Fontes para uma reflexão sobre a história do Vale do Jequitinhonha
Abstract
O Vale do Jequitinhonha ocupa uma área de 85.000 km2 na região nordeste do
estado de Minas Gerais, onde vivem aproximadamente 1.000.000 de pessoas,
distribuídas em 80 municípios. Nos últimos anos, tem crescido sistematicamente o interesse de pesquisadores pela região, ao que parece, em
função do generalizado discurso segundo o qual o Vale ostenta indicadores sociais e
econômicos comparáveis aos piores do mundo. Ao lado das atividades de pesquisa
destacam-se, também, diversas formas de intervenção desenvolvidas por instituições
acadêmicas e organizações governamentais e não-governamentais.
O
O que tem caracterizado essas atividades de pesquisa e intervenção, entretanto, é a forma
bastante desarticulada de sua realização. Não há qualquer diálogo substantivo entre as
instituições que lá atuam e/ou entre os pesquisadores que as representam. Isso tem trazido
dificuldades tanto em relação a possíveis ações coordenadas, as quais poderiam produzir
impactos mais significativos, quanto em relação aos próprios pesquisadores, os quais
trabalham geralmente de forma isolada, tendo acesso apenas ocasional às pesquisas de
colegas que se encontram por acaso. Além disso, tem sido muito pequena a visibilidade do
quadro que essas novas pesquisas têm traçado.
Em decorrência disso, as imagens que têm predominado na formação das representações
sobre a região são aquelas difundidas pela imprensa, grosso modo voltadas para a denúncia
de suas mazelas, o que tem generalizado o Jequitinhonha como “bolsão de pobreza”,
“região problema”, “vale da miséria”, “ferida de subdesenvolvimento” etc. Não se trata de
não reconhecer os graves problemas que afligem grande parte da população local, mas não
há dúvida de que é preciso reconhecer que o Vale não é uma região homogênea e que a
maioria dessas matérias da imprensa não capta essas diferenciações.
Essa vasta região é diversificada tanto pelo longo processo histórico de ocupação quanto
pela diversidade de atividades que predominaram em cada lugar. No alto-médio
Jequitinhonha (Serro Frio, Diamantina, Minas Novas) e no norte do estado (Rio Pardo de
Minas, Salinas) a ocupação do território se deu a partir do início do século XVIII. No baixo
Jequitinhonha (Pedra Azul, Jequitinhonha, Almenara, Salto da Divisa), ela aconteceu
somente um século depois. No alto Jequitinhonha, a atividade principal foi a mineração,
decorrente das bandeiras paulistas que chegaram às “minas gerais” a partir do final do
século XVII. No norte de Minas e no baixo Jequitinhonha, a atividade principal foi a
pecuária, que atingiu o território mineiro através do vale do São Francisco, o “rio dos
currais”. Atualmente, há predomínio da atividade mineradora no alto Jequitinhonha,
predomínio da pecuária no baixo Jequitinhonha e uma atividade mista na região
intermediária.
Apesar de ainda pouco conhecida, principalmente em algumas microrregiões, pode ser
considerado bastante vasto o material já produzido sobre a região. Dois tipos de fontes
alimentam a pesquisa e o conhecimento no campo da história: as fontes primárias e as
fontes secundárias. Fontes primárias ou originais são aquelas que documentam um fato,
uma circunstância, um vivido. São os documentos escritos, objetos de uso pessoal e
coletivo, instrumentos diversos. Exigem do pesquisador mais que uma leitura, ou seja,
exigem sua inscrição num contexto histórico, social, político, econômico e cultural para
que adquiram inteligibilidade, uma vez que são sempre fragmentárias e se referem a uma
particularidade. As fontes secundárias, pelo contrário, dizem respeito às diversas leituras
que os diferentes pesquisadores fazem das fontes primárias. Ainda que possam se
transformar em novas fontes de pesquisa, as fontes secundárias são textos postos no
mercado de bens culturais para consumo de diferentes categorias de sujeitos: outros
pesquisadores, professores, estudantes, curiosos de modo geral. Enquanto as fontes
primárias estão mais ligadas à produção do conhecimento da história, as fontes secundárias
estão mais ligadas à difusão do conhecimento histórico.
O Vale do Jequitinhonha se caracteriza pela dificuldade de acesso tanto a fontes primárias
quanto secundárias. Há uma profunda carência de arquivos públicos. Exceto em
Diamantina, onde há a Biblioteca Antônio Torres e o arquivo do Palácio Arquidiocesano, e
no Serro, com o Museu Casa dos Otoni, em nenhum outro lugar há um arquivo público
relevante que concentre fontes primárias de pesquisa no nordeste de Minas. Isso faz com
que essas fontes estejam dispersas junto a pessoas da comunidade ou em arquivos
particulares. A “operação historiográfica”, neste caso, tem que ser realizada a partir de
indícios, em decorrência da escassez de dados. Ressalte-se, também, o descuido em relação
à preservação dos documentos históricos, cujo destino tem sido a fogueira, o lixo ou os
porões mofados, onde estão aos cuidados das traças, das baratas e dos ratos.
As fontes secundárias têm crescido notavelmente nos últimos anos. Apesar disso, como se
disse anteriormente, tem predominado uma visão homogeneizadora sobre a região,
desconsiderando diferenças fundamentais entre as microrregiões. Essas fontes podem ser
identificadas quanto ao espaço, quanto ao tempo e quanto à origem.
Em relação ao espaço, predomina a produção e difusão de conhecimento sobre
determinadas regiões (Serro, Diamantina), sendo bastante escasso o conhecimento sobre
outros lugares (toda a região de que Minas Novas constituiu-se como centro histórico).
Mesmo nas regiões fronteiriças, mais dinâmicas, como a de Montes Claros e a de Teófilo
Otoni, é muito incipiente a divulgação do conhecimento regional. Não há na biblioteca da
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), a única universidade em todo o
norte de Minas e sudoeste da Bahia, nem na biblioteca da Fundação Educacional Nordeste
Mineiro, de Teófilo Otoni, uma ala ou uma prateleira sequer destinada às fontes regionais.
Em relação ao tempo, há uma grave lacuna historiográfica no que se refere ao século XIX e
à primeira metade do século XX, na região que compreendia o termo de Minas Novas, o
que compromete uma visão de maior alcance sobre a história local. Raros são os trabalhos
que abordam esse período histórico. Grosso modo, os autores afirmam que a região entrou
em profundo estado de abandono e estagnação a partir do final do século XIX, voltando a
aparecer como objeto de interesse apenas a partir de meados do século XX. Predomina,
neste caso, uma interpretação sustentada em ciclos econômicos (mineração, algodão,
pecuária) fora dos quais praticamente nada de relevante teria acontecido.
Em relação à origem, tem havido o predomínio quase absoluto de manifestações da
imprensa, nem sempre sustentadas em um conhecimento sistemático da região, o que mais
tem contribuído para difundir a imagem homogeneizadora da qual se falou acima. Essas
manifestações se caracterizam pelo forte apelo ao emocional, buscando atingir, na opinião
pública, uma mobilização voltada para o caráter assistencialista, principalmente por época
de aprofundamento das hostilidades do quadro natural (enchentes, secas). Apesar do
predomínio dessas visões da imprensa, são vários os lugares da produção desse
conhecimento, como os diagnósticos governamentais, a produção local e os trabalhos
acadêmicos. Todos eles encerram, entretanto, um paradoxo, que pode ser assim abordado.
1) Imprensa (escrita, falada, vídeo). Paradoxo do “denuncismo”. Alerta para os graves
problemas que afligem a população local, mas, ao mesmo tempo, reforça as representações
negativas sobre a região. Ver, por exemplo: “Jequitinhonha: a escola no coração da
miséria.” Nova escola. São Paulo, ano VII, edição n0 63, dez 1992; “Vale do
Jequitinhonha vive miséria somali.” Folha de São Paulo. São Paulo, 18/04/93; “Parada no
tempo: como é a vida no Vale do Jequitinhonha, um dos lugares mais pobres do Brasil.”
Isto é Minas. Belo Horizonte, Edição n0 87, 21/07/93. A questão central aqui é: a que e a
quem serve continuar reproduzindo a idéia de “vale da miséria”?
2) Diagnósticos institucionais. Paradoxo da “inoperância”. Realizam diagnósticos diversos
e elaboram projetos, até mesmo tecnicamente perfeitos, mas politicamente inviáveis. Ver,
por exemplo, o caso do Programa de Barragens, elaborado no contexto das ações do
Programa Novo Jequitinhonha (FJP, 1988) e o Programa de Assentamento Dirigido do
Vale do Jequitinhonha – PADVALE, que consistia em realizar, nos moldes da empresa
agrícola, o assentamento de produtores rurais em quatro grandes núcleos de colonização no
Vale (RURALMINAS, 1987). Em relação ao primeiro, um jornal da capital publicou um
caderno especial para enaltecer seus propósitos. “Usina de Santa Rita: a redenção do
Jequitinhonha.” Hoje em dia. Belo Horizonte, 8/5/88. Quanto ao segundo, não foi realizado
porque esbarrou na resistência da população local.
3) Produção local. Paradoxo do “saudosismo”. Resulta, geralmente, de trabalhos de
autodidatas locais. Celebra as mudanças operadas em virtude do “progresso” que chega,
mas lamenta a perda dos valores mais sagrados. Apesar de bem intencionada, produz
geralmente uma historiografia pouco criteriosa, porque não se fundamenta em recursos
teórico-metodológicos apropriados, mesmo quando seu propósito é produzir uma “História
do Vale do Jequitinhonha”. Muitas vezes, volta-se para a enumeração de fatos, para a
relação dos nomes dos ocupantes de cargos públicos e para o destaque das pessoas ilustres
do lugar. Alguns se revestem de um exacerbado cunho ufanista. São muito comuns os
livros de memórias e de poesias. Entretanto, é o material que mais circula entre a
população, mesmo porque o propósito dos autores é geralmente produzir uma literatura
para consumo doméstico e de fácil manuseio e assimilação por parte dos leitores.
4) Trabalhos acadêmicos. Paradoxo do “distanciamento”. Produzem, na maioria das vezes,
análises precisas e instigantes, mas o conhecimento não se reveste de uma dimensão
prática. Apesar de ainda insuficientes para permitirem uma visão de conjunto mais
sistemática da região, pode-se dizer que tais análises são bastante amplas na abordagem
dos objetos e de grande diversidade nas conclusões a que chegaram. Quanto ao conteúdo,
essa produção é bastante variada. Ela perpassa um vasto conjunto de relatos de viajantes
estrangeiros, produção típica do século XIX, vasto conjunto de diagnósticos sócioeconômicos, típicos dos anos 70 e 80, e avança, atualmente, para a produção de uma
reflexão crítica sobre o próprio olhar que tem sido lançado sobre uma região em relação à
qual tornou-se senso comum dizer que se atolou na miséria, no abandono e na estagnação.
O tema “campesinato” é um dos que mais aparecem nos estudos acadêmicos. Tomando
como referência o raciocínio de Ricardo Ribeiro (RIBEIRO, 1993), pode-se dizer que os
estudos sobre campesinato na região: ressaltam a relação particular entre apropriação do
meio ambiente e o modo de vida camponês (GRAZIANO e GRAZIANO NETO, 1983;
COSTA, 1997); discutem as diferentes formas de reprodução da pequena produção
(MOURA et al., 1980; CARNEIRO, 1997); destacam a importância da migração sazonal
como importante estratégia de produção e reprodução sociocultural e econômica
(AMARAL, 1988; GEBARA, 1988; BACARIN e GEBARA, 1988; MORAES SILVA,
1988, MAIA, 2000); abordam a atuação do Estado via programas de apoio à pequena
produção (PRATES et al., 1980; ARROYO, 1982; VOLL, 1985); investigam a relação dos
camponeses com a escola (GOMES e RABELO, 1984; CARNEIRO, 1986; GANNAM,
1987); analisam os movimentos sociais, a comunicação e a cultura (ÁVILA, 1980; POEL,
1979, POEL, 1981, POEL, 1986; ANTUNES, 1986; SGRECIA e GADELHA, 1987;
RIBEIRO, 1993); investigam a dimensão religiosa (MULLS e BIRCHAL, 1992; SOUZA,
1993 e SOUZA, 2000); recuperam a memória (SOL, 1981; FIGUEIREDO, 1983;
MACEDO, 1992; PEREIRA, 1996; RIBEIRO, 1996; SANTOS, 1997; WEYRAUCH,
1997) e tratam das conseqüências das transformações recentemente ocorridas na região a
partir da penetração de atividades em bases capitalistas (FURTADO, 1985; SILVA, 1987;
MOURA, 1988; RIBEIRO, 1996, SOUZA, 1997), para citar apenas algumas das obras
mais recentes.
Essa bibliografia, entretanto, tem que ser garimpada pelos pesquisadores, porque, apesar de
ampla, como se verá a seguir, em nenhum lugar ela está disponível de forma concentrada.
Isso traz problemas diversos, uma vez que se corre o risco de ficar “reinventado a roda”,
gastando o tempo em pesquisas sobre temas já pesquisados. Para os novos pesquisadores
isso traz graves problemas, como dispor-se a pesquisar um tema sem o domínio do que já
se conhece. Formar um banco de dados que concentre esse material é uma necessidade
premente. Espera-se que a criação do Mestrado em Desenvolvimento Social na
UNIMONTES, que deverá ter o Vale do Jequitinhonha como locus de muitas das
pesquisas de seus alunos, desencadeie uma ação nessa direção.
A bibliografia que se segue, nem de longe esgota a busca por mais fontes primárias e
secundárias. Este é um trabalho que deve ser continuado. Aqui está o que considero mais
relevante em termos de produção bibliográfica sobre a região. Como a própria delimitação
regional do Vale do Jequitinhonha é muito elástica (ver SOUZA, 1997), incluí obras que
não dizem respeito especificamente ao Vale, mas às suas fronteiras, como Mucuri e norte
de Minas.
Mais importante do que fazer um vasto levantamento dessa bibliografia, entretanto, é
encontrar meios de disponibilizá-la a todos aqueles que se interessam pelo conhecimento
dessa região tão contraditória, sobre a qual tanto se fala e tão pouco se conhece. Fica a
sugestão de se criar em algumas cidades do Vale e na biblioteca da UNIMONTES um
Centro de Documentação com um acervo básico sobre a região. Além disso, deve-se estar
atento à produção de um material didático de fácil manejo pelos estudantes e professores
do ensino fundamental, com o objetivo de desenvolver o gosto pelos temas regionais.
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