eISSN 2236-5257

 

 

 

Resgate histórico da disciplina Estágio em Saúde da Família do curso de Odontologia - Unimontes:  um pioneirismo na formação do cirurgião-dentista

 

History of the discipline internship in health of the family of the dentistry course - Unimontes: a pioneering in the formation of the dentist surgery

 

Stephanie Quadros Tonelli[1]

Cibelly Neves Fonseca[2]

Wallace de Freitas Oliveira[3]

Cássia Pérola dos Anjos Braga Pires[4]

Renata Francine Rodrigues de Oliveira[5]

 

Resumo: Objetivo: o objetivo desse estudo foi descrever a construção histórica e metodológica da disciplina Estágio em Saúde da Família do curso de graduação em Odontologia da Unimontes. Metodologia: este estudo foi realizado através da revisão de documentos históricos da disciplina, bancos de dados e entrevistas com professores e figuras importantes na sua elaboração. Resultados: no ano 2000, foi instituída a disciplina, compreendida por atividades teórico-práticas para execução de ações nos territórios das Equipes de Saúde da Família do município de Montes Claros. A disciplina propõe a formação integral, atual e centrada nas competências do novo profissional a partir da integração ensino-serviço. Neste contexto, o acadêmico é inserido na rotina de uma Unidade Básica de Saúde, tendo como objetivos a avaliação do processo saúde-doença da comunidade assistida, territorialização e planejamento de ações preventivo-promocionais para a população. Conclusão: a disciplina mantém uma estrutura operacional e metodológica que a torna importante na formação acadêmica e desenvolvimento de habilidades imprescindíveis à atuação profissional, além de beneficiar a população assistida com suas ações.

 

Palavras-chave: Ensino. Estratégia Saúde da Família. Odontologia. Saúde Pública.

 

Abstract:  Objective: the aim of this study was to describe the historical and methodological construction of the Family Health Internship course of the Unimontes Dentistry undergraduate course. Methodology: this study was conducted through the review of historical documents of the course, databases and interviews with teachers and important figures in its preparation. Results: in the year 2000, the discipline was instituted, comprised of theoretical and practical activities to perform actions in the territories of the Family Health Teams of the municipality of Montes Claros. The course proposes the integral training, current and focused on the skills of the new professional from the teaching-service integration. In this context, the student is inserted in the routine of a Basic Health Unit, having as objectives the evaluation of the health-disease process of the assisted community, territorialization and planning of preventive-promotional actions for the population. Conclusion: the discipline maintains an operational and methodological structure that makes it important in the academic formation and development of skills essential to professional performance, besides benefiting the assisted population with their actions.

 

Keywords: Teaching. Family Health Strategy. Dentistry. Public health.

 

 

INTRODUÇÃO

 

A Estratégia Saúde da Família - ESF foi implantada no Brasil, em 1994, para a reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica, em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde - SUS.1 Sua implantação é concebida em um momento histórico social, em que o modelo tecnicista/ hospitalocêntrico passou a não atender mais à emergência das mudanças do mundo moderno, e, consequentemente, às necessidades de saúde das pessoas.1-3

Dessa maneira, a ESF, instituída pelo Ministério da Saúde, se apresentou como uma maneira inédita de trabalhar a saúde, tendo a família como centro da atenção e, não somente, o indivíduo doente.1,2 Introduz uma nova visão no processo de intervenção em saúde, uma vez que não espera a população adoecer para ser atendida, pois age preventiva e promocionalmente sobre ela.1-3

A ESF tem por objetivo reestruturar o setor da atenção básica, colaborando para o acesso universal e equânime aos serviços de saúde, com vistas à integralidade das ações que promovam a qualidade de vida. Sua organização se baseia nos princípios da hierarquização, regionalização e descentralização dos serviços e da gestão e, ainda, regido sob a lógica da vigilância à saúde.4 Esta estratégia, não obstante a priorização das ações de promoção e prevenção, busca também realizar ações de recuperação à saúde, reorientando as práticas setoriais isoladas e reafirmando a inclusão na prática em saúde de todos os profissionais, com ações coletivas e individuais de melhoria e manutenção da qualidade de vida. Objetiva a abordagem familiar, nos seus mais variados arranjos, e procura redirecionar a participação dos diversos profissionais de saúde, almejando o alcance de uma equipe articulada, multiprofissional e interdisciplinar, cujas ações estejam pautadas na atenção básica.1-4

No ano de 2000, o Ministério da Saúde, pela Portaria Ministerial n.º1.444, de 28 de dezembro de 2000, criou o incentivo de Saúde Bucal que oficializou a inserção das Equipes de Saúde Bucal - ESB na ESF, integralizando, ainda mais, os serviços oferecidos pelo SUS.4,5 Os profissionais da Odontologia, inseridos na ESF, participam do processo de planejamento, acompanhamento e avaliação das ações desenvolvidas no território, identificam necessidades e expectativas da população, estimulam e executam medidas e ações intersetoriais para a promoção de saúde, atividades educativas e preventivas, sensibilizam as famílias e grupos para a importância da saúde bucal na manutenção da saúde e organizam os processos de trabalho, de acordo com diretrizes da ESF e do Plano Municipal de Saúde.5,6

Neste contexto, visando à formação de profissionais preparados para a atuação no SUS, e, especificamente, com perfil para o trabalho nas Equipes de Saúde da Família, foi idealizada em 1999 e instalada no ano de 2000, a disciplina Estágio em Saúde da Família do curso de graduação em Odontologia da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Constituída de atividades teórico-práticas para o envolvimento nas ações das Equipes de Saúde da Família do município de Montes Claros/MG, a disciplina objetiva a aproximação e vivência com a saúde pública, através da infraestrutura existente no SUS.

O presente trabalho torna-se relevante, uma vez que a Unimontes é pioneira no Estágio em Saúde da Família, que tem sido adotado como exemplo e modelo em outras universidades do país. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo descrever a construção histórica e metodológica da disciplina Estágio em Saúde da Família do curso de Odontologia, bem como sua repercussão na relação ensino-serviço e na formação de profissionais mais qualificados e atualizados, requeridos no âmbito das práticas de saúde.

METODOLOGIA

 

O presente trabalho trata-se de um estudo descritivo-retrospectivo, fundamentado na revisão de documentos históricos que embasaram teoricamente a construção da Disciplina Estágio em Saúde da Família e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, MG, Brasil-Parecer nº 2.398.900. Foi analisada a proposta de implantação e metodologia, através da consulta ao Protocolo da Disciplina,7 sua importância, contribuições, bem como o impacto na formação acadêmica.

Para tanto, foram realizadas entrevistas com a fundadora da disciplina e com coordenadores de algumas Unidades Básicas de Saúde – UBS, do município de Montes Claros, MG-Brasil, que têm a tradição de receber estagiários da disciplina. Nessas entrevistas, primou-se pelos relatos dos profissionais diante da experiência em receber os estagiários da Unimontes nas suas Unidades, além das contribuições para o serviço e à comunidade e como veem essa relação (ensino/serviço/comunidade).

Para a realização das entrevistas, foi feito, previamente, contato com os entrevistados e solicitação da entrevista, através de um ofício, assinado pela Coordenadora Pedagógica do Curso de Graduação em Odontologia da Unimontes. Além disso, foram coletadas as assinaturas dos referidos entrevistados no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE e Termo de Autorização de Publicação e Transferência dos Direitos Autorais para divulgação dos dados.

Os entrevistados foram indagados sobre a idealização, histórico, construção, contribuições e impacto da disciplina para os acadêmicos e para o serviço de saúde local. Tais respostas foram gravadas por meio de recursos digitais como gravadores, câmeras e filmadoras. Todas as gravações foram transcritas na íntegra para posterior seleção de tópicos e informações importantes para a construção histórica e avaliação dos impactos da disciplina.

 

RESULTADOS

A proposta da disciplina Estágio em Saúde da Família é baseada no estágio profissional do acadêmico dentro da ESF, com os objetivos de avaliação do processo saúde-doença da comunidade assistida, planejamento de ações preventivas para a população e conhecimento do território pelo processo de territorialização. A disciplina consiste em uma integração serviço-ensino na qual o acadêmico do curso de graduação em Odontologia do 7° período da Unimontes é inserido na rotina de uma UBS. Compreende uma carga horária de 200 horas, sendo 80 horas para o conteúdo teórico e 120 horas para as atividades práticas que são realizadas nos territórios. Segundo a fundadora e primeira coordenadora da disciplina, o 7° período foi escolhido, uma vez que, nesse semestre, o acadêmico já adquiriu a maioria dos conteúdos da graduação, tendo assim acumulado conhecimento e maturidade suficientes para uma experiência, além dos muros da Universidade.

A rotina de estágio abrange a execução de diversas atividades como visitas domiciliares, reuniões com a equipe, ações de educação em saúde geral e bucal, escovações supervisionadas, participação em grupos operativos, confecção e distribuição de cartilhas, oficinas, Tratamento Restaurador Atraumático - ART, dentre outras atividades que têm a finalidade de contribuir para a formação multiprofissional. Nesse contexto, o acadêmico é direcionado pela presença pontual do professor-supervisor, adquirindo, assim, uma maior autonomia. Os estagiários realizam atividades práticas nas equipes em três momentos durante o semestre, uma semana em cada mês. Atividades previstas no plano de ensino que estão em consonância com as Novas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Odontologia.7

Em seu primeiro contato na UBS, os acadêmicos desenvolvem noções de territorialização e realizam o mapeamento do território, identificam as condições sociais, demográficas e de saúde da comunidade. Além disso, vivenciam a rotina e o funcionamento da UBS, e, a partir desse diagnóstico, constroem uma lista de problemas sob os quais são, então, planejadas e programadas ações de prevenção, promoção e cuidados à saúde. As ações planejadas são executadas no segundo e terceiro momentos, com vistas à melhoria das condições de saúde da população adscrita e a manutenção do bem-estar da comunidade. Ou seja, a disciplina preconiza a utilização da Metodologia da Problematização.

            A fundadora da disciplina, entrevistada da pesquisa, idealizou em 1999 e instituiu no ano de 2000 a disciplina Estágio em Saúde da Família no curso de Odontologia da Unimontes. Em 1993, enquanto atuava como Coordenadora Estadual de Educação para Participação em Saúde, realizou os primeiros contatos com o grupo do Ministério da Saúde que estava à frente da ESF.

            Em 1995, o Governo do Estado de Minas Gerais eleva a ESF como projeto estruturante do setor de saúde em nível da atenção primária, complementado pela rede de serviços especializados, ambulatoriais e hospitalares. Nesse período, a fundadora da disciplina passou a integrar o Grupo de Trabalho da ESF da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais – SES/MG, responsável pela construção e implantação da proposta Saúde da Família no Estado.

            A partir de 1997, atuando como Coordenadora Estadual Adjunta do PSF, pôde vivenciar todos os dilemas decorrentes do enfrentamento da necessidade de construir um novo modelo de atenção à saúde centrado na família, entendendo e sentindo que o desafio maior estava relacionado ao profissional com perfil adequado para a operacionalização da proposta.

            Em 1998, com o objetivo de contribuir com a questão dos recursos humanos em saúde, a fundadora da disciplina assumiu a Superintendência para Desenvolvimento de Recursos Humanos da SES/MG.  À medida que o processo de implantação da ESF avançava em todo Estado de Minas Gerais, ficava evidente a existência de dificuldades de ordem técnica, financeira e política, e que, do ponto de vista técnico, o grande desafio estava em viabilizar o desenvolvimento de competências e habilidades dos profissionais de saúde para se envolverem com o PSF; tanto daqueles já inseridos no mercado quanto dos novos profissionais; cuidado esse observado atualmente no tocante à metodologia de ensino das Universidades.

Durante sua gestão na Superintendência da SES/MG, a Coordenadora acompanhou a articulação entre o serviço e o ensino, provida pelos Polos de Capacitação, Formação e Educação Permanente de Pessoal para Saúde da Família, que foram implantados pelo Ministério da Saúde a partir de 1997. No exercício da sua função institucional, teve a oportunidade de participar de seminários, encontros e fóruns relacionados à questão da inserção dos profissionais da Odontologia nas Equipes de Saúde da Família, através de atividades que promovessem a integração da instituição de ensino com as entidades prestadoras de serviços de saúde. Assim, foram construídas as duas disciplinas de estágio no curso de Odontologia da Unimontes: o Estágio em Saúde da Família para o 7ª período e o Internato Regional Integrado para o 10º período.

            A disciplina Estágio em Saúde da Família iniciou-se em agosto de 2000, envolvendo 5 UBS: José Carlos de Lima, Santo Antônio I, Santo Antônio II, Vila Sion e Vila Telma. Desde a primeira turma, foram executadas atividades de pesquisa para conhecimento da dinâmica da equipe de ESF; identificação e interação com o território geográfico e processual, e seus equipamentos sociais, e, principalmente, para a vivência e trabalho em equipe multiprofissional, assumindo desafios, conflitos, aprendendo a planejar em conjunto com todos os profissionais.

Algumas dificuldades foram encontradas no início da disciplina, como o acesso ao gestor do município Montes Claros para a apresentação da proposta e solicitação de sua autorização para que os acadêmicos pudessem estagiar nas Equipes de Saúde da Família de Montes Claros - MG. Outro impasse era o fato da fundadora e coordenadora ser a única professora para supervisionar os acadêmicos em campo, durante os dois turnos, matutino e vespertino. Em sua entrevista, explicitou a relevância do Estágio em Saúde da Família em proporcionar ao acadêmico uma experiência dentro do curso, na qual o impacto com a realidade fora da clínica universitária é de fundamental importância para ampliar o foco de visão e adquirir um direcionamento profissional.

            A disciplina foi descrita como o processo introdutório ao Internato realizado no 10º período do curso, uma experiência que contribui para a atuação no estágio supervisionado, voltada para a formação de um novo profissional capaz de se inserir em uma equipe multiprofissional, vinculando-se à realidade das famílias e comunidades. Segundo a entrevistada,

 

O Estágio em Saúde da Família tem grande contribuição na formação pessoal e acadêmica dos acadêmicos que têm a oportunidade de vivenciar uma realidade diferente; interagir com a equipe de saúde; aprender com os profissionais e com a própria comunidade do território; colocar em prática seus conhecimentos técnicos e científicos adquiridos na Universidade [...].

 

            A coordenadora concluiu afirmando que os estagiários, no processo de Integração Ensino-Serviço, exercem o papel de “agentes de transformação”, já que, no momento em que são inseridos na comunidade e nos serviços municipais de saúde, exercem um trabalho de ampliação da cidadania, podendo contribuir para a construção da intersetorialidade das políticas sociais e, assim, desenvolver ações transformadoras na realidade encontrada.

            Em entrevista, a coordenadora da UBS Monte Carmelo II, que recebeu acadêmicos, durante o estágio, citou que o estágio superou suas expectativas e que os acadêmicos que a UBS recebe têm perfil de profissionais já formados. São interessados, principalmente, quando comparados aos estagiários de outros cursos. Além da autonomia e criatividade em realizar ações que beneficiam a equipe e a comunidade, consistem em um apoio às atividades da UBS.

            Para a enfermeira, a melhor contribuição dos acadêmicos é o processo de territorialização que realizam e atualizam a cada semestre, com muito zelo e cuidado, trazendo para a unidade um mapa inteligente e didático, que é utilizado pela equipe para planejar suas ações.   Outra contribuição importante é o acompanhamento dos estagiários nas visitas domiciliares, nas quais esses estagiários repassam informações aos Agentes Comunitários de Saúde – ACS, através da educação continuada e aos pacientes, constituindo fonte de informações que não são dominadas pela equipe. A enfermeira ressaltou, ainda, que uma das ações marcantes, já realizadas pelos estagiários, foi a implantação do Grupo de Adolescentes, Jovens do Terceiro Milênio, tendo em vista que já era objetivo das duas UBS (Santa Lúcia I e Monte Carmelo II) de contemplar a Saúde do Adolescente. “A ação dos acadêmicos foi essencial para conseguir trazer os jovens para a unidade”, lisonjeia a entrevistada.

O coordenador da UBS Cintra I destacou a importância para a equipe em poder contar com a participação dos estagiários. Definiu essa participação como um reforço e potencialização para grupos operativos, atendimentos, visitas domiciliares, escovação, teatros e orientações nas escolas. Esses estagiários sempre contribuem para a melhoria da UBS, como, por exemplo, com a decoração no consultório odontológico, pintura do muro externo, confecção de um jardim e outras ações. O coordenador vê o estágio como uma boa relação, na qual ganham a comunidade e os próprios acadêmicos que podem colocar em prática o que foi aprendido na academia.

            O enfermeiro ressalta, ainda, que atualmente o estágio da Odontologia na UBS chegou a um ponto de grande sincronia, em que as ações são, cada vez mais, vinculadas com a equipe, através da participação dos acadêmicos na reunião geral mensal para o planejamento das ações. “Acredito que o estágio dos acadêmicos da Odontologia da Unimontes vem a somar em muito às nossas ações”, comenta o enfermeiro.

A coordenadora da UBS Vila Telma explicitou em sua entrevista que a unidade não tem dificuldade em receber os acadêmicos e que o objetivo em os receber é de contribuição mútua para equipe/comunidade/estagiários. A enfermeira vê o estágio de forma extremamente positiva, com um ganho para todos, conforme seu relato,

                                      Os acadêmicos nos ajudam a desenvolver atividades voltadas para a promoção da saúde e para a prevenção de riscos e doenças. Suas ações representam contribuições positivas de trabalho em equipe, envolvimento com todos os membros da ESF e comunidade, propagando conhecimento e orientações importantes aos profissionais e à população.

 

            A enfermeira ressalta que a população adscrita é beneficiada com essa experiência em vários aspectos no que se refere à prevenção e ao controle das doenças bucais. As crianças de escolas e creches recebem aplicação de fluoretos e tratamento da cárie dentária pelo ART. São feitas ações educativas com a participação dos pais e responsáveis. Os idosos são examinados e orientados com relação à prevenção do câncer bucal. Os demais usuários dos serviços da ESF recebem intervenções educativas de prevenção em saúde bucal e alterações comuns para determinadas condições. Essas atividades são, também, dirigidas aos alunos das escolas e aos seus pais e aos grupos operativos existentes nas unidades.

 

DISCUSSÃO

A dinamicidade e a complexidade das práticas, no âmbito do trabalho em saúde, estabelecem padrões inconstantes nesse campo, o que requer novos métodos de ensino e formação dos trabalhadores inseridos. Dessa forma, os cursos e programas de capacitação e aperfeiçoamento na área da Saúde Coletiva devem estar voltados para as mudanças e tendências no âmbito das práticas que são produzidas no cotidiano mutável dos serviços de saúde.3,9,10

A construção do conhecimento do acadêmico na disciplina Estágio em Saúde da Família se dá pela Metodologia da Problematização, alternativa metodológica com potencial pedagógico para dispor o futuro profissional e cidadão, demandado para uma sociedade dinâmica, em rápidas e constantes transformações. Essa metodologia abrange a observação da realidade e definição de um problema de estudo, pontos chave, teorização, hipóteses de solução e aplicação à realidade.8

É imprescindível que profissionais da saúde, que desejam se inserir na Saúde Coletiva, atuem no cenário da Atenção Primária em Saúde como parte da sua formação.9 Quanto à relação ensino/serviço, a disciplina promove a inserção de novas metodologias oriundas da universidade, demonstrando a indissociabilidade entre a prestação de serviços e a capacitação, garantindo a formação e educação permanente para a Saúde da Família. Observa-se, assim como em outros estudos, que, por meio da participação em ações educativas nos grupos focais, visitas domiciliares, atividades realizadas em pastorais, creches e na própria UBS, os graduandos podem entrar em contato com a realidade, fazendo seu diagnóstico e propondo sua resolução, conforme a atuação de um profissional na área da saúde pública. 10,11

Há evidências de inadequação na formação de profissionais de saúde no Brasil, em especial, para trabalho na ESF.12-14 Partindo deste pressuposto, é que a Disciplina Estágio em Saúde da Família do 7º período de Odontologia da Unimontes, como pioneira na inserção de acadêmicos de Odontologia no contexto da ESF, constitui uma inovação na prática metodológica de ensino, promovendo um saber interdisciplinar; competência para realizar diagnóstico situacional de saúde; habilidade para disseminar o processo didático-pedagógico, através de um sistema de educação continuada e permanente; proatividade no processo de acompanhamento/supervisão em serviço e a consciência pela busca incessante das competências pessoal, profissional e social, com o enfoque na potencialização individual e coletiva rumo à aquisição de novos conhecimentos, conceitos e atitudes inerentes ao perfil de profissional exigido pelo mercado. Portanto, a disciplina fornece embasamento para a formação universitária e adequação ao modelo de atenção à saúde.

Em uma revisão sistemática sobre a importância da construção de um cuidado humanizado na Odontologia, bem como os aspectos éticos e morais que norteiam a formação do cirurgião-dentista, concluiu-se que a construção do cuidado humanizado na Odontologia pressupõe um compromisso social indispensável, que deve permear desde a formação até o cotidiano profissional, incluindo os aspectos dos avanços tecnológicos e a ética das relações interpessoais das equipes de trabalho em saúde.15

Além disso, a universidade tem um papel importante na prestação de serviços à comunidade em que está inserida.2,5,6,10,16 Um exemplo prático do benefício mútuo, a nível de formação profissional e melhoria da atenção à população, está a criação do “Grupo Jovens do Terceiro Milênio”. Esta ação é coerente, uma vez que, apesar de representarem o grupo etário mais sadio, quando comparados com os demais grupos populacionais, os adolescentes geram uma baixa demanda nos serviços de saúde, o que pode estar relacionado a elevada resistência à aproximação com as instituições de saúde.17 Sendo assim, o projeto vem consolidar a prática da ESF a partir do momento que promove a inserção desses jovens na realidade do serviço de saúde que é oferecido a eles.

Outro aspecto que tem sido discutido na literatura é a qualificação de docentes para guiar e direcionar a formação profissional ideal para o trabalho em equipes multidisciplinares e na Saúde da Família.14,18,19

O Conselho Nacional de Educação - CNE20 instituiu as “diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Odontologia”, que definiu o seguinte perfil de egresso para o Cirurgião-Dentista dos cursos brasileiros,

 

Profissional com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor técnico e científico; capacitado do exercício de atividades referentes à saúde bucal da população, pautado em princípios éticos, legais e na compreensão da realidade social, cultural e na economia do seu meio, dirigindo sua atuação na transformação da realidade em benefício da sociedade. (BRASIL, 2019)

 

Neste mesmo documento, o CNE afirma no art. 4º20 que a formação do Cirurgião-Dentista tem por objetivo “dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício da atenção à saúde (em nível individual e coletivo), tomada de decisões, comunicação, liderança, administração, gerenciamento e educação permanente”. Os achados deste estudo apontam que a disciplina referida contribui para a formação acadêmica em consonância com essas recomendações e princípios.

Por fim, a existência desta disciplina na estrutura curricular do curso, parece cooperar com a avaliação positiva do perfil do seu egresso.20 Em estudo anterior, cujo objetivo foi avaliar este perfil, o corpo docente, o projeto político pedagógico, a inserção dos acadêmicos na ESF, a iniciação científica e os estágios supervisionados, foram citados como os principais aspectos positivos do curso, evidenciando que a perspectiva de inserir o acadêmico no processo de trabalho da ESF culmina na formação de profissional exemplar com desejável experiência na vivência da realidade regional e olhar generalista.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A disciplina Estágio em Saúde da Família mantém, desde sua criação, uma estrutura operacional e metodológica que a torna um importante elemento na formação do acadêmico do curso de Odontologia da Unimontes. Uma vez que direciona o acadêmico para a realidade atual, faz com que ele se torne um profissional diferenciado e atento às mudanças no mercado.

            Através dos enfrentamentos das condições que a realidade proporciona, a vivência da disciplina permite ao acadêmico desenvolver habilidades como espírito de liderança, comunicação, atitude proativa, trabalho com autonomia, capacidade diagnóstica e atuação gestora. Além disso, suas ações potencializam as atividades desenvolvidas pela Equipe de Saúde da Família, beneficiando a população adscrita aos territórios contemplados com esta parceria.

 

CONFLITOS DE INTERESSE

            Os autores declaram não haver conflitos de interesse relacionados ao presente estudo.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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Recebido em 02/07/2018

Correções em 25/08/2019

Aceito em 24/10/2019

Publicado em 19/05/2020

 

 

 

 

 

 



[1] Mestre em Clínicas Odontológicas/Endodontia (PUC Minas). Professora do Centro Universitário FIPMoc - UNIFIMoc. Minas Gerais. Brasil. * (stephanie_tonelli@hotmail.com).  https://orcid.org/0000-0002-4671-9868x

[2] Especialista em Saúde da Família (Secretaria Municipal Saúde de Belo Horizonte - PBH). Minas Gerais. Brasil. * (cybellyfonseca@hotmail.com).  https://orcid.org/0000-0002-6220-5672

[3] Mestre em Odontologia (PUC Minas). Professor das Faculdades Funorte e Favenorte. Minas Gerais. Brasil. * (wdefreitasoliveira@gmail.com).  https://orcid.org/0000-0002-7693-5086

[4] Doutora em Ciências da Saúde (FORP). Professora da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Minas Gerais. Brasil. * (peroladab@gmail.com).  https://orcid.org/0000-0002-8649-4675

[5] Doutora em Ciências da Saúde (Unimontes). Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Minas Gerais. Brasil. * (renatafrancine@gmail.com).  https://orcid.org/0000-0002-7393-0415