O significado de família pode estar profundamente ligado a diferentes tipos de afetos e sentimentos. As experiências das relações familiares são singulares, íntimas e fundamentais para percepção pessoal, isto é, para as próprias identidades. A família estrutura-se a partir de um conjunto de normas, práticas e valores, que advém de um lugar, tempo e história específicos2.
Para a equipe Saúde da Família (eSF), a família deve ser vista de forma integral e em seu espaço social, ou seja, o indivíduo deve ser abordado dentro do seu contexto familiar, socioeconômico e cultural e reconhecido como sujeito social, portador de autonomia, mas tendo clareza de que na família há interações e conflitos que influenciam diretamente na saúde das pessoas3. A família deve ser entendida como um condicionante/determinante na vida das pessoas e por consequência em seus cuidados4.
A eSF apresenta possibilidade de prática com foco familiar, justamente devido à proximidade da equipe com as famílias do território, possibilitando a percepção de suas demandas e também potenciais5.
Para descobrir como um paciente resolve
seus conflitos e ajudá-lo a alcançar suas expectativas de bem-estar, a equipe
multiprofissional precisa conhecer e compreender a constituição da sua família
e o papel que ele exerce dentro dela, qual sua ocupação, seu nível de educação
formal, as expectativas da mesma em relação a ele e as conexões afetivas
construídas através das vivências; além disso, ela adquire importância fundamental,
visto que pode exercer o papel de fonte geradora de problemas e/ou de solução
dos mesmos6.
As ferramentas de trabalho com famílias, também conhecidas como ferramentas de abordagem familiar, são consideradas tecnologias leves, ligadas à postura, conduta e interação da equipe, relacionais, oriundas da Sociologia e da Psicologia, que visam estreitar as relações entre profissionais e famílias, permitindo compreender em profundidade o funcionamento do indivíduo e de suas relações familiares e comunitárias7.
Dessa forma, torna-se necessária a implementação de ferramentas específicas, básicas para realização de uma adequada abordagem familiar, as principais são: genograma, ecomapa, ciclo de vida familiar, F.I.R.O. e P.R.A.C.T.I.C.E.
A necessidade da utilização dessas ferramentas pelas eSF’s tem sido demonstrada em estudos recentes. É nítida sua importância na resolução de conflitos, na melhora da comunicação e da convivência entre seus membros, além de possibilitar o levantamento dos problemas familiares, discussão sobre os papéis desempenhados por cada membro, possibilitando a expressão individual de todos sobre o problema enfrentado8.
Este estudo se justifica pela necessidade de aprimorar o conhecimento e a implementação das ferramentas de abordagem familiar na prática da eSF, promovendo uma assistência efetivamente integral por meio de melhor compreensão da composição da família, assim como seu modo de funcionamento e estrutura.
O presente artigo tem como objetivo relatar o estudo de caso desenvolvido sobre a abordagem familiar de pacientes de uma eSF do município de Montes Claros – MG, centrando na conferência familiar como instrumento de trabalho para realização de intervenções junto aos membros da referida família.
RELATO DO CASO
Trata-se
de um relato de caso de abordagem familiar, por meio da aplicação das
ferramentas de abordagem familiar: Genograma, Ecomapa, Ciclo de Vida Familiar,
F.I.R.O. e P.R.A.C.T.I.C.E. pelos profissionais - enfermeira e dentista da Residência
Multiprofissional em Saúde da Família.
O
projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, sob Parecer nº 572.244 de
27 de março de 2014. Após aprovação, foi selecionada uma família residente na
área de abrangência da ESF Santa Eugênia, na cidade de Montes Claros – MG, para
o estudo. A identidade dos membros da família foi mantida sob sigilo,
utilizando-se ao longo do estudo, nomes fictícios para identificação dos mesmos.
A
seleção da família se deu a partir da inversão de papéis repentina no âmbito
familiar, após um acidente que incapacitou fisicamente o chefe da família,
tendo a mãe (paciente índice) tomado todo o cuidado da família para si e
deixado de lado o autocuidado, apresentando atualmente diversas alterações
sistêmicas e psicológicas. Além disso, a condição instalada gerou diversos
conflitos entre os familiares, criando um ambiente de tensão que se reflete na
vida e na saúde de todos.
Para
o desenvolvimento do trabalho, foram realizadas 06
visitas domiciliares à família pela equipe de Saúde da Família. A primeira
visita domiciliar foi realizada com o objetivo de apresentar e propor o estudo
a ser realizado e, assim, obter autorização e aprovação do grupo familiar. As
visitas subsequentes foram utilizadas para aplicação das ferramentas de
abordagem familiar. Finalizou-se com a conferência familiar como momento de
discussão dos resultados identificados durante a aplicação das ferramentas e
como espaço de pactuações e definições com a família.
História
da paciente índice:
Eva,
47 anos, portadora de Hipertensão arterial sistêmica, Diabetes Mellitus, obesidade e transtorno
depressivo, filha de Maria e João, ambos já falecidos, mãe portadora de “doença
cardíaca”; possuía 07 irmãos, dos quais 04 já faleceram, 01 possui transtorno
depressivo e os outros dois moram em outras cidades. Há 29 anos teve um
primeiro relacionamento, do qual resultou na primeira gestação, sua filha
Camila, que tem dois filhos e é divorciada. Em 1992 iniciou um relacionamento
com o pai da segunda filha, Priscila, com 26 anos hoje, casada e com quatro
filhos. Em 2000 se relacionou com um terceiro parceiro, pelo qual gestou o
terceiro filho, Lucas, 18 anos hoje, que reside com a mesma. O quarto e atual relacionamento
é com Felipe, vítima de acidente automobilístico há 07 anos, com
comprometimento cervical, apresentando tetraplegia, quadro de atrofismo e total
dependência de cuidados. Desse relacionamento obtiveram duas filhas antes do
acidente, Aline, 12 anos, portadora de esquizofrenia, e Rosa, 9 anos, e as duas
também residem com ela.
A
classificação de Eva como paciente índice se dá pelas condições de vida em que
está inserida. A mesma é responsável pelo cuidado integral do marido, de
difícil comportamento, apresentando-se muitas vezes agressivo contra a esposa.
O cuidado geralmente é realizado com a ajuda do filho, que também recebe as
agressões do padrasto, e diante disso acaba recusando muitas vezes ajudar a mãe
nesses momentos. A paciente decidiu deixar de trabalhar para dispensar os
cuidados ao marido e à filha esquizofrênica. A mudança de papéis para Eva se
torna ainda mais difícil perante um relacionamento conflituoso com o marido,
que após 07 anos de cuidados não reconhece e não possui sinal de gratidão para
com ela, referindo não haver mais desejo de promover os cuidados com o mesmo. Hoje custeiam as necessidades com as
pensões/aposentadorias do marido e da filha.
O
grande motivo de elencar Eva como paciente índice é a percepção da grande sobrecarga
que ela apresenta, percebida pelo comprometimento de sua saúde mental, com
humor deprimido, fala desmotivada, desejo de encerrar os cuidados com o marido,
além de quadros de tontura, quedas, cefaléia e pressão arterial frequentemente
descompensada. Em busca de ajuda, obteve assistência do programa Melhor em Casa
para o marido, entretanto a equipe foi dispensada pelo próprio, após sessões
repetidas de agressões verbais.
O
marido possui irmãos, que segundo Eva, possuem condições de ampará-lo e
promoverem seus cuidados; entretanto, nunca se prontificaram a ajudá-la e
refere que gostaria de dividir essa assistência, que hoje é a mais dispendiosa
para si.
Esse
relato foi financiado pelos próprios autores, não se trata de resultados de
dissertações ou teses e não possui conflitos de interesse.
DISCUSSÃO
A
primeira ferramenta aplicada no estudo foi o genograma, permitindo a identificação rápida da
dinâmica familiar, as particularidades individuais e os tipos de relacionamento
entre seus membros. Essa ferramenta fornece informações demográficas, de
posição funcional, recursos e acontecimentos críticos na dinâmica familiar.
Dentro
da Saúde da Família, a aplicação do genograma permite uma visualização do
processo de adoecer, facilitando o plano terapêutico e, à família, melhor
compreensão sobre o desenvolvimento de suas doenças. É frequentemente associado
ao ecomapa, e esses dois instrumentos mostram o desenvolvimento e formato da
estrutura da família e fornecem informações sobre o contexto de vida da família9.
O
genograma desta família foi construído em 02 visitas domiciliares com a
participação do paciente índice e de seu esposo, já que os filhos que residem
no domicílio não possuem muita informação sobre seus familiares mais distantes.
A sua construção permite resultados sobre a abordagem familiar no âmbito da
atenção primária, ou seja, a visualização da família possibilitou o
conhecimento de suas estruturas internas9.
Eva
Figura 1: Genograma da família do estudo de caso. ESF Santa
Eugênia, Montes
Claros, MG
Fonte: Produzido pelos autores.
O
ecomapa, ferramenta que complementa o genograma, foi construído na terceira
visita. Funciona como uma ferramenta para observação do relacionamento da
família com o meio e com outros atores sociais. Pode-se dizer que essa ferramenta é um complemento ao
genograma, colhendo informações importantes acerca dos possíveis apoios sociais
disponíveis para utilização pela família de forma dinâmica e serve
para a identificação dos recursos de apoio disponíveis que são acessados pelos
membros da família9. Com ele, pode-se observar que a família tem
como relações com o meio externo a igreja, muito utilizado pelas filhas, assim
como a escola. A mãe frequenta o ambiente da eSF e tem muito contato com a vizinha
Marcia. A academia entra para o ecomapa por ser utilizada pelo filho.
Figura 2: Ecomapa
da família do estudo de caso. ESF Santa Eugênia, Montes
Claros, MG – 2019.
Fonte: Produzido pelos autores.
Também
foi avaliado o ciclo de vida, o qual auxilia na identificação da fase da vida em que cada membro
se encontra, evidenciando suas características e os desafios pertinentes de
cada fase10.
Nessa
ferramenta também é possível avaliar uma série de eventos previsíveis que
ocorrem dentro da família como resultado das mudanças em sua organização. Toda
mudança requer de cada membro uma acomodação ao novo arranjo7.
Observando
a família estudada, percebemos que devido à presença de três filhos em casa,
dois adolescentes e uma pré-adolescente, a família encontra-se no estágio
“Família com filhos adolescentes” do ciclo de vida. Essa fase é caracterizada
por filhos adolescentes, pais na
meia-idade e avós na velhice. Toda a família vive uma crise, onde a mãe
geralmente está sobrecarregada, o pai é autorizador, permissão da flexibilidade
das regras, com limites mais acessíveis ao meio externo. Faz-se necessário
permitir que o adolescente exerça autonomia dentro e fora do contexto familiar
e agrega-se como tarefa aos pais equilibrar a liberdade e considerar a individualidade
do adolescente7.
O FIRO - Fundamental Interpersonal Relations
Orientations ou Orientações fundamentais nas Relações Interpessoais é categorizada como uma teoria de
avaliação das necessidades, dos sentimentos dos membros da família1.
É
muito útil quando nos deparamos com situações de doenças agudas, de
hospitalizações ou acompanhamento das doenças crônicas, pois a família deverá
negociar, entre seus membros, possíveis alterações de papéis decorrentes das
crises familiares advindas dessas situações. Também pode ser usada para
entender como uma família está lidando com alterações no ciclo de vida, ou na
avaliação de disfunções conjugais ou familiares7.
Esse
instrumento é pautado em três pilares:
A
inclusão, que diz respeito à interação dentro da família para sua vinculação e
organização e o envolvimento de cada membro com o contexto familiar
apresentado. Aprofunda os conhecimentos da organização familiar e dos papéis
dos indivíduos nessa família e entre as gerações; refere-se à sensação de
pertencimento ou não ao meio familiar.
O
controle, que refere-se às interações do exercício de poder dentro da família,
podendo-se manifestar como dominante, quando um exerce influência sobre todos
os demais; reativo, quando se estabelecem reações contrárias, ou seja, de
reação a uma influência que quer tornar-se dominante; e colaborativo, quando se
estabelece a divisão de influências entre os familiares.
E
como último pilar, tem-se intimidade, que
se refere às interações e proximidade afetiva entre os membros11.
Durante
a aplicação dessa ferramenta, pôde-se perceber que, em relação ao pilar da
inclusão, os filhos possuem algum afeto com a mãe, mesclado com momentos de
conflito por muitas vezes relacionada às tarefas domésticas e ao marido. A
relação das filhas e do enteado com o pai/padrasto cada dia se torna mais
difícil e conflituoso. Entre as irmãs o relacionamento também se divide em
momentos de harmonia e conflitos. O irmão possui uma figura de autoridade na
casa para as duas irmãs. O Lucas não mantém diálogo com o padrasto, e tem um
relacionamento harmonioso com a mãe. Essa percepção do afeto é importante para
evidenciar como cada membro reage e se sente dentro da família. O relato das
filhas é de que o pai não deveria estar na casa, na família, o pai, por vezes
fala que deseja sair da casa, pois não está feliz com o ambiente em que está
inserido. Após frequentes discussões o filho Lucas passou a ficar mais tempo na
casa das irmãs, abstendo-se da convivência com a mãe, irmãs e padrasto.
Esse
resultado, assim como os encontrados em outros trabalhos de abordagem familiar,
refere uma percepção de relações conflituosas entre seus membros, permeando o
meio com uma hostilidade instável8.
Já
em relação ao controle, observa-se um controle dominante e unilateral por parte
da paciente índice, o qual não é bem aceito pelo esposo, já que este papel era
exercido por ele antes de se tornar acamado e dependente da família, exercendo
este então, o controle reativo. O paciente índice geralmente assume um papel de
sobrecarga ou mudança de papeis8.
Por fim, relacionado à intimidade,
percebe-se grande proximidade entre Eva e todos os seus filhos, principalmente
com os que residem com ela, que demostra ainda mais carinho pelo filho Lucas, seu
único filho homem, perceptível durante a aplicação das ferramentas e durante a
conferência familiar. Toda a família vive hoje uma relação conflituosa com
Felipe, devido a suas constantes agressões verbais e falta de reconhecimento do
cuidado que recebe, concordante com outro estudo de família, onde verificou-se
ausência de demonstração de carinho e qualquer forma de afeto como beijos e
abraços entre os familiares12.
Para
melhor avaliação familiar foi utilizado o P.R.A.C.T.I.C.E., um acróstico das
seguintes palavras do original em inglês problem, roles, affect,
communication, time in life, illness, copingwith stress, environment/ecology. Esse esquema foi desenvolvido para o manejo
das situações mais difíceis. É focado na resolução de problemas, o que permite
uma aproximação com várias interfaces que criam problemas para as famílias
analisadas. Deve ser aplicado sob a forma de uma conferência familiar11.
É válido mencionar ainda que o
P.R.A.C.T.I.C.E. funciona como um instrumento focado no problema e permite a
aproximação esquematizada para trabalhar com as famílias10, o qual
possibilita a compreensão do problema e a coleta de informações associadas ao
mesmo, seja ele de ordem clínica, comportamental ou relacional, assim como a
elaboração de avaliação e construção de intervenção, com dados colhidos com a
família, facilitando o desenvolvimento da avaliação familiar1.
P- Problems (Problemas
Apresentados) – Eva teve sua
vida transformada após acidente que deixou seu marido acamado. A partir daí,
abandonou suas antigas atividades para se dedicar ao cuidado do esposo e da
casa. Porém, diante da sobrecarga, deixou de cuidar de si e de sua saúde física
e mental. Além de tudo, ela convive diariamente com agressões verbais vindas do
marido e com a falta de gratidão do mesmo. Além disso, tem que lidar com dois
filhos adolescentes e uma criança em casa, tendo um deles diagnóstico de
esquizofrenia. O fator da sobrecarga também apresenta em outro estudo de mesmo
cunho8. Hoje refere que seu maior problema é a falta de
companheirismo/colaboração dos filhos que residem com ela e insegurança devido
aos conflitos entre as filhas e as filhas com o pai.
R - Roles (Papéis)
– Apesar de Felipe ser o membro da
família que mais demanda cuidados, seu quadro se mantém estável, o seu papel na
família pode ser descrito como um dos principais motivos de conflito familiar e
a preocupação hoje é com o quadro de Eva, que apesar de apresentar Hipertensão
Arterial, Diabetes Mellitus, obesidade, problemas psicológicos e não
procurar nenhum tipo de ajuda e acompanhamento, apresenta o papel de cuidadora
de Felipe, além de organizadora do lar, responsável pela educação dos filhos,
cuidados com a casa e administração das finanças. Lucas tem como principal
papel auxiliar a mãe no cuidado de Felipe, além de ter suas responsabilidades
com a escola e com as irmãs. A filha Aline tem como papel auxiliar a mãe nos
cuidados da casa e do pai, além de exercer suas funções de estudante. A filha
Rosa possui o mesmo papel que a irmã, exceto pelo auxilio com o cuidado do pai,
o qual realiza com menos frequência devido a idade. Outro estudo verifica em
sua aplicação das ferramentas de abordagem familiar a inversão dos papéis no
âmbito familiar, onde a esposa também assume a chefia, além dos cuidados com a
família13.
C- Affect (Afeto) – O principal problema da
família, já mencionado, afeta a todos os membros. Apesar da boa interação com
os filhos, Eva refere ser agredida verbalmente, difamada e entristecida pelo
marido, que também repete esse comportamento com todos ao seu redor, promovendo
um ambiente instável, brigas entre os membros e discussões frequentes. Eva, há
pouco tempo, apresentou um quadro típico de surto histérico, que segundo a
família se tratava de uma possessão espiritual, devido as ofensas oriundas de
Felipe. Após a crise Eva demonstrou, ainda mais, uma perda de humor e de zelo
por ela própria, sua saúde e por aqueles que estão ao seu redor, como quando
faz uso de automedicação, utilizando superdoses de benzodiazepínicos e
antidepressivos, causando períodos prolongados de sono. Desse modo se assemelha
ao estudo familiar de Santos et al. (2015), onde os membros são
afetados pelas mudanças da rotina e prioridades estabelecidas pela condição de
um membro dependente de cuidados integrais.
C- Communication (Comunicação) – O diálogo entre a família existe
no dia a dia, mas na maioria das vezes não ocorre de forma saudável e
resolutiva. Durante algumas situações ocorre a exposição dos problemas, mas de
forma agressiva e sem procurar resolver aquilo que está causando o conflito. Outros
trabalhos mostram que a comunicação também é caracterizada como conflituosa e
difícil entre os membros12.
T- Time in life (Tempo no ciclo de vida) - A família encontra-se no ciclo de vida “Família com filhos
adolescentes”. Nessa etapa, é importante que se tenha um ambiente familiar
adequado para o desenvolvimento da responsabilidade e autonomia do adolescente,
o que acontece com muita deficiência nessa família.
I-Illness (Doença no passado e no presente) –
As principais associações feitas para justificarem o quadro de saúde da
paciente índice, Eva, são focadas no seu relacionamento de esposa/cuidadora do
marido, que constantemente a agride verbalmente, desencadeando um ambiente
familiar conflituoso para com os filhos e os amigos e familiares que moram fora
e não concordam com a situação que ela “aceitou”. Além disso, refere ser
receptáculo de problemas externos das filhas já casadas, a respeito do
casamento e dos filhos, netos de Eva. Essas situações agravam ainda mais seu
transtorno depressivo, ainda refere uso de superdosagem e automedicação e observa-se
a presença de morbidades biológicas como obesidade, Diabetes Mellitus e
Hipertensão Arterial. Além disso, a família possui o quadro de Aline,
diagnosticada desde os 05 anos de idade com esquizofrenia, e Felipe, com
tetraplegia estável.
C- Copingwith stress (Lidando com o estresse) - Eva afirma que
suas principais estratégias para lidar com o estresse são por meio de música e
leitura, além de confecção de tapetes. A filha Aline tem como principais entretenimentos
dançar e frequentar a igreja, assim como a irmã Rosa. O Felipe tem como recurso
a televisão da casa, atividade que mantem praticamente durante todo o dia. O
filho Lucas tem como estratégias a namorada, as casas das irmãs e a academia.
E- Environment/ecology (Ecologia ou Meio Ambiente) –A relação com
o meio externo se dá por meio da academia, pelo Lucas, igreja e escola pelas
filhas Aline e Rosa. Felipe, devido a sua condição, não sai de casa e não
recebe muitas visitas, as poucas que recebem são da equipe de saúde do bairro
ou de poucos familiares. Eva mantém contato com a eSF, além de uma vizinha com
quem conversa com mais frequência.
Finalmente,
após aplicação de todas as ferramentas citadas, foi feita a conferência
familiar para discussão de todos os resultados do estudo com a família,
objetivando encontrar soluções para os problemas identificados. Participaram da
conferência os seguintes membros: Eva, Felipe, Aline, Rosa e Priscila. A mãe
relata ter convidado o filho que reside no domicílio, que não manifestou desejo
em participar da conferência. Além disso, foram convidados os irmãos do marido,
pela filha Priscila, que também não compareceram, alegando outros compromissos.
Após
a exposição dos problemas identificados, os próprios membros da família já se
mostraram esclarecidos quanto ao que acreditam ser a solução da maioria dos
problemas atuais da família. Felipe já há vários encontros externava seu desejo
de ir morar com algum de seus irmãos, pois não se sentia satisfeito com os
cuidados e com o ambiente em que estava, e acabava transformando esse desejo em
agressões verbais diárias contra a família. Eva se mostrou esgotada com a
situação, e, com o apoio de suas filhas Priscila, Aline e Rosa, decidiu que o
melhor para toda a família é procurar uma alternativa de moradia para Felipe.
A
filha Priscila se dispôs a entrar em contato com os familiares do padrasto para
expor a situação e saber do posicionamento dos mesmos. Entretanto, como a
própria Eva relata falta de interesse da parte dos irmãos de Felipe e julga ser
muito difícil algum deles se dispor a assumir tamanha responsabilidade, foi
colocada como segunda opção a possibilidade de Felipe ser levado para uma casa
de repouso, onde tenha garantido todo o cuidado necessário e onde a família e
as filhas possam visitá-lo. Felipe se comportou de forma bastante agressiva
durante a conversa, repetindo sempre sobre sua inconformidade com sua situação
e sua insatisfação com sua vida atual.
Toda
a família julga ser essa a melhor solução para a melhora da vida de todos,
principalmente de Eva, que se encontra com a saúde bastante debilitada e no seu
limite de saúde psicológica. Acredita que sem o marido em casa, conseguirá
retomar os cuidados consigo mesma e voltar a fazer atividades que gosta e que
lhe fazem bem.
A conferência foi finalizada com o
acordo dos membros de se comprometerem a buscar, juntos, pela melhor solução do
caso, além disso foi pactuado que Priscila se responsabilizaria pelo contato
com os familiares de Felipe para discussão e conduta frente a seu caso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com
a realização deste estudo, constatou-se a importância da abordagem familiar
para os profissionais da Estratégia de Saúde da Família como ferramenta que
promove conhecimento de forma mais aprofundada da estrutura e funcionamento das
famílias.
O uso das
ferramentas e as diversas visitas realizadas permitiu maior entendimento sobre
a família como estrutura única, conhecendo seus problemas, como eles afetam
cada membro que a compõe, os papéis de cada um no contexto familiar e a forma
como enfrentam seus conflitos e tomadas de decisões.
O
conhecimento do funcionamento familiar proporcionou à equipe de Saúde da Família
embasamento para que realização do trabalho abrangente e integral, auxiliando
no tratamento não somente da doença, mas nas intervenções ligadas a todo o
contexto em que foi gerada e se desenvolveu, a fim de possibilitar alcance de
resultados mais eficazes e duradouros.
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Recebido em 14/04/2019 |
Aceito em 30/03/2020 |
Publicado em 03/05/2020 |
[1] Enfermeira
Especialista em Saúde da Família (Unimontes). Minas Gerais. Brasil. * (jozy.r17@hotmail.com)
[2] Cirurgiã Dentista Especialista em Saúde da Família
(Unimontes). Minas Gerais. Brasil. * yara_silveira@yahoo.com.br.
³ Enfermeiro Mestre em Cuidado Primário em Saúde (Unimontes). (Professor
Faculdades Prominas). Minas Gerais. Brasil. *matheusmendesp@hotmail.com.